A Herdeira do Oceano escrita por carlotakuy


Capítulo 3
Um acordo perigoso




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— Eu não acredito! – Ana riu – Um barril de rum?

Lia a acompanhou na risada e Cadu fez uma careta enquanto tirava a camisa ensopada para trocá-la. Alguns piratas trouxeram caixas de suas pilhagens para o quarto do grupo e Ana já as revirava avidamente.

— Pois é, não tive tanta sorte.

Liana se acomodou na cama larga que Pierre disponibilizara para eles observando, de soslaio, o corpo seminu do amigo. Às vezes ela se pegava pensando o que teria acontecido se não tivesse aberto mão do garoto para sua irmã. Mas sempre que a jovem olhava para ambos, sabia que havia feito a coisa certa.

Ou tentava acreditar nisso.

— Agora, Lia – ele passou um pano molhado no corpo, tirando o cheiro do álcool – o que aconteceu naquela cabine? Que conversa foi aquela de vínculos familiares? – as mãos dele pararam – E como você soube que ele era o capitão?

Ana olhou curiosa para a irmã, remexendo na roupa que havia separado para Cadu vestir. Lia então deu de ombros tentando esconder o sorriso de lado.

— Foi simples, a cabine era claramente dele e as roupas que ele usava eram muito mais elegantes que as dos homens do lado de fora.

— Eu sequer notei as roupas dele – comentou Cadu aceitando a camisa de Ana.

— E os vínculos familiares​... – ela mordeu os lábios – eu notei as semelhanças entre o tal Kevin e o capitão. Eles têm o mesmo nariz e a mesma boca.

Ana riu, mas Cadu ficou confuso.

— Foi só um golpe de sorte, na verdade. Mas pelo visto eu acertei.

— Você ficou olhando para a boca deles, Lia?

Se ainda não estivesse de noite e as luzes fossem poucas, todos teriam visto o rosto da jovem enrubescer.

— Eu olhei para tudo – retrucou cruzando as pernas – preciso ficar em alerta aqui dentro. É território inimigo, perigoso. O que pode acontecer conosco quando atravessarmos essa porta amanhã?

Cadu e Ana concordaram.

— Temos que observar tudo – continuou afastando a vergonha – e permanecer juntos.

A mão do garoto deslizou para a de Ana e ela sorriu para ele. O breve momento entre a dupla incomodou Lia que deitou na cama, abruptamente, se cobrindo com os lençóis grossos.

Pelo menos esses piratas têm alguma noção do frio em alto mar, pensou pigarreando em seguida.

— É melhor dormirmos, estamos cansados e o dia foi cheio.

Ela ouviu chiados de concordância enquanto todos começavam a se acomodar na única e larga cama.

— Eu fiquei morrendo de medo quando vi o porto em chamas – sussurrou Cadu para Ana, deitado ao lado da garota.

Liana sentiu o corpo estremecer ao tentar vislumbrar a posição em que a dupla se encontrava. Estavam um de frente para o outro? Estavam de conchinha?

Ela fechou os olhos com força e quando os abriu tentou focá-los na parede de madeira a sua frente. A jovem estava de costas para a dupla.

— Mas eles não incendiaram o porto – a voz da garota foi baixa, mas a audição de Lia se aguçou.

Não?

— Eles chegaram depois. Antes de entrar no navio eu vi muitos deles ajudando a apagar as chamas.

Ana tremeu.

— Foi muito estranho.

Sim, era muito estranho. Piratas ajudando a apagar o fogo do porto? Um sequestro em que davam um quarto confortável para a refém? Nenhuma punição severa para invasores?

Sim, tudo ali estava muito estranho.

Lia afundou a cabeça no travesseiro improvisado e o cheiro floral inundou suas narinas. Além de estranhos eles perfumavam as roupas de cama. Que tipo de piratas eram aqueles?

•••

— Qual desses fica melhor em mim, o azul ou o roxo?

