A Herdeira do Oceano escrita por carlotakuy


Capítulo 4
Lendas antigas




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/788645/chapter/4

Assim que eles chegaram no convés do navio, diferente de homens trabalhando sujos e suados, uma melodia de flauta ecoou para além do mar e todos os marujos se encontravam limpos, ou o mais limpo que um navio pode permitir a seus homens permanecer.

Alguns pulavam e dançavam ao som da flauta enquanto outro homem tentava pegar o ritmo com um pequeno tambor. No espaço mais afastando, próximo às escadas, alguns homens jogavam​ baralho e entornavam, animados, grandes copos de rum.

A lua, majestosa no céu, iluminou como ninguém a embarcação e Lia pôde ver com mais detalhes a mesma. Era preenchida de madeira escura e as velas negras farfalhavam com o vento forte. Era um navio bonito, a jovem pensou, apesar de seu interior ser excessivamente sujo.

Assim que Lia entrou no campo de visão dos homens ali dispostos uma grande parte correu até ela, agradecendo e sorrindo, nomeando-a como a garota que iria salvar o capitão. E ela realmente desejou que fosse essa garota, se não precisaria de alguém para salvá-la.

Em respostas aos marujos Lia sorriu, aceitando suas mãos e assentindo a qualquer coisa que eles falavam. Logo a pequena multidão se dispersou e um homem entregou um copo grande para ela e o encheu rapidamente com rum.

Lia tentou beber em rápidos goles e a bebida desceu quente em sua garganta. Ela fez uma careta enorme e Kevin riu ao seu lado, fazendo-a dar língua para ele. Guiando-a entre cordas e baldes ele a levou até o outro lado próximo a popa e a sentou em barris improvisados para assento.

A primeira pergunta de Lia foi sobre as velas, em seguida perguntou sobre o casco e sobre o timão. Riu depois do segundo copo quando o assunto mudou para as histórias que Kevin contava sobre cada um dos homens que passavam​ perto, desde de sua maior queda à fuga de maridos enciumados.

O riso da garota era contagiante, Kevin percebeu, e se sentiu impelido a fazê-la rir o máximo que conseguisse, esgotando cedo demais suas histórias e piadas. Lia, a garota dos grandes olhos verdes, parecia brilhar à luz da lua naquele vestido preto e justo. Ele lhe caia perfeitamente, mas não parecia fazer jus ao corpo que cobria.

Ele a imaginou de muitas outras formas além de vestido e se repreendeu por estar tão extasiado com aquela estranha. Mas quando ela riu novamente​, sem motivo, qualquer reprimenda desapareceu e ele lhe correspondeu ansioso pelo próximo assunto.

Lia foi puxada para dançar por três marujos, bêbados além da conta, e ela não pestanejou quando foi guiada pelo piso escorregadio com braços fortes ao seu redor. Um dos homens foi o pirata que a conteve no dia anterior, loiro e forte, e ela o ouviu se desculpar diversas vezes, bêbado e choroso, pela agressividade.

Nenhum dos piratas que dançou com ela aparentou ser terrível, perigoso ou cruel. Lembravam-na marinheiros humildes ou até mesmo os pescadores de sua ilha. Um deles falou sem parar sobre os peixes que havia pego durante a vida, exagerando vez ou outra no tamanho e na raridade deles.

Sem perceber Lia se divertiu, apesar de estar presa, apesar de todo resto. A lua brilhava acolhedora e ela dançou, sem parar, no convés olhando vez ou outra para o loiro apoiado nas escadas que levavam ao timão.

Assim que terminou a última dança ela se apressou para perto de Kevin e desabou nos degraus ao lado dele.

— Meus pés estão me matando!

— Você ainda tem muitos inscritos para a próxima dança – brincou.

Lia riu.

— Inclusive eu.

Sentando ao lado dela o loiro tomou a mão da jovem entre as suas, beijando-lhe o dorso.

— Se quiser, claro.

Novamente​ ela riu, mas encaixou sua mão na dele.

— Você é um típico galanteador quando não está calado.

— Considerarei isso como um elogio – Kevin rodou os dedos dela em sua mão – me concede essa dança?

Sorrindo, com o rubor preencheu todo seu rosto, ela assentiu. O álcool a deixava zonza, mas Lia não sabia dizer se era exclusivamente efeito da bebida ou se seu companheiro de rum tinha algo a ver com isso. Seus cabelos, seus olhos e seu rosto pareciam um caminho só de ida para o pecado e ela não tinha muita certeza de sua castidade.

