Copenhague escrita por Julie Morgan


Capítulo 10
Divisor de águas




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No dia seguinte…

A chuva havia passado, porém o tempo frio ainda predominava o ambiente e os raios de sol eram cobertos pelas grandes nuvens no céu.

Alicia ainda estava deitada na cama em meio aos vários travesseiros, vestida com o roupão de cetim de preto que encontrou durante a madrugada na gaveta da cômoda. Não demorou para que ela começasse a resmungar ao escutar o despertador de seu celular logo cedo, assim como uma adolescente teimosa que não queria ir para as aulas do colégio.

Ela suspirou e levantou com certo mau humor indo procurar por uma toalha para tomar um banho e lavar seus cabelos, pois aquele dia seria importante. Iria ajudar a elaborar a planilha que iria testar toda sua capacidade de concentração e prudência, e pôr à prova toda a oportunidade que ela teria de fugir.

Enquanto descia as escadas levando consigo uma muda de roupas e a toalha em questão, ela não conseguiu deixar de lembrar do que havia prometido para si mesma quando havia decidido aceitar o cargo de inspetora durante o assalto: tentar manter tudo sobre controle. Uma de suas habilidades mais notáveis era a sua capacidade de monitorar o cenário em que estava inserida, e ela detestava quando as coisas não ocorriam como ela gostaria.

Enquanto ela dirigia-se para o banheiro, o Professor passou por sua direção para ir até a sala de operações, e a cumprimentou com um aceno.

— Não sei se irão servir, mas peguei essas roupas no quarto em que estou. Espero não estar furtando-as de... quem quer que seja. - ela disse dando de ombros assim que o viu.

— Não, não se preocupe. Fique à vontade. Creio que Raquel não iria se importar. - ele falou.

— Quer dizer que essa casa é… sua? - ela falou estando surpresa.

— Tecnicamente sim. Porém, meus avós a deixaram como patrimônio para mim e meu irmão. Mas isso não é assunto para agora. - ele interrompeu. - Faça o que tiver que fazer e venha para a sala. Não podemos perder tempo.

Ela então concordou, apesar de ter ficado ainda mais curiosa sobre a propriedade em que estava. Foi para o banheiro e fechou a porta atrás de si, abrindo a torneira da banheira para que ela se enchesse de água morna. Enquanto isso ocorria, ela deixou a roupa limpa sobre o vaso sanitário e desamarrou a fita do roupão, não podendo deixar de notar como estava diferente na frente do espelho. 

Já dentro da banheira, coberta pela água aquecida e bolhas de sabão que se formavam ao seu redor, ela cantarolava uma canção da qual não se recordava o nome no momento, porém que a fazia ficar perdida em mil pensamentos distintos sobre não saber o que esperar da sua versão de si mesma dali em diante. Porém, tinha certeza que tentaria fazer o melhor para que conseguisse manter aquela parcela de vida dentro de si a salvo, pois esse era o seu maior objetivo atual.

Seasons changed and our love went cold

Feed the flame 'cause we can't let go

Run away, but we're running in circles

Run away, run away (...)

Quando terminou, continuou cantando enquanto colocava uma blusa bege de mangas curtas e uma calça de tecido preto, secando um pouco o cabelo molhado para que não se molhasse novamente, e assim que destrancou a porta para sair acabou encontrando com Diego novamente, que parecia estar de braços cruzados no corredor antes de vê-la.

— Não sabia que gostava de cantar. - ele disse olhando para ela assim que saiu.

— Porra! - ela disse se sentindo assustada. - Você não oportunidade de prestar atenção no que faço, não é? Não sabia que estava do lado de fora escutando.

— Bom, não sou culpado se o som consegue atravessar essas paredes. Culpe as leis da Física, não a mim. - replicou ele dando de ombros e começando a rir de forma sutil.

Ambos ficaram calados por certo tempo olhando para os próprios pés e encostados na parede, um de frente para o outro de braços cruzados, pensando em como conduzir aquela conversa e esclarecer suas dúvidas particulares.

— Eu sinceramente não sei como anda a nossa situação agora, mas… - Marselha continuou. - Você sabe. Se ainda quiser conversar comigo depois do que aconteceu ontem, vou continuar aqui.

— E por que diz isso? - ela o questionou fitando-o um pouco confusa.

— Não sei o que se passa ou pode ter passado exatamente pela sua cabeça, ruiva. Já pude perceber que aí dentro estão milhares de ideias que talvez ninguém além de você entenda. Então não acharia estranho se quisesse...