Lia revirou os olhos prendendo num laço as alças de um vestido preto que havia encontrado nas pilhagens e parecia ser o único do seu tamanho. Ana, por outro lado, remexia em todas as opções, talvez por ter o corpo mais delgado que a irmã, experimentando e cabendo em todas as roupas.

Na verdade Lia não queria usar um vestido. Não usava um fazia semanas, desde a última vez que Agatha havia feito um jantar em sua casa em homenagem aos outros sócios do porto.

Elegante e fino, você não pode vir usando calça ou short, garota.

A jovem até chegou a argumentar, mas perdeu para a dona da mansão. E ali estava ela de novo, enfiada em camadas de tecido que desciam fazendo desaparecer seus pés, tudo porque o capitão organizara um jantar elegante para todos.

Do outro lado do quarto, lutando para entrar na única calça social da caixa e atrás de um biombo improvisado para não acabar vendo as garotas nuas, Cadu respondeu à Ana:

— O azul. Realça seus olhos.

Com um sorriso mais do que satisfeito Ana começou a vestir o mesmo, jogando de lado a outra peça. De frente a um pequeno espelho que os piratas trouxeram junto com a caixa Lia encarou seu reflexo. Havia olheiras finas embaixo de seus olhos e os cabelos, por mais que ela tivesse molhado no banho improvisado que haviam disponibilizado para o grupo, se encontravam​ rebeldes em sua cabeça.

Com raiva Lia empurrou os cachos largos para baixo enquanto tentava dominar aquele animal raivoso. Foi nesse momento que ela percebeu que ainda usava o colar de búzio que a estranha vendedora havia lhe dado no dia anterior.

Seus dedos o envolveram instintivamente e por breves segundos ela se sentiu segura e protegida. Olhando novamente para o espelho Lia sorriu. De algum modo nada no seu exótico look parecia tão mal. E o búzio esverdeado combinava com seus olhos.

— Onde conseguiu isso?

A pergunta de Ana surpreendeu a irmã que saiu da frente do espelho apressada, recolhendo roupas jogadas no chão.

— Comprei no centro. Uma banca de bugigangas.

A morena murmurou em concordância tomando o lugar dela na frente do espelho.

— Me admira você ter feito isso, sei como não gosta de usar colares – sorriu cúmplice – tive que te salvar de altas encrencas nos jantares importantes de família.

Lia correspondeu ao sorriso da irmã e deu de ombros, como se o colar não fosse assim tão importante.

— Resolvi experimentar.

— Isso aí! – comemorou a mais nova – Você devia começar usando esmeraldas, esses seus olhos ficariam de tirar o fôlego com os brincos verdes brilhando ao lado deles.

A careta da jovem fez Ana rir.

— Devagar, bem devagar.

— E então meninas – Cadu saiu de trás do biombo – como estou?

Elas o olharam dos pés a cabeça e se entreolharam logo em seguida, gargalhando. As calças apertadas marcavam toda a perna do garoto, que apesar de musculosa, lhe deixava miúdo. Com uma camisa social ensacada ele parecia um humorista excêntrico e magrelo.

Batidas na porta encerraram o momento e uma cabeça se colocou no vão. Era um dos homens que haviam levado ela e Cadu para a cabine do capitão, Lia nunca se esqueceria. Era negro e forte, apesar de pequeno. Tinha os cabelos crespos e rentes a cabeça, com olhos grandes e castanhos. Parecia menos perigoso agora, mas ela não baixou a guarda.

— O capitão está chamando pra jantar – disse, sem muito entusiasmo – vamos logo.

Ana parou de rir instantaneamente e olhou para a irmã. Lia assentiu e indicou a porta, que já era aberta pelo pirata. Caminhando até Cadu e soltando uma risada baixa ela tirou a camisa de dentro das calças a soltando, assim como abrindo seus primeiros botões.

— Não vai ficar melhor que isso.