Eles foram até a área em que outros homens dançavam, animados, assim como o capitão. Lia o olhou ao atravessar o convés rindo e conversando com seus marujos. Ele tinha um sorriso no rosto e bebia rum com uma facilidade incrível. Não parecia alguém sem coração.

A jovem só afastou os olhos de Pierre quando Kevin a puxou para si, encostando seu corpo no dela. A respiração de Lia se tornou descompassada pelo calor que lhe tomou e o loiro sorriu, sabendo exatamente qual efeito provocava nela.

— Me permite essa dança, Liana?

A voz dele, tão perto, despertou todos os sentidos de Lia. E num instante ela se viu respondendo-o, com o corpo inclinado inconsciente sobre ele.

— Só se me chamar de Lia.

O sorriso de Kevin varreu o corpo da jovem em agitação.

— Lia – sussurrou o mais próximo que pôde do ouvido dela e a viu se arrepiar.

Correspondendo-o ela assentiu endireitando seu corpo bêbado sob o dele. Kevin dançou a música como se fosse uma valsa e rodopiou com Lia pelo convés ao som dos risos dela.

Assim que a música acabou e Lia ameaçou cair o loiro envolveu sua cintura com segurança, puxando-a para si. A respiração de ambos se sincronizou e pelos céus como Lia quis que ele a beijasse. Fazia tanto tempo que não tinha sequer um namoradinho que quase se sentia esquecer como era a sensação de boca contra boca.

E tantas outras coisas.

Mas ainda havia alguma consciência dentro dela, então Lia sorriu e se aprumou, ficando o mais reta que o álcool lhe permitia ficar.

— Acho melhor ir dormir.

— Amanhã o dia vai ser longo – ele levantou sua caneca e Lia entendeu a referência, gemendo de dor.

— Eu não acredito que esqueci esse pequeno detalhe.

— Boa ressaca amanhã, Lia – ele a soltou lentamente – a verei no café da manhã?

— Sairemos de nosso cárcere?

— Era apenas uma medida preventiva para que não fugissem.

A confusão no rosto dela o impeliu a continuar.

— Antes, estávamos próximos da costa. Agora estamos em alto mar – Kevin sorriu de lado – muitos​ quilômetros até o próximo pedaço de terra, senhorita.

Lia assentiu encontrando o sentido. Eles realmente haviam pensado em tudo.

— Então, até o café da manhã.

Com um aceno Kevin se afastou e Lia chiou para si mesma, resmungando que ele poderia ao menos levá-la até a porta do quarto. Depois de se despedir coletivamente e acenar com a cabeça para o capitão, que sorriu, ela desceu as escadas que levavam ao quarto que estava com sua irmã e Cadu.

Entrou silenciosa, vendo Ana e Cadu dormindo abraçados num pedaço do colchão. Se deitou sem fazer nenhum alarde e respirou fundo quando sentiu a maciez contra suas costas e agradeceu a Pierre pela pequena hospitalidade daquele quarto.

Lia até tentou pensar sobre seu futuro, ou sobre o que aconteceria a seguir, mas estava cansada e o álcool nublou seus sentidos antes que ela percebesse. Afundando no acordo recém fechado a jovem dormiu, um sono tranquilo que ela não tinha há muito tempo.

••

O dia seguinte foi o inferno para Lia, com o balanço, o enjoo e a dor de cabeça. Faltou ao café da manhã que havia combinado com Kevin, ainda que lembrasse vagamente disso, e afundou em autodepreciação quando seus amigos saíram.

Havia flertado descaradamente com o loiro na noite passada e pensara até mesmo em beijá-lo, se não coisa muito pior. Grunhindo contra o travesseiro amaldiçoou o álcool. Não estava tão desesperada assim. Não pra ter um caso amoroso com o pirata que havia sequestrado sua irmã.

Ainda que este tivesse prometido também protegê-la.

Kevin era bonito, sim. Tinha um corpo que Lia gostava e até seu cheiro, algo de ervas e sabão, lhe deixava zonza. Suas sobrancelhas arqueadas enquanto ela ria e o sorriso em seus lábios também eram muito convidativos. Assim como a boca...

Voltando a gemer contra o travesseiro ela se xingou.

No mesmo instante batidas na porta chamaram sua atenção.

— Não imaginei que estaria sofrendo a esse ponto – o sorriso que a assombrava estava ali e, Liana agradeceu, não parecia tão fatal quanto sua mente bêbada a fazia acreditar – pensei que fosse acostumada a beber. Virou três copos e não vomitou, foi uma boa primeira impressão.

