A eterna guerra contra si mesmo. escrita por Ninguém


Capítulo 12
Você lê almas?




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Eren.

Não sei como dizer isso, mas parecia de alguma forma “errado” eu estar no refeitório da minha faculdade sentado numa mesa de plástico amarela com a propaganda de uma cerveja enquanto observava Liana comer salgadinhos e beber refrigerante com uma expressão despreocupada na face observando o movimento de acadêmicos. Durante uma semana o campus paralisou as aulas para organizar a estrutura do simpósio de ciência e cultura onde abarcaria várias palestras, seminários, oficinas e minicursos aberto ao público sobre os mais variados temas. A simples lanchonete mesmo, que era só um espaço com duas dezenas de cadeiras agora tinha sido ampliada para tomar todo o canteiro central abrigando um sistema alimentício de food trucks para suprir o aumento da demanda. Nosso reitor esperava pelo menos mil pessoas por dia circulando por aqui.

Não que eu me importe com a opinião dos outros, mas me pergunto se eu encontrar algum conhecido o que vou dizer a respeito de estar com uma mulher de cabelos azuis que chamava atenção de todos que passavam. Duas moças chegaram a parar e perguntar para Liana qual produto deixava a cor do cabelo naquele tom. Tudo bem, a moça bonita de cabelos estranhos não era nada comparada com o anel que pesava meu dedo anelar... não conseguia me acostumar com ele por isso ficava mexendo na aliança o tempo todo girando ela pelo dedo tentando disfarçar meu nervosismo.

Uma aliança idêntica se prendia ao dedo anelar de Liana. Sim. Nos casamos.

Três dias. Foram apenas três dias desde o evento no shopping, ela me levou para sua casa no campo, perdi minha virgindade depois fui abarrotados de informações surreais do tipo que só ocorre em animes ou naqueles filmes bem vagabundos. Claro, foi uma explicação superficial que apenas encheu-me com mais dúvidas. Após aquilo, Liana manteve-me em cárcere privada por um dia inteiro até que descemos para a sala de estar e um juiz aguardava com um grupo de pessoas para fazer o casamento no civil.

— Por que nos casamos? – perguntei.

— Casamento nesse mundo gera uma onda psicológica de estabilidade o que para nós dois será importante a fim de manter minha base de poder até que conclua minha missão.

Humana. Humana de outro mundo foi o que Liana explicou. Ela e os outros eram de uma espécie humana que habitava outro planeta em outra dimensão, uma forma de vida mais evoluída que transcendeu as limitações da existência e vive num lugar estável com um estilo de vida que satisfaz a coletividade como um todo. Os detalhes em si me foram confusos, mas eis o que entendi: ela não consegue habitar este plano em forma física por muito tempo, apenas alguns minutos, por essa razão eles precisam de algo que chamam de “âncora” que é um outro humano nascido aqui e que pode prover a energia que ressoa com a dela e permite manter a forma física.

Eu sei o que devem estar pensando: vamos ao básico do básico da cultura otaku: ela precisa da minha mana para manter seu poder. Sou sua fonte de energia e por alguma piada do destino o sexo fazia parte da etapa.

— E não podíamos apenas ter fingindo ter casado, não precisava ser de verdade.

Ela continuou olhando a sua volta.

— Se for fazer algo, faça bem feito ou não faça. É uma das diretrizes do meu povo. – seu olhar se foca em mim – não há com que se preocupar, após o final da missão vou embora e os advogados cuidarão do divórcio sem problemas.

— Para uma alien você parece saber muito sobre meu mundo.

— É claro que sei. Meu povo recebeu a missão divina de monitorar toda espécie humana que nascer em todos os diferentes mundo espalhados pelos mais distantes universos. Há milhões de planetas com humanos, e nós fazemos um monitoramento detalhados avaliando sua evolução como espécie.

Levo uma mão ao rosto. E aquela conversa de óvnis, sinais em plantações de milho eram tudo verdade... estávamos sendo observados. Só não imaginava que os ets fossem pessoas com a mesma aparência que nós. Outra piada de mal gosto.

— Ainda que concorde ter me casado com um et, não precisava ter ido lá em casa se apresentar a minha avó. Ela quase teve um troço de verdade ao ver que o neto se casou com um tipo de pessoa que ela mais detesta.