O sorriso de Cadu acompanhou a jovem enquanto ela passava pela porta logo depois da irmã. Tentando desamassar a roupa, inutilmente, ele as seguiu em direção ao desconhecido.

A cabine do capitão estava completamente diferente da primeira vez em que ela estivera ali. A escrivaninha tinha sumido para dar lugar a uma mesa longa de jantar, de madeira escura, com seis assentos elegantes ao seu redor. Um candelabro decorava a mesa, assim como cestas com pães e travessas de queijo e carne.

O capitão estava de pé na frente dela, esperando seus convidados, e sorriu de maneira que Lia achou tentar se mostrar cordial. Agora ele ousava em sua glória de capitão com o chapéu alto e decorado. As roupas estavam limpas e se destacava pelos tons de preto e vermelho, assim como o ouro dos botões de seu grosso casaco. Algumas insígnias descansavam em seu peito, mas Lia não conseguiu reconhecê-las, pois do outro lado do vão, sentado no sofá lateral que ainda permanecia na decoração, estava o loiro.

Ele sorriu quando notou que ela o olhava e levantou para o grupo um cálice de ouro, aparentemente com vinho, saldando os convidados. Seus cabelos dourados estavam molhados e ainda pingando, caindo a cada movimento de sua cabeça na camisa preta social.

O garoto não usava insígnias como o capitão, então possuía outro cargo na embarcação. Mas qual?

— Boa noite queridos convidados, por favor, sentem-se, sintam-se a vontade.

Sem esperar qualquer outra palavras o trio se dispersou pelas cadeiras. Lia e Ana de um lado e Cadu do outro. Na extremidade ao lado de Lia se sentou o loiro, preguiçosamente, pondo o cálice ao lado dos pratos já organizados. Ao lado de Ana se sentou Pierre, que sorriu para a jovem, recebendo apenas uma expressão de nervosismo dela.

Cadu fechou a expressão no mesmo instante, pronto para começar briga por alguma coisa que o homem fizesse a sua garota, mas Lia decifrou sua expressão fácil, o cutucando debaixo da mesa. Ele sibilou para ela e Pierre riu.

— Que bom ver que estão tão energéticos. Imaginei que definhariam naquele quarto durante a manhã.

— Somos pessoas fortes, capitão – Lia soltou mais um aviso visual para Cadu antes de olhar para o homem na outra extremidade – não definharíamos por tão pouco. A não ser – ela abriu um sorriso pequeno – que essa fosse sua intenção?

Pierre sorveu, despreocupado, o vinho em seu próprio cálice.

— Jamais, minha querida. O que espero que sua irmã faça por mim – ele olhou novamente para Ana – não me permitiria prejudicá-la tanto assim.

As entranhas de Lia se contraíram.

— E o que exatamente você espera que ela faça por você, capitão?

O sorriso do homem deixou Lia ainda mais inquieta.

— Primeiro o jantar, depois, negócios.

A boca da garota ficou seca e ela apertou, protetoramente, a mão da irmã por baixo da mesa. O loiro do outro lado viu o gesto e escondeu o sorriso. Típico, pensou. A garota que sempre quer ser a heroína.

Ele olhou atento para a jovem do outro lado, a garota que seu pai havia sequestrado, e a avaliou. Parecia temerosa demais, branca demais, morena demais. Os olhos dela eram azuis! As outras, nenhuma possuía sua aparência. As outras sim pareciam atender aos propósitos do homem.

Sem delongas o jantar foi servido, um prato para cada convidado, e Lia quase chorou ao sentir o vapor e o aroma da comida lhe preencherem o olfato. Pensou durante o dia inteiro no que comeriam, se seria algum fruto do mar nojento ou peixe cru como alguns moradores de sua ilha faziam, e ela odiava.

Mas ao ver uma comida tão comum, seu corpo relaxou. Seu estômago sobreviveria aquela experiência, pelo menos.

