Drania escrita por Capitain


Capítulo 8
Sonho


Notas iniciais do capítulo

desculpa pelo atraso, eu fiquei sem luz por um dia inteiro...



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Era pouco depois da oitava hora do sol*, e meu turno na taverna do Greg tinha finalmente acabado. Eu caminhava por uma ruela qualquer na zona norte de Vralgongard, pensando se eu deveria dormir por algumas horas, ou descer até o porto para passar o restante da tarde carregando navios e ajudando com os guindastes. Não estava particularmente preocupada, e talvez até um pouco alegre, já que eu recebera algumas gorjetas (uma raridade).

Eu andava distraída, na direção geral da parte mais pobre da região, onde ficava a casa decrépita cujo porão eu divida com outras duas garotas. Um calafrio familiar percorreu meu corpo conforme eu atravessava a divisa entre os bairros, e entrava na parte mais fria da zona norte. Conhecida simplesmente por vila da penumbra, aquela área era encoberta pela sombra da muralha norte a maior parte da manhã, e da muralha oeste durante a tarde toda.

Enquanto perambulava pelas ruas familiares, tratei de esconder o sorriso leviano de quem tem dinheiro no bolso, um hábito velho, que já praticava de maneira inconsciente, como era comum por aquelas bandas. Se você andasse por aí muito alegre, não demoraria para surgir um ladrãozinho qualquer, com algum caco afiado servindo de faca, e capaz de matar por um pedaço de pão. ou, se você tivesse muito azar, um atormentado. Mas não era bom nem penasar sobre eles.

Voltei a debater comigo mesma os prós e contras de descer ao porto, pesando-os contra as kiras** de ferro que receberia em troca. Passar a tarde carregando caixas com carvão, barris com peixes, tapetes vindos de Argoth, ou correndo dentro de uma das gaiolas cilíndricas que eram usadas para mover os guindastes, ao lado de meia dúzia de moleques suados. Eu decidi dormir. Até porque, eu ganharia muito mais á noite, no ringue, se eu estivesse descansada.

Eu estava tão absorta com esses pensamentos que não percebi o moleque até ele colidir comigo, e quase me derrubar no chão. Meus reflexos, no entanto, foram um pouco mais atentos, e eu consegui segurar o garoto pela blusa antes que ele saísse correndo. Todo mundo sabia que trombar com uma pessoa era um ótimo jeito de bater carteiras, e embora eu tivesse certeza de nunca carregar dinheiro de forma que ele pudesse ser roubado dessa maneira, meu reflexo era sempre segurá-los, enquanto eu checava se de fato havia sido roubada.

O moleque se sacudiu e tentou livrar-se da camisa para se libertar, mas segure-o pelo braço com firmeza e o estudei rapidamente. Ele tinha uns oito anos e aquele olhar desafiador de moleque encrenqueiro nos olhos pretos.

— Me solta! – ele disse, naquele tom indignado e insistente que só o as crianças encrenqueiras tem naturalmente.

— Aonde você tá indo com tanta pressa, hein? – eu indaguei. Ele tentou se libertar mais uma vez, e então cuspiu em mim.

— Não é da sua conta!

Ele não tinha roubado nada de mim, constatei, ao checar se minhas preciosas gorjetas ainda estavam nos seus lugares. E estava prestes a soltá-lo, quando a garota apareceu, descendo a viela em uma corrida.

Ela tinha mais ou menos a minha idade, uns onze, talvez doze anos, e estava muito bem vestida para alguém que vivia na vila da penumbra. Ela usava um longo vestido azul cheio de babados, botas de cano alto, luvas que subiam até a metade de seus antebraços e um daqueles chapéus ridículos que os ricos usam, cobrindo apenas metade da sua cabeça. Segurava o vestido com as duas mãos, para que não pisasse nele, e seus cabelos ruivos presos em complicadas tranças esvoaçavam atrás dela.

— Meu colar! – ela exclamava, com a voz entrecortada de quem corria por um longo tempo. – Alguém!