— Não estou arrependida, se é isso o que quer dizer. - ela o interrompeu de prontidão ao entender a mensagem. - E até que seus "conselhos" não são tão ruins assim, apesar de eu também ter percebido que você é um pouco… desajeitado às vezes. - ela disse deixando escapar um sorriso de canto.

— Melhor ser um desajeitado do que teimoso como certas pessoas, não acha? - ele disse em tom de brincadeira, fazendo-a deixar escapar uma risada contida, porém involuntária.

— Copenhague, ainda preciso de ajuda nesse plano! - o Professor gritou da sala para que ela escutasse. - Ou se esqueceu dele?

— Céus. Incrível como até aqui a socialização é limitada - ela falou revirando os olhos e tendo o semblante sarcástico, fazendo Marselha rir. - Bem, eu preciso ajudá-lo. Depois podemos nos encontrar novamente.

— Vou ficar esperando. Se precisarem de mim, podem falar. - ele respondeu, entrando no banheiro em seguida.

Alicia suspirou quando ele sumiu de sua visão e se retirou para o outro cômodo, onde o Professor sentado à mesa com vários papéis à sua frente e duas xícaras de café acompanhadas de biscoitos.

— Coma enquanto começamos o planejamento. Já tenho algumas ideias em mente e não quero perdê-las, então melhor as colocarmos em prática o quanto antes.

— Bom dia para você também, Professor. - ela respondeu com certa ironia de início puxando uma cadeira para perto de si. - Não me diga que virou a madrugada apenas com isso em sua mente.

— Tenho esse plano comigo há mais tempo do que imagina. Não é apenas um delírio de uma madrugada inquieta.  - ele replicou ajeitando seus óculos. - Bom, vamos continuar sem demoras. Me diga o que sabe dos agentes e como são seus turnos. Há alguém que mereça uma atenção mais especial?

— A ver… todos parecem ser muito fiéis ao seu trabalho, se olharmos apenas pelo exterior. Porém, eu lhe disse isso antes e repito: a corrupção pessoal é o mal de todos. Está impregnada em cada um deles ali dentro. E, definitivamente, Tamayo e Prieto são os piores de todos. Eles são viciados pelo trabalho que fazem, e não vão conseguir fechar os olhos normalmente até ver os próprios rostos nos jornais como sendo os "heróis nacionais". O que não é de se surpreender. - ela falou com desprezo. - Acho que eles não sairiam daquele lugar a não ser que aconteça algo realmente muito importante.

— Entendo. Bom, posso acabar soando um pouco arriscado, mas creio ter imaginado a melhor solução para isso agora mesmo.

— Não crie suspense, conte logo. - ela falou em tom apressado.

— Tecnicamente, você irá se entregar. O que melhor para tirar a atenção de todos do banco do que criando um  novo escândalo político com… você?

— Como assim? Não fizemos aquele vídeo justamente para que eles não ficassem atrás de mim? Não estou entendendo o seu jogo, Professor. - ela falou um tanto irritada.

— Acalme-se e me deixe explicar. Não iremos conseguir nada caso comecemos uma briga. - ele se explicou. - Pois bem, com essa planilha que estamos criando poderemos saber com exatidão quais os turnos de todos os agentes, e assim poder conseguir tirar os outros membros do bando quando estivermos com menos movimento. Você não percebeu que o vídeo criou exatamente a fachada que precisávamos para despistá-los? A ideia é a seguinte: iremos entrar em contato com eles para oferecer uma suposta troca de favores, na qual você retira as suas declarações contra a Polícia e os Ministérios, e eles lhe concedem o benefício de sair do país com o mínimo de exposição. Com isso, eles provavelmente vão querer encontrar com você pessoalmente para estabelecer isso, e é aí que nós iremos entrar. Iremos pedir para, primeiro, efetuarem a compra da sua passagem aérea e anexarem um novo perfil para que você altere seus dados civis, e então iremos hackear o sistema e fazer o mesmo para o resto do grupo. 

— Mas vocês ainda serão reconhecidos pela Polícia, ou eu estou errada?

— Acho que esqueci de lhe contar.  - ele disse se levantando para pegar uma caneta. - Nós iremos retirar o grupo do Banco, porém eles não estarão... vivos, por assim dizer. Teremos que forjar a morte de todos. Infelizmente, a maioria de nós já está com os dados atuais nas mãos deles, então talvez essa seja a nossa única alternativa.

— Uma alternativa ousada, eu diria. - Alicia disse bebendo um  pouco mais de café. - Mas pode dar certo. Essa não seria a primeira vez em que você também tira uma carta nova do baralho. Ok, me diga o que preciso fazer.