O jantar foi silencioso. Ana comeu calada e pouco, beliscando vez ou outra alguma fruta ou pedaço de pão com molho. Lia revezava fazendo comentários​ sobre a sala, elogiando os quadros e as miniaturas de navio. O capitão agradecia e contava a história do artefato, como o quadro que saqueou na Europa anos atrás ou a miniatura que um profissional havia feito para homenagear a beleza do seu navio.

Lia tinha habilidade em enrolar as pessoas na conversa, ou ao menos era o que tinha aprendido durante tantos jantares de negócios em sua casa. Com sócios e famílias importantes. Ela os entretinha e, pouco a pouco, moldava a conversa a seu desejo. E era exatamente o que estava fazendo ali.

Kevin também entrou na conversa, complementando o homem, e Lia descobriu que não só estava certa em relação aos lanços de parentalidade como ambos eram pai e filho. Ela ficou um pouco chocada, devido as diferenças visuais de ambos, mas como notara antes alguns traços eram realmente característicos.

A voz do loiro era agradável e mais de uma vez ela se pegou o observando de soslaio, desviando o olhar tão logo ele a notava. Era um garoto muito bonito, apesar de tudo que trazia consigo, e ao menos isso ela não pôde evitar reparar.

O jantar estava parcialmente acabado quando Cadu derrubou vinho em si mesmo, melando tragicamente a camisa clara. Lia segurou o riso, já um pouco tomada pelo álcool da bebida, e se levantou para ajudá-lo a limpar. Ana balançou a cabeça negativamente para ele repetidas vezes com uma expressão de reprimenda.

— O que pretendia falar, capitão? – começou Lia, desviando a atenção do amigo.

O homem pigarreou antes de voltar-se para a morena que piscou aturdida com a atenção sobre si.

— Perdoe-me a falta de educação, senhorita Candelier, qual seu primeiro nome?

Silêncio tomou conta do lugar. Lia tirou o olhar da roupa de Cadu, que estava bêbado o suficiente para não perceber mais nada a seu redor. Os olhos verdes caíram surpresos e temerosos sobre o homem na ponta da mesa e este seguiu o olhar de Ana até a jovem, deixando a resposta pairando sobre Lia.

— Desculpe-me, capitão – apressou-se Ana – mas meu sobrenome é Ana Witherson.

A expressão de Pierre ameaçou modular, para uma mais agressiva, quando Lia se adiantou.

— Ela não é uma Candelier, capitão. Eu sou.

O silêncio novamente tomou conta do vão e o capitão a avaliou de cima a baixo, ignorando agora a jovem a seu lado. Lia continuou.

— Fui adotada pelos Witherson quando mais nova. Meu nome real é Liana Candelier.

 Algo brilhou nos olhos castanhos e ele sorriu.

— É claro, como não pude perceber antes? Você tem os olhos dela.

O pulso de Lia acelerou e mil preguntas zumbiram na sua cabeça, mas ela foi prática.

— Já que seus negócios agora são comigo – ela ficou ereta ao lado de Cadu, que se encostou na mesa para dormir – poderia pedir que meus amigos fossem para o quarto? – apontou para o garoto – A condição dele não me parece muito boa.

Com um movimento da mão o capitão dispensou a ambos.

— Podem ir sim.

Trocando olhares rápidos com Ana a garota levantou Cadu da cadeira, sob seus protestos. A morena correu até o lado da irmã, pegando-o e tirando-o da sala. Lia acompanhou quando eles saíram e assim que a porta fechou ela voltou-se ao homem, que agora a olhava quase fascinado.

O loiro do outro acompanhou tudo em silêncio, bebericando de seu vinho. No final, suas suspeitas estavam certas. Só não imaginou que aquela garota seria a que eles estariam procurando. Mais uma das tantas durante anos.

Apoiando os braços nas costas da cadeira que pertencera a Cadu Lia voltou-se para Pierre.

— E então?

— Como pode ver, minha querida, somos piratas. Nossa vida é o mar e ele nos dá tudo que precisamos.

Não o que vocês roubam, gritou internamente.