Não demorou muito para que eu somasse dois mais dois. O moleque roubara o colar da madame, e estava correndo dela. A moça parou perto de mim e curvou-se por alguns instantes, tentando recuperar o fôlego, enquanto apontava para o garoto. Eu o encarei nos olhos.

— Devolva. – Eu disse – agora.

Ele fez cara feia.

— Nem pensar! – ele saracoteou, tentando se soltar de novo – o colar vale pelo menos uma pequena de prata!

A garota, que já havia recuperado o fôlego, e pareceu insultada com essa afirmação.

— Foi um presente do meu avô! – ela disse – ele não tem preço!

Ela não estava ajudando.

— Me solte! – o moleque começou a gritar – se você não me soltar, eles vão aparecer!

Ele tinha razão. estávamos definitivamente chamando a atenção, e isso nunca era uma boa ideia, especialmente na vila da penumbra. Muito em breve, eles iriam aparecer, e eu não queria ter que encontra-los de novo tão cedo. Mas eu também não podia deixar aquela garota à mercê deles. Ela claramente não estava entendendo o perigo que corria naquele bairro, vestida daquele jeito.

— Vamos fazer o seguinte – eu tirei cinco moedas de ferro do meu bolso, erguendo-as para que ele pudesse ver – eu te dou essas, você devolve o colar, e todos nós saímos correndo daqui vivos. Que tal?

Ele não estava impressionado pela barganha.

— Mas é um colar de diamantes! – ele resmungou– eu consigo bem mais por ele no Khal.

— Seja realista – eu insisti, balançando as moedas em frente ao seu rosto – você nunca vai conseguir vender algo tão valioso nos barracos, eles iam te dar uma surra e roubar de você. Aceite o dinheiro, e devolva o colar para a moça.

Devagar, ele tirou o colar prateado cravejado de pedras brilhantes do bolso e estendeu-o para a garota, que observava tudo com um ar de confusa indignação. Ela recuperou o colar com um movimento rápido, e pôs-se a inspecioná-lo ali, no meio da rua, erguendo a peça de joalheria para tentar captar alguma luz. Realmente, a burrice daquela garota não tinha limites. Eu larguei o moleque, rapidamente lhe atirando as moedas, e corri para a garota, cobrindo o colar com as mãos.

— Ei! – ela começou a protestar. Mas eu não a deixei terminar.

— Esconda isso, agora! – eu exclamei – e corra!

Ainda com o ar de confusão em seu rosto, ela guardou a joia em um bolso do vestido. Eu nem sabia que vestidos como aqueles tinham bolsos. Mas aquele não era o momento de pensar nisso. Eu agarrei o braço da garota ruiva e arrastei-a para um beco próximo.

— O que você está fazendo? – ela me perguntou.

— Nós temos que sair daqui, ou eles vão nos encontrar – eu continuei segurando o braço dela até o fim do beco, onde havia um muro de tijolos e uma pilha de caixotes. Nada bom, pensei, olhando para o pesado vestido azul que a garota usava. – Você é uma menina rica. Não devia estar aqui.

Uma vez eu ouvi uma história sobre uma menina rica que tinha se perdido na zona norte. O corpo dela foi encontrado boiando no lago asalor um mês depois. Mutilado quase além do reconhecimento. E aquela garota estava prestes a seguir o mesmo destino, a não ser que eu conseguisse tirá-la dali.

— Mas...  

Havia uma razão pela qual a maioria dos ricos não saía da zona sul. A zona norte era onde ficavam as minas, e também onde ficava o restolho.

— Quieta! – eu a cortei – só faça o que eu digo, se não quiser morrer.

Algo no meu tom de voz deve ter da seriedade da situação, porque ela ficou quieta depois disso. Eu pensei por um momento.

— Vamos ter que amarrar o seu vestido – eu disse – ou ele vai enroscar pelo caminho.