— Acho que foi só impressão mesmo – ela murmurou ainda deitada, com os olhos semiabertos.

Kevin quis rir da condição da garota, mas se aproximou da cama, que cheirava excessivamente a álcool, e colocou na frente dela comprimidos para ressaca. Os olhos dela brilharam.

— Isso vai ajudar.

Lia murmurou um obrigada sentando no colchão, ainda com a mão sobre a cabeça.

— Está agindo assim todo legal por algum motivo específico ou só costuma ser gentil com as jovens sequestradas no seu navio?

Ainda que tivesse um sorriso no rosto o que quer que passou pelos olhos de Kevin intrigou Lia. Houveram outras jovens?

— Gosto de pensar que essa é minha natureza – ele deu de ombros – um rapaz másculo, forte e de grande coração.

Lia riu, ainda que sua cabeça explodisse, o levando com ela.

— Vá, tome o remédio e descanse, ainda teremos um longo caminho pela frente.

Kevin levantou.

— Acha que consegue pelo menos ir jantar?

A jovem abriu um sorriso sofrido.

— Se eu sobreviver, sim.

Com mais um de seus sorrisos o loiro acenou e saiu, fechando delicadamente a porta atrás de si. Sem hesitar Lia engoliu os dois comprimidos e deitou na cama, cobrindo os olhos com o antebraço. A claridade parecia cegá-la e as ondas só pioravam a situação.

Silenciosamente Lia desejou que aquilo passasse logo e sentiu algo quente a envolver. Não notou, antes de adormecer, que já não sentia qualquer náusea depois de seu pedido, mergulhando num sonho que ela conhecia bem.

Mar, o vento salgado, longos cabelos ruivos. Uma gargalhada rouca e o vislumbre do pôr do sol.

Lia acordou sobressaltada, ainda que se sentisse preenchida de tranquilidade. Olhou para os lados, procurando Ana ou Cadu, mas não os encontrou. Respirou fundo voltando a deitar e só então notou que já estava melhor da ressaca.

Arriscou, depois de certa de sua condição, a sair do quarto e vagou pelas escadas até a parte superior. Surpreendeu-se ao ver Cadu carregando baldes com peixes e Ana rindo ao lado de alguns piratas, quando o rapaz deixava um deles escapar.

Lia sorriu automaticamente com a visão e uma sombra surgiu no seu periférico, com sua barba e seu sorriso torto.

— Bom dia, senhorita Lia. Está se sentindo melhor? Ouvi que não se deu muito bem com o rum da noite passada.

Ela fez uma careta.

— Ele também não se deu muito bem comigo.

O capitão riu.

— Você realmente parece uma garota difícil.

Lia levantou a sobrancelha pela resposta.

— Pareço?

— Você tem uma resposta pra tudo – ele não reagiu a expressão surpresa dela – e sabe sair de situações com muita habilidade. Como percebeu que Kevin é meu filho?

A jovem olhou para o loiro, próximo ao timão, e pensou sobre a pergunta.

— Vocês têm a mesma expressão no rosto e alguma coisa na orelha dele me lembra a sua – Lia olhou avaliativa o homem ao seu lado – e tem também esse movimento que seu rosto faz quando você sorri que está nele também.

Pierre sorriu satisfeito.

— Mas não sabia que eram pai e filho – adiantou-se​ – no máximo descobri seus laços sanguíneos.

— Então suas palavras na cabine foram um golpe de sorte?

O sorriso de Lia foi travesso.

— Acho que usei minha cota de sorte do ano.

O capitão riu, alisando inconscientemente a barriga, e concordou com ela, balançando a cabeça. O sol estava alto no céu e tudo que se via ao longe eram longos quilômetros de água, uma água cristalina, límpida e brilhante.

Lia inspirou o ar salgado e um sorriso lentamente preencheu seu rosto. Desde pequena ela sempre estivera envolvida com o mar. Fosse nas embarcações de seu pai, nos banhos de praia com sua família ou nas competições de mergulho com Cadu.

O sal do mar estava impregnado na pele de Lia. E ela gostava disso.

— Para onde estamos indo, capitão?

— No momento iremos atracar na ilha de um amigo – algo nos olhos castanhos diziam que essa pessoa era importante – para deixar as pilhagens que conseguimos e nos reabastecer.  Depois – houve hesitação em sua voz – seguiremos para o lugar que os mapas antigos indicam ser o local onde Nagisa guarda seus tesouros.

