A Herdeira do Oceano escrita por carlotakuy


Capítulo 5
Ilha Halouei




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Mais tarde naquela noite, depois de um agradável jantar, ao menos para Lia, já que Ana e Cadu o passaram quase em total silêncio, lado a lado, respondendo vez ou outra a algo que o capitão falava, Lia se remexeu inquieta na cama.

A lua refletia na janela arredondada, iluminando o quarto escuro, enquanto seus companheiros de quarto dormiam profundamente. Se sentando ela suspirou exausta.

No momento em que deitou a cabeça no travesseiro as palavras do livro que lera voltaram como uma enxurrada. O colar nada demonstrou, apesar de Lia tentar incitá-lo a fazer várias coisas como um balde flutuar e fechar a porta.

Levantando e buscando algum casaco mais quente dentro da caixa de pilhagens Lia saiu do quarto vestindo um sobretudo velho e largo. Agradeceu por ter encontrado algo tão quente assim que pisou no convés e o vento ricocheteou nela gélido e cortante.

Ela havia pensado que talvez um pouco de ar puro fosse ajudá-la a dormir, mas aparentemente lutar contra aquele clima a faria era ficar ainda pior. Quase desistindo Lia avistou uma silhueta na proa e identificou o sujeito pelo grande chapéu em sua cabeça, se debatendo com o vento.

Sem saber muito o que fazer Lia finalmente saiu das escadas e rumou à proa, subindo apressada uma das escadas ao lado da porta da cabine do capitão, alcançando o espaço onde ficava o timão. Logo a frente, encostado no mastro da primeira e mais alta vela, estava Pierre.

Ele a acompanhou subir com os olhos e sorriu ao vê-la.

— Está com insônia, senhorita?

— Um pouco – Lia apertou mais o tecido em volta do corpo – e você, capitão?

— Tomo conta da navegação quando a maioria dos meus homens dorme – ele encarou o mar soturno a frente, quase invisível pelo breu da noite – nunca se sabe o que podemos encontrar numa escuridão dessas.

A jovem assentiu seguindo o olhar dele e exceto pelas ondas que quebravam ao redor do navio, banhadas pela iluminação dele, tudo o mais era negro. Estavam navegando em meio a um buraco negro.

— Quando eu era pequena vivia no porto com meu pai.

As palavras de Lia fizeram a atenção do capitão voltar para ela, que ainda olhava fascinada e temerosa a imensidão negra.

— Minhas manhãs eram sempre em grandes navios, com buzinas engraçadas e muita fumaça. Mas o mar era sempre visível – Lia sorriu com a lembrança – por mais que eu corresse ainda veria a água do outro lado. O oceano me fascinava. Agora que não consigo ver nada, ele me assusta um pouco.

Os olhos verdes, semiabertos pelo frio, desceram sobre o homem.

— Você me entende?

— Como nenhum outro, senhorita. O mar é um lugar de beleza infinita, mas de perigos e mistérios inimagináveis. Faz bem em temê-lo, eu errei ao não ter feito o mesmo.

A cabeça da jovem baixou com o comentário. Não havia expressão no rosto de Pierre, ou qualquer outra coisa que demonstrasse tristeza, mas ela a sentiu como uma extensão daquelas palavras.

— Eu sinto muito.

— Não sinta, apenas guarde isso com você. Os aprendizados que o mar nos proporciona não se dissipam nunca.

Ela assentiu.

— Sempre me disseram – Pierre retomou o timão em mãos e mudou a direção – que mulheres e crianças traziam mal agouro no mar.

O capitão sorriu.

— Devo dizer que todos estavam muito enganados, senhorita Lia.

Lia sorriu em resposta e viu o navio passar ao lado de uma rocha. Quando Pierre tinha visto aquela pedra? Em tamanha escuridão?

— Eu vejo muito em você – continuou o homem, sem se importar com o olhar surpreso e admirado da garota sobre si – o mesmo que já vi em mim um dia.