— E no mar, há lendas nunca contadas. O sobrenatural ronda essas ondas, dia e noite, atrás do mais tolo marinheiro que possa cair em suas garras.

— E o que isso tem a ver com negócios?

Ela ergueu as sobrancelhas, inquisidora, e Kevin riu. Lia o encarou, mas ele não se intimidou.

— Eu fui um desses tolos – admitiu Pierre tirando seu chapéu e olhando-o sem expressar nada, mas Lia sentiu o quanto aquele ato lhe parecia doloroso – e entreguei meu coração a uma mulher perversa.

Lia quase deixou o queixo cair. Ele queria que ela se envolvesse no seu trágico relacionamento amoroso?

— Sua mãe é uma mulher cruel, Liana. Ela brinca com os corações humanos a seu bel prazer – os olhos castanhos caíram dentro dos dela – e se livra deles assim que se cansa de brincar.

Pierre depositou o chapéu na mesa, seu símbolo, e Lia quase sentiu pena dele, apesar de seus olhos nada demonstrarem.

— Eu entreguei meu coração à ela e ela o tomou de mim.

Um riso baixo escapou da garota.

— Está me dizendo que se envolveu com minha mãe e ela o abandonou? Tudo bem, isso acontece às vezes, nem tudo é um mar de rosas nos relacionamentos. Mas o que eu tenho a ver com isso? Não a conheço.

Desta vez Kevin riu mais alto e ela o ignorou.

— Não, não a conhece. Não poderia. Sua mãe, Liana, é uma Deusa do mar.

A jovem, ainda apoiada nas costas da cadeira, repetiu aquela palavra diversas vezes antes de processá-la. Deusa?

— O que?

O sorriso torto de Pierre iluminou as feições antes escuras.

— Uma Deusa, Liana. Sua mãe roubou, literalmente, o meu coração. Sou um homem amaldiçoado por uma Deusa do mar.

Deslizando lentamente Lia se sentou na cadeira que a apoiava. Ela olhou do capitão para o filho três vezes antes de rir novamente, incrédula. Daquela vez o loiro não se manifestou, bebendo silencioso de seu vinho, e o capitão permaneceu sereno em seu assento.

— Certo. Vamos aos poucos. Minha mãe é uma Deusa do mar – Pierre assentiu – e você não tem mais coração – novamente ele concordou – ela ao menos tem um nome?

O sorriso do homem vacilou.

— Nagisa.

Como se aquela única palavra tivesse poder Liana sentiu seu corpo inteiro reagir a ela, agitado. O búzio em seu pescoço ficou estranhamente quente e seu estômago se contraiu. Por míseros segundos ela teve medo e cogitou que tudo aquilo fosse verdade.

O que ele queria que ela fizesse?

— E o que eu tenho que fazer?

O homem rodou o líquido em seu cálice.

— Você tem que recuperar meu coração. Dentro dos domínios de Nagisa.

— Me desculpe perguntar, mas onde fica isso?

Mesmo perguntando, era óbvio que ela já sabia. Pierre sorriu.

— No fundo do oceano.

Lia prendeu a respiração. Ele queria que ela fosse para o fundo do mar atrás do seu suposto coração roubado?

Não foram risos que ficaram presos na garganta da garota, mas um bolor misturado a medo. Era loucura tudo o que ele falava: como podiam existir Deuses do mar? Como um coração podia ser roubado sem matar alguém?

A cabeça dela estava a mil e por longos segundos ela permaneceu calada, encarando o prato vazio de Cadu. Kevin, do outro lado, aprumou a coluna, pronto para o que viria. Elas nunca aceitavam pacificamente essa parte. Se lançar no mar em busca de um coração não era nada possível de vislumbrar sem a morte como companhia. Era suicídio, elas diziam.

Mas quando a voz voltou aquela garota, ela o surpreendeu.

— Depois disso, nós poderemos ir embora?