À menção daquele nome um arrepio correu o corpo de Lia e ela assentiu, ainda olhando a paisagem deslumbrante ao redor. Como podia existir algo sombrio e maldoso num mar tão sereno e puro?

O coração da jovem apertou.

— Por hora, aproveite a viagem. O jantar essa noite será servido aqui, no convés, espero que se sinta melhor para desfrutar dos pratos de nosso cozinheiro. Ele é um homem taciturno, mas seus pratos são uma delícia.

Pierre falou com carinho do homem, Lia percebeu e sorriu. Ele era um bom capitão para seus homens.

— O último jantar foi maravilhoso, também. Não espero nada menos do de hoje. O comerei com prazer.

Acenando o capitão se afastou, entrando​ em sua cabine. Olhando ao redor e vendo refletida em todo lugar o azul cintilante do mar Lia se aproximou de Ana e se inteirou do que se passava com Cadu, que havia apostado com um dos marujos sobre peixes e baldes.

Ela riu junto com a irmã, mas seus olhos a atraiam, vez ou outra, para o loiro na plataforma acima da cabine. Um homem largo controlava o timão, mas Kevin lhe dizia coisas que o faziam vez ou outra assentir, manobrando. Ele ainda estava tão bonito quanto na noite passada, com uma roupa leve e escura, em contraste a seus cabelos e beleza bronzeada.

Lia, por sua vez, já estava novamente usando seus shorts, mas escolheu estrategicamente uma blusa mais bonitinha do que a que usaria usualmente. Nada tinha a ver com o fato de pretender flertar futuramente com o loiro, tentava dizer a seu cérebro, mas ele lhe desmentia automaticamente.

•••

— Você o que?

A voz de Cadu soou alta e estridente, mas o quarto fechado ocultou o barulho de sua raiva. Ana estava sentada na ponta da cama, apreensiva, e enrolava sem parar o lençol entre os dedos.

— Eu fiz um acordo com o capitão – Lia repetiu, firme – ele acredita que sou filha de sua ex, uma deusa do mar. Me pediu para encontrar seu coração perdido e é isso que eu farei.

— Não devia ter feito um acordo desses – grunhiu Cadu, andando de um lado para o outro – pode custar sua vida e nem ao menos sabemos se é verdade ou não!

Lia o encarou determinada e Ana segurou a mão do garoto, tentando acalmá-lo. Com um só toque ela conseguiu.

— Não aceitar poderia ter custado a nossa vida!

— Ela tem razão Cadu – Ana o puxou para sentar na cama – o melhor que podemos fazer agora é pensar numa forma secundária de irmos embora.

Aquelas palavras pegaram Lia de surpresa. Apesar de ter praticamente se lançado numa empreitada que poderia levá-la a morte ela não cogitou fugir. Estivera sempre tão determinada em tudo que aquele tipo de caminho parecia impossível.

E estranhamente doloroso de se pensar.

Cadu pareceu avaliar a situação.

— Sim, realmente, tem razão – ele devolveu o toque de Ana.

A imagem a frente de Lia, a mesma que tantas vezes a tinha incomodado, não surtiu qualquer efeito. Ela se surpreendeu com aquilo, já que tivera aquela pequena fagulha de ciúmes dos dois desde que havia se apaixonado por Cadu na infância.

Mas isso era bom, pensou. Não mais sofreria vendo a felicidade da irmã. Não era justo, nem consigo, nem com ela. Nem mesmo com o pobre garoto que desde sempre havia sido perdidamente apaixonado pela morena. Sorrindo Lia aceitou a realidade e encerrou o assunto.

Saiu da cabine para deixar o casal a sós e, sem saber muito por onde ir, explorou o primeiro andar inferior. Era mais arejado que o de carga e bem menos sujo. Haviam poucas portas, mas como havia espiados com o amigo a maioria eram de quartos, em geral compartilhados.

Uma porta entreaberta, próxima a escada, chamou a atenção de Lia. Ela espiou pelo vão entreaberto e quase soltou uma exclamação. Lá dentro haviam prateleiras e prateleiras de livros.

Escancarando a porta ela adentrou no cômodo, notando, no instante seguinte, uma cama larga mais afastada. Os lençóis, os mesmos que tinha em seu quarto do navio, preenchiam a mesma e uma janela redonda, maior do que todas que ela havia vistos, refletia o oceano em toda sua magnitude.