Liana pendeu a cabeça para o lado e sorriu.

— Sim, eu vi os padrões de alma dela e entendi na hora que a cor dos meus cabelos e o fato de termos nos casados sem a permissão dela realmente feriu seu orgulho distorcido. No entanto agora ela me ama, caso encerrado.

Tive de dar o braço a torcer. Minha avó a olhou com nojo durante quase toda a conversa até que Liana deu a ela um presente: uma caixa de uma joalheira cara com um colar de diamantes reluzentes na simples luz do ambiente. Depois Liana falou que era milionária, as empresas que tinha e quanto ganhava por mês, semana, dia, minuto.

— Aquilo é verdade? Vinte e cinco mil por minuto é muito mentiroso.

— É verdade – falou ela bebendo o terceiro copo de meio litro de Pepsi – para estabelecer uma boa base de observação buscamos controlar o potencial financeiro da sua civilização e é por isso que detemos do monopólio do fornecimento de energia elétrica do seu planeta. Usinas hidrelétricas, termelétricas, solar, nucleares, eólicas e todo o sistema onde se converte energia mecânica em elétrica. Diferentes empresas em diferentes países  pertencem a nós. Ah, mas não se anime tanto. Casamos com separação de bens, só que ao final da missão você receberá uma recompensa por sua colaboração. Cristina acredita que cem mil reais será bom, no entanto se for um bom menino e obedecer minhas ordens pode ficar com dez milhões.

— Não quero seu dinheiro.

Ela estancou, baixou o copo o pondo na mesa.

— Sem apetite por sexo, sem sedução por dinheiro, sem carisma em convivência social. Não sinto em você qualquer vontade ou ambição.

— Por que não tenho. Vontade, ambição é só uma desculpa que coloca pessoas sob uma pressão horrível irreal que as leva a pensamentos negativos.

Liana apoia o cotovelo na mesa de plástico pousando o queixo sobre a mão. Realmente seus olhos azuis combinavam perfeitamente com aquela cor de cabelo.

— Na curta investigação que fizemos sobre você vimos que aos sete anos sobreviveu a uma queda de avião que matou quase todos os membros de sua família que iam para um resort, trágico, depois disso se tornou uma pessoa alienada e perturbada que fez terapia por exatos sete anos aparecendo no consultório esporadicamente apenas para ceder as preocupações de sua avó. Não possui redes sociais, tem apenas um amigo escritor... sem registro de namorada ou qualquer outra relação ou filiação. Você é tipo... bosta dentro da água.

— Hã?

— Nem fede nem cheira. Cristina me deu só um resumo da investigação social, mas se não for sua incrível sorte sobrevivendo a uma queda de avião... sua vida é monótona, chata...

Ela pousa o olhar no meu braço direito.

— Lá na casa você dava uma resposta diferente sempre que alguém perguntava sobre seu ferimento enfaixado. Quando nossa médica foi analisar você não permitiu que tocasse nisso. Conversando com sua avó ela diz que você tem a mania doentia de enfaixar o braço e que não há nenhum machucado aí.

Coloquei meu braço junto ao corpo.

— Se fez a lição de casa direito sabe que eu sou doido. Pirado, com sérios problemas mentais.  Então não se importe com as manias de um louco.

Liana encarou-me fixamente.

— Não... você não é louco. Loucos renegam a realidade, o mundo dentro de suas cabeças acaba se tornando prioridade e por causa disso vivem em um inferno pessoal. Eu diria que você não vive o inferno pessoal... você o assisti. O observa.

— O que quer dizer?

— Agora que estamos ligados, a imagem de sua alma me revela mais do que qualquer outra pessoa. Entediado, falso, superficial, monótono. Quase não sinto emoção ou sentimentos dentro de você, é quase como se os tivesse escondendo por algum motivo. Pessoalmente não me importo, mantendo a ligação que deixa minha forma física estável nesse mundo já é o bastante.

Ponderei um pouco sobre o que ela falou.

— O que quer dizer com isso? Você lê almas?

