Drania escrita por Capitain


Capítulo 7
Memória


Notas iniciais do capítulo

Atrasado, eu sei



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Eu sempre tive uma boa memória quando era viva. eu podia lembrar de acontecimentos em detalhes, além de nomes, lugares e rostos. Nas ruas, ter uma boa memória não era um dom, e sim uma ferramenta de sobrevivência. Eu sabia quais eram as pessoas que me deviam favores. Os lugares aonde eu não era bem vinda. Os nomes e rostos de cada uma das pessoas de quem eu havia apanhado, as ruas, as praças, os telhados e os atalhos, cada parapeito, barraco e túnel de esgoto.

Todas as lembranças vão desaparecendo com o tempo. Elas vão ficando imprecisas, tortas, borradas, insípidas, descoloridas. O vazio que eu tinha na minha memória não era assim. Eu lembrava de tudo. E então... nada. O que eu estava fazendo no dia em que eu morri? Preto. Eu avisara Alice no dia anterior que eu iria para... Preto. Com quem eu falei naquele dia? Por onde eu passei? O que me levou até a muralha sul, o Lago Silmor, direto para a minha morte? Preto.

Só pensar sobre aquele vazio na minha cabeça me trazia um profundo mal-estar, uma sensação de urgência, uma ânsia por lembrar. Eu tinha que saber.  Mergulhei fundo nas minhas lembranças dos últimos meses, procurando qualquer outra falha que me trouxesse a mesma sensação de completo vazio. Minha memória estava lá, do jeito que eu a conhecia. Durante a semana passada, eu trabalhara seis dias na taverna do Greg, porque os pedidos na loja da Mira haviam diminuído, e ela tinha me dispensado.  Eu estava quase juntando dinheiro suficiente para me mudar para um quarto alugado na zona norte, e...

— O que você está fazendo? – Goroth apareceu do meu lado, e eu quase morri de susto.

— Nada – eu voltei a minha atenção ao orc – para onde estamos indo?

— A lugar nenhum. – Ele respondeu, apontado para o lugar de onde viera – Aurora precisa descansar. Vamos dormir e partir pela manhã.

Então ele decidiu ficar, assim do nada? E o tal do culto de Kraaz?

— Mas você disse...

— Foi uma mentira estratégica – ele voltou a caminhar em direção às árvores – para te incentivar. Apesar de que eu não achei que você fosse conseguir.

Eu comecei a segui-lo, deixando uma trilha de fumaça brilhante atrás de mim, e o orc pareceu surpreso com isso. Ao notar o meu olhar indagador, ele se justificou.

— Nunca tinha visto um fantasma flutuar desse jeito – Goroth hesitou por um instante e depois acrescentou – Você vai deixar uma trilha que eles podem seguir.

Droga, não tinha pensado nisso.

— Bem, eu não tenho pernas – eu disse – e isso foi tudo em que eu consegui pensar.

— Talvez seja a única solução - O orc concordou – estou surpreso que você já tenha tanto controle, tão cedo. Se me permite perguntar, há quanto tempo você está... bem, Morta?

— Algumas horas, talvez um dia – eu respondi – Em que lua estamos?

— Lua nova.

Espere. Lua nova? Eu tinha certeza de que era lua crescente na minha última semana...  eu vi a lua refletida no lago antes de morrer. Aquela era a lua cheia? Isso queria dizer...

— Um mês - eu disse. Um mês de vazio, no meio do qual eu morri, e no qual ao fim eu voltei como fantasma. Alice esteve me esperando por um mês. Será que eu cheguei até a janela dela? será que eu já falei o que tinha de falar? Um mês inteiro do qual eu não lembrava nada. As perguntas estavam se empilhando na minha cabeça, e a sensação de desconforto voltou, me instigando a correr, a fugir, a procurar. Procurar o quê?

Goroth interrompeu meus pensamentos com uma pergunta.

— Eu esqueci de perguntar – ele disse – qual é o seu nome?

— Drania – eu respondi. – Eu me chamo Drania.

— Prazer em conhece-la, Drania – ele ergueu a mão em um comprimento formal humano – eu sou Goroth, mas você já sabe disso.

 Eu assenti, e ele abaixou a mão. Por um momento, pensei ter visto uma mudança na expressão de Goroth quando eu disse meu nome. Algo no olhar dele expressou uma pequena fagulha de reconhecimento, mas ela sumiu tão rápido quanto apareceu.

— Você deve estar confusa – Goroth parou de caminhar, e eu percebi que estávamos em um pequeno acampamento na floresta – eu não tenho muita experiência com os mortos, mas isso eu sei com certeza. morrer é sempre confuso.

— Qual é o ano? – eu tive que perguntar. Talvez tivesse se passado um século, um milênio desde que eu morrera, e Alice não existisse mais – Qual o ano? Eu repeti, mais alto.

— 4692, pela conta dos Humanos – Goroth respondeu – 6112 pela conta dos anões.