Ela claramente tinha muitas perguntas, mas concordou com a cabeça, removendo a fita que se enrolava ao redor do seu chapéu ridículo e segurava ele no lugar. Boa ideia. Rapidamente, eu juntei as pontas do vestido dela e as amarrei na cintura com a fita. Ela ficou com uma aparência engraçada, como vestido do avesso chegando até a metade das coxas e as anáguas balançado ao vento sobre os joelhos, quase como uma água-viva.

Eu então escalei o muro e olhei do outro lado. Havia um pouco de mato, os fundos de uma casa velha e mais uma viela, que parecia vazia. Atrás de nós, na rua de onde viemos, veio o som nítido de portas fechando e janelas batendo, o som que anunciava a chegada deles. Era hora de correr.

— Rápido, suba aqui – eu entrelacei os dedos e me preparei ajudá-la a subir – vai!

Ela começou a escalar o muro de maneira desajeitada, enquanto eu me concentrava em tentar manter as minhas mãos firmes. Ela estava quase conseguindo quando eles chegaram, fechando a entrada do beco, com sorrisos maliciosos no rosto. Dois atormentados.

— Vai logo! – eu estava começando a me desesperar – pula logo!

Ela finalmente subiu no muro, colocando uma perna trêmula de cada lado, e segurando firmemente com as duas mãos. Sério, ela nunca tinha pulado um muro na vida? Eu subi em seguida, usando apenas as mãos, e parei de frente para a garota. Os dois homens continuaram descendo o beco devagar em nossa direção, com os olhos injetados de sangue e o sorriso predatório.

— Vamos – eu disse, me preparando para pular para o outro lado. A garota nem se mexeu.

— Quem são eles? – ela me perguntou, em pânico.

— Atormentados – eu disse – temos que ir agora, ou eles vão nos pegar.

— Mas – ela segurava o muro com tanta força que os nós dos dedos haviam ficado brancos – eu...

— Ei, mocinhas! – um dos atormentados falou com a voz embargada – esperem a gente!

— é agora ou nunca – eu pulei o muro, erguendo os braços pra ela do outro lado – eu te pego, pula!

Ela pulou. Em cima de mim. Nós caímos e rolamos pelo mato, o cotovelo dela me acertando no queixo, minha cabeça batendo no chão. Levamos um momento para levantar.

— Eu tenho medo de altura – ela disse, baixinho.

— Não tem mais – eu respondi – você tem medo deles, agora.

Não tivemos muito tempo para conversar, já que um par de mãos surgiu no topo do muro, seguido por um rosto sorridente. Eu agarrei a garota pelo braço de novo e comecei a correr. Demos a volta na casa, e eu disparei pela viela arrastando a confusa menina-água-viva comigo, dobrando esquinas e atravessando ruazinhas escuras na velocidade máxima.

— Para onde estamos indo? – ela tinha arranjado algum fôlego para me perguntar, no meio da corrida.

— Agora não! – respondi – eu explico quando chegarmos lá.

Viramos mais uma esquina e paramos, encostadas a uma parede de tijolos. Eu espiei pelo canto da parede. Eles ainda estavam lá. Longe, mas lá. Droga. Recomecei a correr, seguida de perto pela garota confusa, enquanto pensava no que fazer. Nós só tínhamos uma opção. Nos esconder. Ainda à toda velocidade, mudei de direção, correndo rumo ao fim da vila, para o antigo cemitério. Se conseguíssemos chegar lá, tinha um mausoléu em ruínas que eu já havia usado para me esconder antes, quando a coisa ficara feia.

O resto do caminho foi um borrão, correndo pelas ruas praticamente vazias, atravessando a cerca viva que demarcava o cemitério, encontrando o mausoléu, escalando a parede coberta de hera, desabando ofegante sobre um dos túmulos de granito. Lá, estaríamos seguras pelas próximas horas. Depois disso, eu daria um jeito. Um bom tempo se passou, em que nada se ouvia além da nossa respiração acelerada. Então eu levantei.