A mesma surpresa que estampou o rosto do filho cobriu o do capitão. Ele parou de mexer no seu cálice e sorriu, algo mais perto de um verdadeiro sorriso do que nunca antes.

— Não, deixe-me reformular a pergunta. Mesmo que tudo isso – Lia fez um movimento com a mão na direção da porta, indicando o mar – não der certo, meu amigo e minha irmã poderão ir embora?

A intensidade nos olhos verdes não traiu a memória de Pierre. Ela era mesmo filha de sua Deusa.

— Salvos? – completou num sussurro.

— Claro, minha querida.

Com um suspiro, parte de medo e parte de alívio, Lia sorveu apressada o cálice na sua frente. O vinho desceu rasgando a sua garganta com a escolha que estava prestes a fazer.

— Então nosso negócio está feito, capitão – ela lhe estendeu a mão – eu irei em busca de seu coração, por favor, cumpra com sua palavra.

Pierre assentiu, ainda sorrindo, e apertou a mão da garota. A tensão que havia se instalado, entre pai e filho, se dissipou e o homem pôde ver incredulidade no rosto do loiro do outro lado.

— Então vamos beber para comemorar! – ele se levantou – Já participou de uma festa de piratas?

Lia negou com a cabeça.

— Venha ter seu debut em uma! – rindo, de forma nasalada, ele seguiu até a porta da frente.

Lia e Kevin levantaram juntos e o som sincronizado os fez se observarem. O sorriso que o loiro lhe lançou fez a pele da garota, já quente pelo vinho, se esquentar ainda mais. Ela se adiantou, contornando a mesa pelo lado contrário, mas ele foi mais rápido e no instante que a porta fechou, deixando-os sozinhos​, ele segurou seu braço.

— Você realmente acha que pode ajudar meu pai?

As palavras dele a surpreenderam. Tudo que vira, desde que chegara, foi um garoto esnobe. Até mesmo na mesa, enquanto falava, só havia um ar distante e indiferente em Kevin. Mas os olhos dele, tão bonitos a luz das velas na mesa, demonstravam outra coisa.

Ele estava realmente preocupado com seu pai. Lia podia repetir quantas vezes fosse que era loucura do homem, que ele devia procurar um psiquiatra ao invés de uma órfã, mas aqueles homens acreditavam naquilo. E ela, Ana e Cadu estavam nas mãos deles.

— Não, me deixe-me reformular a pergunta. – a imitou roubando um pequeno sorriso dela – Você vai realmente ajudar o meu pai?

Sem pensar Lia pôs sua mão em cima do braço do garoto, o mesmo que ainda a segurava, e ele afrouxou o aperto.

— Estou fazendo isso para ajudar meus amigos. Não voltarei atrás em minha palavra.

Aquelas palavras comprimiram seu peito, mas eram verdade. Lia não recuaria no acordo, ainda que pudesse morrer. Ana e Cadu eram sua maior preocupação e contanto que o capitão honrasse o acordo...

Kevin leu o que os olhos e as palavras dela diziam, e sorriu.

— Você está julgando mal, nós, piratas, senhorita.

Aquela frase era tudo o que Lia considerava verdade: eles eram piratas, perigosos e ladrões. Mas ainda que isso fosse verdade, o quarto confortável, a colcha quente e a aceitação deles naquela bacia falava sobre algo. Algo que Lia não sabia o que era, mas que acreditava. E segurando nesse ínfimo fio ela desejou que pudesse confiar.

Mas sorrindo de lado e se deliciando ao ver a reação do garoto a ele, correspondendo-a, ela sussurrou:

— Então me mostre como vocês realmente são.

O sorriso de Kevin alargou-se e ele deslizou a mão do braço para a mão da jovem, puxando-a consigo.

— Depois não diga que não lhe avisei – disse, em tom de divertimento.

Em resposta Lia riu e sentiu a leveza do álcool nublar suas preocupações, deixando apenas a sensação quente da mão do pirata na sua.


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Notas finais do capítulo

Eis um marco na história de Lia



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