Fui inundada por uma sensação de alívio. Pelo menos ainda estamos no mesmo ano, pensei. Só tenho que voltar a Vralgongard, e tudo vai ser resolvido. Eu só precisava chegar lá.

Goroth tinha acendido uma pequena fogueira em um buraco no chão, e ele agora cozinhava um ensopado sobre o fogo, enquanto Aurora dormia profundamente em um dos cantos mais afastados. A panela e utensílios que ele usava eram ridiculamente pequenos para o seu tamanho, mas o ensopado parecia muito bom.

— Eu não posso fazer muito para te ajudar, Aurora com certeza é muito melhor nisso – Ele pegou a colher minúscula com a ponta dos dedos e provou o seu conteúdo, fazendo um gesto de aprovação. – Mas eu posso te oferecer um ensopado. – Ele pegou uma tigela, enchendo-a com a sopa fumegante, e estendeu-a para mim. – E uma conversa.

Eu estendi as minhas mãos. E com um poco de concentração, eu estava segurando uma cópia exata da tigela de sopa, que Goroth tomou inteira em um único gole. A tigela estava quente ao toque, e agora eu podia sentir o cheiro da sopa. Infelizmente, a cor da cópia ainda era o mesmo roxo-magenta translúcido, mas o sabor era divino. O orc tinha talento para cozinhar. Eu duvido que eu tenha comido algo tão bom na minha vida inteira, e acredite, eu estou qualificada para dizer isso, já que eu estou morta.

— A sopa está ótima – eu disse – você e a Aurora fariam um ótimo casal, ela faz chás deliciosos.

Goroth não teve reação alguma ao meu comentário.

— Então – eu tentei de novo – essa coisa na qual você e Aurora precisam da minha ajuda. O que exatamente vocês querem que eu faça?

— É um assalto – Goroth respondeu – embora ainda não saibamos quando e onde.

Ok. Aquilo não explicava muito. Mas estranhamente, essa não foi a primeira coisa que veio à minha cabeça.

— Eu não roubo – eu disse com firmeza. Goroth ergueu uma sobrancelha.

— Por essa eu não esperava.

Claro, já estava demorando. Transmorfos não tem noção de certo ou errado. Transmorfos não tem alma. Transmorfos não são capazes de amar. Todos os Transmorfos são ladrões, prostitutas e assassinos.

— E o que você esperava? – perguntei, sem conseguir evitar o veneno na minha voz – uma ladra de crianças?

Ele pareceu confuso com a raiva no meu tom de voz.

— Desculpe, mas porquê... – ele notou as marcas nos meus braços – ah... Você é uma transmorfa. Agora eu entendo.

— O que você quer dizer com isso?

— Minhas sinceras desculpas – Goroth ergueu as mãos em um gesto pacificador – eu não pretendi ofendê-la, nem à sua raça.eu só... veja bem, eu sou um orc, Aurora é uma bruxa. Eu não estava falando da sua raça quando disse que estava surpreso, só confuso a respeito do porquê Aurora não escolheu... bem, um ladrão.

Ah.

— Tudo bem, eu só... – eu procurei as palavras certas – eu achei que...

Ele sacudiu a cabeça, com uma expressão suave em seu rosto.

— Não se preocupe.

 Então, para onde vamos amanhã? – eu tentei salvar a conversa pela terceira vez. Dessa vez pareceu funcionar.

— Amanhã de manhã, nós vamos até um lugar seguro – Goroth disse – fica a um par de milhas à sudoeste. Vamos nos esconder lá até descobrirmos porque o Culto de Kraaz nos atacou, e o que faremos em seguida.

Estávamos indo na direção oposta ao lugar que eu queria ir. Mas no fundo, eu sabia que era a decisão certa. Aqueles malucos estavam atrás de mim, e Aurora se machucou tentando me defender. Eu não queria leva-los para perto de Alice.

— Ok. – Eu hesitei – Aurora vai ficar bem?

Goroth assentiu.

— Embora eu não saiba usar magia, eu sei fazer poções muito bem. -  Ele sorriu – Além disso, Aurora é um osso duro de roer. Em uma semana, ela já estará totalmente recuperada.

ficamos em silêncio por mais uns minutos, enquanto eu terminava de tomar minha tigela de sopa, assistindo o crepitar do fogo. A floresta ao nosso redor estava imersa em um silêncio profundo e desconcertante, como se reclamasse da violência que houvera a pouco. Em algum lugar na distância, uma coruja deu um único pio.

Logo, o fogo era a única coisa que eu conseguia ouvir, o estalar rítmico dos gravetos, as brasas roçando umas com as outras ao mudar de lugar. Sem nem perceber, eu fui escorregando para uma sensação quente de conforto e segurança, como eu não sentia a anos. Eu me entreguei e fechei os olhos, mergulhando em um sono profundo, e me perguntando como alguém seria capaz de me acordar pela manhã.


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