Havia um cheiro familiar no ar, mas ele não chamou sua atenção tanto quanto os exemplares nas paredes. Até mesmo uma escrivaninha, no meio de todos eles, estava abarrotada de livros e Lia se questionou sobre o prejuízo de molhar tantos livros em uma tempestade.

Mas quando começou a ler suas capas ela entendeu o que eles faziam no navio ou a origem dos delírios sobre deuses do capitão. A maioria falava sobre lendas antigas, sobre maldições e espíritos do mar. Alguns se aventuravam na magia vodu enquanto outros acusavam a bruxaria por aparições e cataclismos.

Lia correu os dedos por vários livros, de um lado a outro, meio submersa na biblioteca particular do capitão, até estancar ao tocar na capa de um deles. Era pequeno e todo preto, e a garota não teve dificuldade de tirá-lo da prateleira.

Dizia falar sobre amuletos e talismãs, mas antes que a parte racional de Lia o colocasse de volta no lugar, ela o folheou. Foi nesse instante, enquanto as páginas passavam apressadas na frente dos seus olhos, que Lia viu.

Suas mãos foram rápidas e arquejando a jovem vislumbrou, na página de um dos milhares de livros daquele lugar, o colar em seu pescoço. Ela tocou nele automaticamente e leu com ainda mais rapidez as páginas, curiosa e assombrada.

Segundo o livro o colar tinha propriedades mágicas e, feito pelos espíritos do mar, guardava consigo grande parte da magia dos oceanos. Era um amuleto acima de tudo e resguardava seu detentor, trazendo proteção e força. Foi um presente de Netuno à uma de suas amantes, mas desapareceu antes mesmo de se fazer ser visto.

Balançando negativamente a cabeça, ainda que seus olhos encontrassem todas as semelhanças, Lia não quis acreditar. Era coincidência estar usando aquele colar? Ou estar com ele e acabar envolvida naquela história maluca de coração e Deusa do mar?

Não fazia sentido, mas o âmago de Lia lhe dizia o contrário. Naquela tarde, no centro, algo a chamou até aquela banca. O colar a chamou e a reivindicou, assim como ela a ele.

Havia algo ali, mas Lia não queria pensar nisso. Então com cuidado depositou o livro de volta à prateleira, suspirando em seguida. Até mesmo encontrar o livro havia sido algo inexplicável.

Talvez ela fosse mesmo a filha de uma Deusa do mar...?

— Toc, toc.

A voz de Kevin despertou Lia de seus devaneios e ela virou-se para ele surpresa, vendo o sorriso que percebera gostar muito nele estampado em seu rosto.

— Atrapalho?

— Na verdade, não – ela olhou ao redor – é seu quarto?

A resposta veio antes que ele respondesse. Sim. O cheiro familiar que ela sentira era o de ervas e sabão que o loiro ostentava. Não era o quarto do capitão então.

— Sim, gostou? – o loiro entrou também olhando ao redor – São muitos livros e muitas histórias que guardo aqui. Ficou interessada?

Lia sorriu de lado, adorando a forma como a boca dele lhe convidava a fazer isso sempre que ele proferia qualquer palavra.

— Sim, muito. Como pode haver tantos livros num navio? Eles não molham? E quando tem tempestades? Quanto tempo demorou pra conseguir tudo isso?

Kevin riu das perguntas da mesma e sentou preguiçoso na cama, desforrando-a ainda mais.

— Uma pergunta por vez, sou um único homem.

Lia o acompanhou até a cama, afoita, e sentou ao seu lado.

— Estou esperando, Kevin, um homem só.

A risada dele preencheu o vão e Lia gostou. Gostou da forma como ele lhe respondia, de maneira clara e concisa suas perguntas. Sim, os livros molhavam quando haviam​ tempestades, mas não ficavam todo o tempo dentro do navio. Só estavam ali porque eles haviam encontrado pistas sobre ela e qualquer coisa poderia servir para isso.

Lia sentiu que havia um alvo em suas costas quando o loiro a contou sobre isso, mas a sensação passou rápida tão logo ela o ouviu dizer que haviam levado muitos anos para conseguir reunir todos os exemplares.

— Mais ou menos quanto?

— Sobre lendas, uns dez. Os outros vieram ao longo dos anos, pouco a pouco, quando achávamos que nos ajudaria.

— Há quanto tempo o caso tórrido do seu pai aconteceu?

O sussurro de Lia denunciou sua sensibilidade com o assunto, que chegou até a assustá-la. Ela achou que toda a história sobre Deusas havia sido há pouco tempo, não dez anos atrás. Se fosse assim e Pierre estivesse sem coração a mais tempo...