— Você é idiota? – eu esbravejei – o que diabos você estava fazendo no meio da zona norte desse jeito? você quer morrer?

— Mas, o meu colar... eu... – Ela claramente não entendia as dimensões do perigo que corria. – Eu... ele roubou meu colar, e eu só... eu não pude deixar de...

Ela começou a soluçar.

— Escute – eu recomecei – da próxima vez que alguém roubar o seu colar, volte para casa e chore lá. Pelo menos você vai continuar viva.

— Mas...

— Você é virgem? – eu perguntei, de repente. Ela até parou de chorar, com o choque. Se encolheu visivelmente e cruzou os braços.

— Isso é lá uma pergunta que se faça? – ela me encarava com os olhos arregalados – eu tenho doze anos! Sou uma sacerdotisa da Ordem! Eu não... eu...

— Bem você não seria uma virgem por muito tempo, se tivesse ficado lá em cima daquele muro – eu respondi, de forma seca – aqueles eram atormentados, nunca ouviu falar deles?

Ela assentiu, ainda mais assustada. Bom. assustada era bom. Com certeza ela já ouvira alguma história sobre os atormentados.

— Um monte deles vive por aqui – eu disse, depois de um tempo – viciados em restolho das minas. Eles ficam descontrolados quando acaba. Fazem qualquer coisa para conseguir mais. O restolho os rebaixa a animais – eu deixei-me cair sentada no túmulo atrás de mim – iriam arrancar qualquer coisa de valor de você, e depois...

Um silêncio pairou entre nós por um longo tempo. Por fim, ela começou a falar.

— Eu nunca tinha saído do meu bairro – ela disse baixinho – eu só queria ver como a cidade era antes... antes de... – ela soluçou – enfim, eu disse que ia na casa de uma amiga, e só... saí. Eu não sabia que isso ia acontecer, eu só queria...

— Aonde você mora? – eu perguntei, quando ela se acalmou – eu te levo lá.

— Na zona sul – ela respondeu, um tanto hesitante – na frente da praça das sacerdotisas, bem perto do templo da Ordem. Mas... eu vou estar muito encrencada se alguém lá de casa me vir desse jeito.

Olhei para ela. É, ela não estava mais limpa e arrumada como antes. Perdera o seu chapéu. Uma das luvas havia rasgado ao pular o muro, e o cabelo estava totalmente amarrotado, com gravetos e folhas presos às tranças ruivas. Isso sem falar do vestido coberto de manchas de terra, amarrado do avesso em volta da cintura e as anáguas desfiadas porque tinham enroscado nas heras.

Eu tive que rir.

— Ei! – ela reclamou – você também está toda suja e trapenta.

Eu concordei com a cabeça. Sim, eu com certeza não devia estar muito melhor do que ela. Mas pelo menos minha calça e camisa simples não ficavam tão ridículas quando sujas e amarrotadas.

— Vamos focar em te levar lá primeiro – eu disse – depois a gente pensa no que fazer sobre o resto.

Por um momento, ela ficou em silêncio.

— Obrigada – ela disse – por me salvar.

Eu estendi a mão para ela.

— Não foi nada – eu disse – eu sou Drania.

Ela apertou a minha mão.

— Meu nome é Alice.

 

 


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Notas finais do capítulo

*Os povos das quatro províncias contam o tempo em horas do sol (dia) e horas da lua (noite). as horas do sol começam a contar a partir do amanhecer, portanto a oitava hora do sol é mais ou menos às duas da tarde no nosso sistema.
** O sistema monetário é dividido em moedas pequenas (Kiras) e moedas grandes (Marcos). as moedas tem quatro nóveis diferentes, sendo eles Ferro, bronze, prata e Ouro. dez kiras de Ferro formam um marco de ferro, e dez marcos de ferro equivalem a um kira de bronze, e assim por diante.
e aí, o que acharam do capítulo? ficou muito dark? muito confuso? muito longo? ficou perfeito? não se esqueça de comentar com sua opinião, e até logo!