Lia não soube como responder ao capitão, mas o sorriso torto dele, o mesmo que ela notou preencher seu rosto no lugar de algum sorriso sincero, a aqueceu o coração. Pierre era um homem bom, do seu jeito enquanto pirata. E estava sofrendo como qualquer homem comum.

— Obrigada, capitão. Espero realmente corresponder a isso.

— Você irá. Seus olhos dizem isso.

Lia assentiu e cobriu a boca com as mãos, sentindo o rosto mais frio do que antes. Como o capitão conseguia ficar ali fora naquele frio infernal com apenas sua roupa comum? Apesar de muitas camadas, não parecia aquecer muita coisa.

— Melhor entrar – alertou o homem voltando a se apoiar no mastro – seu corpo vai congelar aqui fora.

— Sim, eu vou. Obrigada pela companhia capitão, espero que não vire um picolé antes do amanhecer.

O riso de Pierre foi recompensado com um sorriso da jovem que desceu as escadas em seguida, adentrando no navio sem muito esforço. O interior estava mais quente e Lia se deitou ainda com seu sobretudo. Para garantir ela também se enrolou no lençol e o calor lentamente começou a se fazer presente.

Não pensou muito antes de adormecer e quando afundou num sonho tranquilo, desejou que o capitão não sentisse tanto frio quanto ela sentira do lado de fora.

De alguma forma, assim que Lia dormiu, os ventos se acalmaram e o frio cessou, deixando uma brisa leve atingir a parte externa da embarcação. Pierre sorriu com aquilo se movendo imediatamente para o timão afim de zelar o sono de todos os seus tripulantes.

•••

No dia seguinte o trio foi desperto por batidas na porta. O marujo negro e forte, Lin, foi quem a abriu e anunciou que disponibilizariam um banho antes do café da manhã, pois logo chegariam a ilha para reabastecer e o capitão iria desembarcar com eles.

Ana gemeu, sem querer acordar, mas quando Cadu a mimou com beijinhos e mordidas ela riu se levantando. Fizeram o mesmo que da última vez e vasculharam as roupas mais leves do baú. Lia acabou de novo com um vestido, este mais curto e mais rodado, e fez uma careta quando viu que realmente havia ficado bonito.

Ainda que não fosse confortável, completou erguendo as alças do tecido delicado e de tons pastéis. Ana já prendia o cabelo e comentava sobre os malefícios do ar salgado quando Cadu voltou ao cômodo, já vestido com bermuda e camisa, e encarou Lia.

— Essa ilha é nossa chance de fugir.

Ana balançou a cabeça concordando com o garoto e olhou para Lia em busca de confirmação, mas o que viu nos olhos verdes, que sempre confiara, foi incerteza. Ainda que a irmã tivesse concordado audivelmente.

Já vestidos e no corredor Lia repassou as palavras de Cadu pela vigésima vez em sua cabeça. Ele queria fugir para poder salvar a ambas, ela entendia isso. Mas ir embora parecia tão errado.

Ana tinha sido sequestrada, sim, e todos estavam ali contra sua vontade, mas o acordo gritava em seus ouvidos. Ela havia dado sua palavra. Lia não queria morrer, mas também não queria deixar o capitão na mão.

Aquela expressão da noite anterior no rosto do homem ainda a assombrava. Sem coração, sem sentimentos. Sofrendo.

Com um suspiro ela começou a subir as escadas. Faria o melhor para salvar sua irmã, depois pensaria nos outros. Ana era sua razão de estar ali e era, para ela, mais importante do que tudo. Ela era sua prioridade.

Assim que o grupo chegou no convés o vento salgado ricocheteou nos cabelos de Lia, despertando-a, e o sol ameno da manhã a recebeu alegremente. Sorrindo ela vasculhou os céus, de um azul anil, com os olhos. Revoadas de pássaros passavam sobre suas cabeças grasnando.

Do outro lado, acima da cabine do capitão e no controle da embarcação estava Kevin, que sorriu ao ver a jovem surgir das escadas para os níveis inferiores. Os cabelos loiros dançavam sobre sua cabeça e as roupas, largas, balançavam ferozmente com o vento. Se Lia o achara lindo antes, aquilo agora parecia um eufemismo.