Por quanto tempo ele teria sofrido por isso?

Um sorriso triste cruzou os lábios do garoto.

— Dezesseis anos.

A respiração de Lia ficou presa em sua garganta e ela olhou para Kevin de cima a baixo, tentando calcular sua idade. Sem precisar ver o que ela fazia, o loiro lhe respondeu.

— Tenho vinte e cinco anos, Lia.

Ela assentiu ainda em choque. Kevin tinha apenas nove anos quando seu pai perdera o coração e fora enganado. O que uma criança teria achado da situação? Ele era apenas um menino quando essa busca incessante começou.

Um menino!

— Não precisa parecer tão abalada – Kevin soltou uma risada sem humor.

— Não consigo parecer outra coisa – admitiu virando-se para ele – que tipo de pessoa horrível é minha mãe?

As palavras de Lia surpreenderam o garoto. Vê-la chamar a Deusa de sua mãe, de forma tão natural, só mostrava o quanto estava engajada naquilo. Seria ela a verdadeira​ herdeira? Ou só mais uma impostora?

Ele olhou fundo nos olhos dela.

— Quer saber as histórias sobre ela?

Lentamente Lia assentiu. Não sabia se queria, mas quando Kevin começou a contar, parecia necessário. Não podia se envolver em algo tão gigantesco sem saber nada sobre suas supostas raízes. E raízes tão escurecidas.

Kevin contou que Nagisa foi amante de Netuno, Deus dos mares, e foi uma de suas preferidas até. Mas apesar do poder e do ouro ela queria mais, então enganou o grande Deus e conseguiu o controle sobre um dos oceanos. Era exatamente nele em que eles estavam e Lia sentiu um arrepio com a percepção.

Nagisa teve muitos amantes, desde humanos à deuses menores. Um tritão forte e poderoso dos seus domínios foi um de seus mais destemidos parceiros, mas morreu de forma trágica numa guerra que ela mesma arquitetou para tomar outro reino submarino.

Lia perguntou sobre a organização embaixo da água, mas Kevin não conseguiu lhe explicar. Haviam escritos que diziam que Nagisa conseguiu o controle de um oceano inteiro só enganado Netuno, mas outros falavam de batalhas e guerras, de controle e dominação. Era uma mulher bela e perigosa, assim como ardilosa e calculista.

Em um dos relatos o loiro comentou sobre os amantes mortais e citou vários, incluindo seu pai. Disse que muito poucos tiveram descendentes com ela e ouviam-se rumores que ela escondia suas filhas com bastante habilidade.

— Filhas?

— Sim – ele deitou de lado na cama – Nagisa só possui descendentes mulheres, ou é o que diz as lendas.

Lia murmurou em concordância. Tantas filhas com tão poucos​ homens deixando descendentes significava que houveram muitos parceiros.

— Ela realmente brinca com o coração dos homens.

— Pois é.

Eles ficaram num estranho silêncio. Suspirando Lia levantou alongando o corpo.

— É melhor ir agora, obrigada pelas histórias. Você é ótimo contando elas.

Kevin sorriu.

— Estou disponível para contar quantas história quiser ouvir, Lia.

Ela sentiu o corpo se agitar com aquelas palavras, mas sorriu com o máximo de controle possível. Uma parte dela ainda desejava se jogar em cima dele e deixá-lo beijá-la até ela esquecer seu próprio nome.

Uma risada interna ecoou e Lia o respondeu.

— Estarei ansiosa pelas próximas, então, Kevin. Nos vemos no jantar.

Repetindo suas palavras o loiro desabou na cama, sorrindo, enquanto Lia saia de seus aposentos. Quando a porta fechou ele riu baixinho imerso na bolha que criara para si mesmo. Quem era aquela garota? Que feitiço ela havia lançado sobre ele?

Era normal se sentir atraído por ela, também o fora por todas as outras que a precederam. Das mais ariscas as mais franzinas. Mas aquela tinha alguma coisa, que ele não sabia o que era, que o incitava a querê-la.

Mas podia ser só mais uma paixão súbita, como tantas outras, e Kevin não iria se deixar manipular, como antes. Por tantas outras.

Suspirando ele afundou no colchão, fechando os olhos e imaginando quando chegariam na maldita ilha do seu amigo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Um pouco do fundo mistico que Lia acabou envolvida pra vocês ♥



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Herdeira do Oceano" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.