— Quero aqui escritos os horários de seus ex-colegas. Todos o que você puder lembrar. - ele então lhe entregou um papel com algumas linhas e blocos não preenchidos. - Enquanto isso irei tentar entrar em contato com Palermo.

Alicia assentiu e começou a tentar retirar de suas lembranças todos os detalhes que havia gravado. Apesar de parar por alguns segundos para pensar, ela escrevia com certa rapidez e enquanto o fazia comia alguns dos biscoitos ali em cima da mesa. 

O Professor então discou alguns números e aguardou na linha, até que alguém do outro lado atendesse.

— Professor? Palermo falando. - o assaltante respondeu.

— Isso. Era exatamente com você que eu precisava resolver alguns assuntos.

— Pois você tirou as palavras da minha boca! - ele respondeu dando uma risada. - Também tenho notícias.

— Então conte todas elas. Vamos, o que está acontecendo aí dentro? E o ouro?

— Só nos restam poucas barras agora para serem fundidas. Creio que em pouco tempo já teremos todo o ouro transformado em pepitas e prontas para o destino final.

— Ótimo. Isso soa como música para os meus ouvidos. E os colaboradores do Paquistão? Todos de acordo com o plano?

— Já tenho tudo em ordem. - ele respondeu enquanto andando de um lado para o outro. - Bom, quase tudo. Nos falta apenas uma peça para terminar este quebra-cabeça: Gandía. O que faremos com aquele merda?

— Eu infelizmente preciso dele vivo ainda, apesar do que ele fez com Nairóbi. - o Professor respondeu soltando um suspiro. - E além do mais, se o matarmos estaremos jogando com a mesma moeda dele. E nós precisamos ser mais inteligentes que isso. Precisamos… de moedas novas, meu caro.

— Entendo. Mas o que você exatamente precisa que eu faça com ele?

— Precisaremos negociar com ele. Separe ao menos 5 quilos de pepitas para entregá-lo, acho que isso deve bastar. Vocês, Palermo, irão convencê-lo a ficar com todos vocês no Gabinete 3, pois ele tem uma saída que se conecta diretamente com a saída do Banco. Quando o horário marcado chegar, ele irá disparar em falso para o teto e se comunicar com a tenda, dizendo que conseguiu matar todos nós, e que os corpos precisam ser retirados. Então, colocaremos a Polícia em contato com algum dos paquistaneses, que irão estar a postos para retirar todos vocês naqueles caixões improvisados, para que fique evidente que não há mais ninguém.

— E os reféns? Precisamos deixar que eles saiam também, não?

— Gandía irá sair com eles depois pela entrada do Banco, porém não deixe que nenhum deles tome consciência do que estamos fazendo, pois poderão tentar encontrar alguma maneira de dizer que estamos mentindo.

— E você acha realmente, que em primeiro lugar, Gandía estará disposto a colaborar? O sangue que corre pelas veias dele deve estar fervendo de vontade de nos matar, mas não de mentira.

— Ele não será capaz de dizer não. Por trás de toda pessoa com um ar de valentia há um depravado em potencial. Mas saiba usar as palavras certas ao conversar com ele. Sejam firmes, imponham nossas decisões. Não deixem que ele pense estar tomando de volta o controle da situação.

— Entendido. Bem, preciso conversar com Manila agora. Ela estava me chamando. Entro em contato mais tarde se precisar. E tente ficar tranquilo, Sérgio. - Palermo disse em tom mais tranquilo. - O Plano da Vinci será um sucesso. Andrés ficaria orgulhoso.

O Professor então esboçou um sorriso melancólico ao lembrar de seu irmão e despediu-se, sem dizer mais nada. Virou-se e então olhou para Alicia, que estava atrás de si com as mãos cobrindo o rosto e apenas concentrando sua atenção em sua respiração, que ficava gradativamente mais ofegante. Era como se uma sensação diferente estivesse começando a dominá-la, e que não era igual à nenhuma das dores que já havia sentido antes.

— Você está bem? - o Professor perguntou olhando para Alicia, que parecia estar tentando entender o que passava consigo mesma.

— Não sei. - ela disse tentando se controlar e respirar direito. Era como se algumas dores, em intervalos de tempo curto e espaçado, chegavam e sumiam como em um ciclo contínuo. - Não quero continuar aqui sentada, preciso me deitar.

— Você não respondeu o que eu perguntei propriamente. - ele atestou antes que ela fizesse qualquer coisa. - O que está passando?

— Estou desconfortável, ora. Já ouviu falar em dor? Pois parece que não. - ela retrucou de maneira ríspida.

— Mas qual tipo de dor? Isso é o que quero saber. Isso não me parece bom.