Ele a chamou com um aceno, voltando sua atenção para o mar, cuidadoso, e Cadu pousou a mão no ombro da jovem. Ela sentiu o recado daquele toque antes de ouvir suas palavras.

— Cuidado com ele.

Lia podia ser muitas coisas, mas não era ingênua. E aquele aviso a irritou. Tirando a mão dele de si ela o lançou um olhar determinado, erguendo a sobrancelha e desafiando-o a continuar.

— Eu sei o que faço.

A reação de Cadu foi surpresa, mas ele queimou em raiva assim que sua amiga se afastou na direção do filho do capitão. Ana tocou delicadamente em seu braço, acalmando-o com um sorriso tranquilizador.

— Ela sabe se virar, Cadu. Foi ela que conseguiu nos manter seguros até agora.

— Socializando com esses piratas – resmungou.

— Ei, nós também fizemos isso.

— Não é deles que estou falando – fez um estalo com a língua na direção​ dos marujos – é do capitão e do filho dele. Não confio neles.

A mão de Ana o apertou com mais força.

— Então confie na nossa Lia.

Cadu suspirou envolvendo carinhosamente a mão de Ana com a sua.

— Você está certa, desculpe.

Ela sorriu.

— Veja, estamos chegando a algum lugar!

Os olhos de ambos caíram sobre o pedaço de terra que surgia no horizonte e Lia também o fez ao subir as escadas, vislumbrando, por estar num lugar mais alto, algumas árvores despontando ao longe.

— Estamos chegando! – anunciou Kevin, animado.

— Por que tamanha euforia?

— As pessoas que moram ali são grandes amigos – ele lançou um olhar brincalhão para ela, pendendo junto ao timão – quem sabe eu a apresente a eles?

— E quem sabe eu apresente você e eles a meus servos golfinhos?

Ambos riram e ela se aproximou um pouco mais, ficando ao lado do jovem.

— Como é manejar um navio?

Kevin a olhou confuso.

— Nos navios de meu pai os homens usam cabines com várias máquinas, mas aqui só tem isso – indicou o timão – isso me deixa curiosa.

O loiro riu.

— Quer tentar?

— Poderia?

Tirando uma das mãos da madeira do leme ele abriu espaço para Lia que cautelosa envolveu o lugar que antes estivera a mão dele. Parecia apenas um pedaço de madeira arredondado, decorativo, o mesmo ela vira tantas vezes antes em colares e quadros.

Mas o timão era algo pesado, carregado de responsabilidade, e quando Lia envolveu as duas mãos nele com Kevin ao seu lado lhe observando orgulhoso pelo feito ela sentiu que realmente controlava o navio.

Cada canto daquela embarcação estava nas suas mãos e aquilo a encheu de agitação, poder e alegria. Lia sorriu e buscou os olhos de Kevin. No mesmo instante o timão cobrou seu peso fazendo-a vacilar para um dos lados.

O loiro, num movimento rápido, agarrou-o. As mãos estavam nos espaços bem ao lado das mãos da jovem e quando ele baixou os olhos para olhá-la notou o quanto estavam próximos.

Lia estampava surpresa. Não pensou que Kevin teria reflexos tão rápidos. Nem que o corpo dele fosse mais forte do que aparentava ser, rígido em suas costas. Ela arfou, surpresa e agitada, e quando seus olhos se encontraram todo o corpo dela ficou quente.

O sorriso de lado do garoto a desarmou no mesmo instante.

— Mantenha em curso – sussurrou e a coluna de Lia se endireitou e ela virou para frente, deixando o corpo dele bem nas suas costas.

— Não tire as mãos, ele é pesado mesmo. Se não tomar cuidado às vezes pode se enganar.

O murmúrio de concordância de Lia a denunciou. Seu rosto pegava fogo, assim como suas costas. Ele estava próximo demais e a respiração dela começava a se descompassar. O cheiro de Kevin chegou com o vento no instante em que ele soltou uma das mãos, se afastando, e a jovem o inspirou profundamente.