— Hum? Ah... chamamos de almas a energia pura encoberta pelo ego. É uma energia saudável que revela a verdadeira natureza de uma pessoa, tipo a bula de cada ser humano. Como seres evoluídos, somos capazes de ver tais almas, embora também vemos a energia ruim que circunda ela.

— É isso que chama de ego?

— Exato.

— Qual a relação dos dois?      

Liana pondera por um momento.

— Vamos dizer que não é coincidência o ser humano dominar os mundos onde se desenvolve. A alma é uma característica particular da humanidade que permite a evolução como criatura ao mesmo tempo que mantém o equilíbrio com o ambiente e com as outras espécies. Já assistiu aquele filme dos bichos azuis com cauda...? Como era mesmo o nome... aqueles humanoides altos que vivem em outro planeta...

— Avatar.

— Esse mesmo! O criador dele foi influenciado por um dos nossos. A humanidade é regida por uma energia positiva que faz com que as criaturas vivam mais ou menos daquela forma.

Pisco várias vezes tentando entender.

— Como índios?

— Em um primeiro momento sim, mas a evolução da alma gera desenvolvimento do cérebro e consequentemente vem a tecnologia. – o semblante de Liana escureceu, percebi nitidamente a raiva emergir – mas aí um maluco do meu mundo simplesmente pensou ser mais inteligente que qualquer outro e quis ditar novos rumos para a humanidade.

— Como assim?

Liana respirou fundo acalmando-se.

—Bom... para te explicar isso vou colocar como exemplo sua raça nascida nesse planeta. Desde o surgimento do primeiro ancestral primata até o ponto evolutivo que se encontram hoje... quanto tempo acha que passou?

Puxei da memória algum dado vago sobre história.

— Cem mil anos?

— Cento e sessenta mil. Acha que é muito?

— Não sei dizer.

Seu olhar se intensifica.

— Não, não é. Cento e sessenta mil anos é muito pouco ou deveria ser muito pouco. Para alcançar tal ponto de evolução em que estão agora pode colocar aí uns 12 bilhões de anos.

Agora minha mente bugou.

— Como é que é? 12 bilhões?

— O desenvolvimento da alma que permiti a transcendência é um processo muito lento, porque ela age de acordo com o equilíbrio do meio em que está inserida. Mas vocês devem saber que a vida dos planetas está atrelada a vida da estrela que rege seu sistema solar, correto? O sol de vocês deve durar mais uns cinco bilhões de anos... isso não chega nem na metade necessária para a tecnologia avançar. Inevitavelmente ele seria morto e levaria esse mundinho azul com ele... ninguém no espaço além de nós saberiam que a raça humana se desenvolveu num ponto brilhante azul no meio do universo frio e escuro.

Ok, a história estava muito interessante apesar de parecer uma daquelas ficções científicas bem vagabundas.

— Muitas espécies humanas de muito mundos pereceram porque não conseguiram se desenvolver a tempo antes de sua estrela chegar ao fim da vida. Porque esse é o propósito da alma em evoluir... se desenvolver e sobreviver como espécie.

— Criando tecnologia para sair do planeta e encontrar outros lugares para viver. – confirmei.

— Exato. É um ciclo natural, mas um louco do meu mundo acreditou que a sobrevivência da espécie era mais importante e desenvolveu um meio de “acelerar” o processo de evolução criando uma energia de polo oposto a da alma que se nutri dela e é baseada no medo e no sofrimento.

— Medo e sofrimento?

— Sim, tomados por essas duas emoções negativas e primárias vocês inconscientemente se desesperam com a ideia de morte e rompem o equilíbrio com o planeta e com as outras espécies buscando meios de alcançar a imortalidade. – ela amassa o corpo vazio de refrigerante – a raça humana contaminada com a energia de Egoinis se torna deturpada, suja, violenta. Sua ganância só é capaz de ver o que está a sua frente e não se importa mais com seu semelhante. Vocês buscam meios pífios de se dividirem, de se sentirem superiores uns aos outros e aos animais que não conseguem enxergar a quantidade de mal que produzem principalmente a si mesmos e quando esse mal os ataca... se fazem de vítimas. O ego enraizado em suas almas fazem com que os humanos se tornem... lixo. Lixo radioativo capaz de contaminar outros humanos e outros planetas.