— Uma um tanto quanto forte, eu diria. Na região da lombar, e parece estar chegando até a parte da frente também. - ela explicou cerrando os punhos e mordendo os lábios, pois aquilo parecia estar começando a se intensificando. - Caralho, está realmente ruim.

O Professor então retirou seus óculos e os deixou sobre a mesa, tentando processar as informações que lhe vinham à tona com a maior urgência possível. Ter que lidar com outras vidas em suas mãos não era fácil, ainda mais quando se estava em meio à um roubo de mais de 25 toneladas de ouro da reserva nacional.

— Ok, você consegue se levantar? - ele perguntou deixando o que estava fazendo de lado para ajudá-la.

— Sim, acho que talvez eu só precise de um pouco de… - ela falou arrastando a cadeira para trás de si, porém assim que fez menção de se levantar, sentiu um líquido quente e com cheiro forte começar a escorrer desde a região acima de suas coxas, molhando a barra de sua calça e o chão em questão de minutos. - Merda, merda, merda. - ela repetia continuamente ao presenciar aquela situação, sem acreditar que estava realmente acontecendo. - Não é hora para isso, porra...

Sérgio, por impulso também direcionou o olhar para ela, entendendo rapidamente o que aquilo significava. O momento havia chegado. O trabalho de parto de Alicia estava começando, contudo ela não imaginaria que iria ocorrer em condições assim. O que faria com seu acordo com o Professor? Teria que deixá-lo de lado? Em meio à tantas coisas que ela pensava que poderiam ocorrer dali em diante, o Professor tentava voltar a atenção dela para a realidade, pois ela parecia totalmente fora de foco.

— Alicia, se acalme ok? Você precisa estar preparada para qualquer tipo de...

— Não temos sequer a opção de aparecer em um hospital na circunstância em que estamos. - ela o interrompeu em tom grosseiro. - Sabe o que isso quer dizer, não é? Vocês terão que me ajudar aqui mesmo. 

— Mas... Alicia, eu jamais fiz o parto de alguém antes. - ele se explicou andando para próximo dela. - E duvido que Marselha também. Então podemos talvez…

— A mim isso me importa uma merda. - ela respondeu batendo a mão na mesa e pegando a arma de Sérgio, que estava sobre o jornal que ele lia antes de Alicia acordar. - Você não é o Professor?! O homem mais inteligente de toda a Espanha?! Então pense, caralho! Use o maldito Google, YouTube, seja lá o que for para me ajudar. Mas eu não penso em terminar este acordo sem estar com esta criança aqui a salvo. - ela falou puxando o gatilho da arma, disposta a apontar na direção de Sérgio se fosse necessário. - Caso contrário, nós dois iremos cair. E você um pouco mais prejudicado do que eu, pois eu sei exatamente tudo o que preciso sobre você. - ela atestou com certa raiva enquanto mordia seu lábio inferior, tentando não mostrar de forma explícita o quanto de dor estava sentindo, para que a situação continuasse fluindo ao seu favor. - Então, o que me diz? 

— Sim, nós… vamos te ajudar. Onde prefere ficar? No quarto em que você dormiu?

— Não. Aqui em baixo, o mais próximo possível do banheiro, caso vocês precisem sair do quarto. - ela disse apoiando uma das mãos na cintura e cerrando os dentes ao sentir as contrações ficarem cada vez mais fortes.

— Ok, então vamos. Caminhe devagar, por favor. - ele disse abrindo a porta para que Alicia pudesse passar.

Ela então pegou a arma e a colocou em seu bolso para levá-la consigo, e o Professor ao perceber isso ficou um pouco confuso.

— Pode deixar a arma sobre a mesa, Alicia. - ele pediu observando ela caminhar com certa dificuldade.

— Não penso em fazer um parto com vocês por perto sem ter uma arma como apoio. Se vocês me deixarem na mão, eu irei foder vocês o máximo que eu puder. Acho que já deixei isso bem claro.

O Professor então engoliu seco e sentiu uma gota de suor escorrer por sua testa, apenas concordando com um aceno.

Aquelas próximas horas iriam ser as mais inquietas e intensas de todos os três que estavam em Nenúfar.

Ou melhor: quatro. Pois aquele novo integrante do grupo seria um novo e fascinante divisor de águas para o futuro de todos.


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Notas finais do capítulo

(Obs: Música que a Alicia estava cantando, caso queiram escutar: Post Malone - Circles.)
E então? Gostaram? Quero saber as opiniões de vocês aqui em baixo também!
Mil beijinhos e nos vemos no próximo ♥️



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