Sim, ela tinha que tomar cuidado com ele. Muito cuidado.

Mas talvez devesse tomar muito cuidado consigo mesma também. Com a forma como seu corpo reagia a cada mísero movimento do pirata.

Lentamente ele abriu espaço para que ela saísse e Lia assim o fez, ficando novamente ao seu lado. O vento agitado conseguiu disfarçar o calor que se esvaía e ela desejou que o sol fizesse o mesmo com seu rubor.

— É bom, não é? Ter o controle.

Ela processou as palavras do loiro por longos segundos antes de responder.

— Sim, é sim. Me senti como se estivesse flutuando junto com o navio.

Kevin soltou um agudo murmúrio.

— É uma boa definição. Me sinto exatamente assim.

Lia sorriu, já estabilizada novamente, e encarou corajosa o rosto do garoto ao seu lado. Kevin ainda sorria, com os cabelos agitados e roupas se debatendo, mas parecia um menino com as mãos no timão.

Algo se agitou no peito da garota e ela aumentou o sorriso deixando os olhos acompanharem a ilha que se aproximava e trazia mistérios e segredos que nem mesmo ambos poderiam​ imaginar.

•••

— O que você estava fazendo?

A voz de Cadu veio antes de sua presença e Lia não o olhou, ainda vendo os marujos levantando as velas e organizando as coisas para desembarcar.

— Reencenando o Titanic, não achou romântico?

Ela não precisou olhar para o amigo para saber que ele revirava os olhos. Ana riu ao invés disso se pondo ao lado da irmã. O garoto não teve tempo para mais comentários quando o capitão anunciou que começariam a descer, dando exclusividade a seus convidados.

O pequeno caís, de madeira grossa, acomodava sem dificuldade o grande navio e Lia se perguntou quão fundo eram as águas naquele lugar. Em terra firme, entretanto, a ilha que surgia a sua frente era bastante convidativa, com uma floresta espaçada e verde e rochas preenchendo o espaço que deveria ser de praia.

Cadu e Ana se adiantaram, descendo para um pedaço de terra que os deixavam mais próximos​ das caixas e barris que o capitão levaria até sabe-se lá para onde. A jovem, entretanto, viu Kevin e Pierre se aproximarem numa conversa técnica e manteve-se onde estava.

— Primeiro iremos à mansão e depois para o lugar de sempre.

— Certo. E o transporte das mercadorias?

— Não, desta vez é sem transporte. Iremos carregar eles pela praia, não quero chamar atenção.

O olhar do loiro foi de dúvida, mas ele assentiu.

— Onde estamos, capitão?

A voz de Lia fez os olhos do homem caírem sobre ela e o mesmo sorriu.

— Na ilha Halouei, senhorita Lia. Muito longe de sua antiga casa.

Ela não conhecia aquele lugar.

— Você poderia ajudar os outros? Tem mais caixas do que homens e toda ajuda é necessária – Pierre pediu ao filho.

Com um último olhar sobre Lia ele concordou, descendo pelo mesmo lugar que os amigos da jovem. Os olhos da garota acompanharam-no e em seguida ela olhou para a ilha, vendo mais pássaros sobrevoando algo além das árvores.

Uma sensação estranha tomou a ponta de seus dedos.

— No que está pensando?

Lia sequer piscou com a pergunta de Pierre.

— Que nada disso parece real. Corações roubados, espíritos e Deuses do mar...

Inconscientemente ela se posicionou ao lado do homem, tendo um vislumbre de outro lado da ilha, onde poucas luzes iluminavam construções que pareciam estabelecimentos pequenos e de estrutura fraca.

— Também não acreditei quando descobri que amava uma Deusa do mar.

— Deve ter sido difícil.

Os lábios do capitão se abriram num sorriso torto.

— Não, não foi. Eu a aceitei como era e a amei do mesmo jeito.

O coração de Lia se comprimiu e ela olhou surpresa para o rosto impassível do homem.

— Mas ela era tão má... Tão cruel...