Ela falava um com ódio notório.

— Esse tipo de espécie humana não deve se proliferar pelo universo. A raça humana deve evoluir pelos meios certos não importa quanto tempo leve e nem quantos tenham  morrer. A criação foi perfeita, não poderia nunca ter sido maculada.

Engoli seco.

— Você... você faz a morte parecer algo trivial. Algo sem importância.

Liana franzi o cenho.

— Por que ela é, Eren. O ego em suas cabeças, o desespero do fim de sua existência fatídica os fazem ter uma noção errada sobre a morte. Diga-me... porque vocês a temem tanto se ela é um caminho inevitável? Qual a razão do medo?

Não consegui responder. Liana abre os braços.

— Observe a nossa volta! Quantas pessoas aqui não reclama da vida? Quantas pessoas saudáveis não estão insatisfeitas com alguma coisa? A vida para elas sempre tem algum defeito, sempre! Não sou bonita o bastante, magra, rica, famosa, amada... sempre falta alguma coisa, a vida é sempre imperfeita e ainda sim... vocês se agarram nela desesperadamente temendo a morte. Realmente... vocês me dão nojo.

Liana se coloca de pé.

— Não temos permissão de erradicar os humanos contaminados pelo ego porque em sete bilhões de pessoas nesse planeta existem atualmente 17 que se livraram completamente da corrupção desta emoção negativa. Ou seja, há esperança para uma minoria bem pequena.

Liana estende a mão para frente com a palma voltada para cima e uma esfera de luz começa a se formar. Meu primeiro pensamento foi de pensar o que essa maluca estava fazendo assim na frente de todo mundo, mas logo entendi a razão o que me encheu de desespero.

— Sabemos que nossos inimigos estão aqui, assim como sei que não há um único humano não corrompido pelo ego... ou seja... só há lixo aqui. Porque não incinerar?

Não tive tempo de fazer nada. A esfera imediatamente expandiu em luz e calor e tudo o que pude fazer foi fechar os olhos levando os braços a frente da cabeça. Quando a claridade baixou e o calor sumiu a primeira coisa que senti foi o cheiro de queimado seguido dos sons de escombros caindo e de gritos no horizonte.

Ao abrir os olhos presenciei uma cena que nem meu pior pesadelo poderia moldar. O espaço entre eu e Liana estava intacto, a mesa, os copos, os salgados, as cadeiras... até a grama sob nossos pés continuava verde.

Porém...

Porém...

Porém...

 A nossa volta havia uma cratera de terra fumegante e em alguma dezenas de metros formava-se um raio de destruição. Os prédios dos campus estavam em ruínas com alguns ainda pegando fogo emitindo uma densa fumaça negra, não conseguia ver ninguém e a quantidade de cinzas que subia aos céus agora nublado levavam-me a uma conclusão assustadora.

— Não pode ser real – falei a mim mesmo olhando o caos.

As cinzas dançavam com o vento parte delas impregnando em meu rosto... o que havia acontecido com toda aquela gente que estava por aqui... porque não há mais ninguém além de nós? Não conseguia acreditar, não queria acreditar.

Liana estralou o pescoço.

— Há um motivo para termos vindo sozinhos hoje. E também um motivo para eu não conseguir uma âncora tão fácil... eles dizem que sou má, cruel, fria. Isso é tudo uma questão de perspectiva penso eu porque apesar de sermos humanos somos totalmente diferentes. Sua raça, Eren, é destrutiva. Maligna. E não se combate o mal com o bem, se combate o mal com um tipo diferente de mal.

Ela deu a volta na mesinha de plástico tocando meu rosto com a ponta dos dedos, falando num tom tão suave que parecia até sedutor.

— Eu não sinto empatia por vocês por que a meu ver são falhos, um defeito causado por um dos nossos e por essa razão temos a obrigação de assumir a responsabilidade e cuidar disso. – ela limpa parte das cinzas em minha bochecha – eu aceito os adjetivos de ser má, ruim, perversa... eu tenho uma missão e você vai me ajudar.

Ela me dá um rápido beijo nos lábios e ainda sussurrando diz:

— Por que senão... o que acha que vai acontecer com todos que conhece?


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