O silêncio que se seguiu aquelas palavras fez Lia repensar todas as histórias que Kevin lhe contara sobre sua mãe. Sobre a mulher perigosa e calculista que ela era. Sobre as sombras que cobriam aquela misteriosa Deusa.

— Nagisa não me disse o porquê de tomar meu coração, se é isso que está pensando.

— Não estava pensando nisso.

Ele a olhou com a sobrancelha erguida e Lia suspirou.

— É, era exatamente isso que eu estava pensando.

O riso do homem cortou o espaço entre eles e ele alisou sua barriga protuberante.

— Você não parece que não possui um coração, capitão.

— Pois é, mas não sinto emoções ou qualquer coisa do gênero. Tristeza, agonia... Às vezes penso que isso deveria ser uma benção.

— Mas não é – ela o olhou – certo?

Pierre sorriu.

— Sim, não é.

— Eu sempre o vejo rindo, então é difícil pensar que você não tem um coração.

Lia pausou sua fala, sem saber se deveria falar o que pensara em seguida.

— Mas às vezes tem algo em você, capitão, que parece perdido.

Pierre parou de mexer na barriga e assentiu.

— Quero ser um bom capitão para meus homens. Se não demonstrar nada eles não se sentirão confortáveis comigo. Mas cada um deles conhece minha história. Cada um está comigo para o que der e vier.

— Então é tudo encenação?

— Me pergunto até onde tudo é encenação, senhorita...

Novamente eles ficaram em silêncio, com Pierre fitando o movimento dos piratas enquanto Lia encarava sem realmente enxergar alguma coisa entre as árvores. As risadas, os sorrisos, a forma de tratar os outros. Tudo em Pierre era apenas uma fachada para o homem oco que ele era por dentro.

Aquela percepção feriu Lia mais do que ela imaginou.

Desejando, internamente, ela pediu que se existisse realmente alguma Deusa, algum espírito do mar, que pudesse interceder pelo capitão. Que pudesse salvar aquele pobre homem.

A mão do homem acordou a jovem de sua introspecção e ela se surpreendeu quando ele afagou seus cabelos paternalmente.

— Vá até seus amigos, eles estão lhe esperando.

Lia olhou do capitão para os pequenos grupos que se formavam logo abaixo da descia estratégica e visualizou Ana e Cadu numa conversa intensa. Ela acenou para Pierre.

— Até mais capitão, cuide-se.

O homem sorriu e retribuiu o aceno. Lia desceu com rapidez até a parte mais baixa e notou o chão sob seus pés se tornar areia fina.

Apesar do encontro com o mar naquela ilha ser sitiado por grandes rochas a areia que acompanhava essas rochas era a mesma das praias. Numa anotação mental ela ficou de conferir a profundidade. Talvez não fosse assim tão fundo.

Parando ao lado de Ana a jovem foi surpreendida com a mão da irmã lhe agarrando o braço.

— Diga Lia, diga a ele que sou capaz!

Confusão preencheu o rosto da garota.

— Como assim? O que está acontecendo aqui?

— Não ligue para ela, Lia. Está com raiva porque não quero que se arrisque em nossa fuga.

A expressão no rosto de Ana calou Lia, antes que ela mesma dissesse alguma coisa.

Não ligue para ela? Eu tenho voz!

Uma nova discussão começou a se desenrolar entre eles e Lia quase se encolheu, atingida pela raiva da irmã e pelas últimas palavras de Cadu.

Fuga.

Cadu ainda pretendia fugir, ele havia deixado claro há muito tempo, e Lia não sabia o que fazer. Ela não queria fugir, mas Ana ainda era sua prioridade. E as contradições ameaçavam destrui-la.

— Você está gostando daquele pirata!

A acusação fez Lia olhar para ele surpresa e assustada.

— Aquele loiro devasso!

A jovem riu pelo pensamento do amigo. Ela gostava sim de Kevin, ele era bonito e parecia sutilmente lhe seduzir nas entrelinhas, mas não sentia nada por ele que pudesse nublar sua irmã.

Mas Pierre mexia com seu coração. Não da forma amorosa como Cadu acreditava ser o mal de suas dúvidas. O capitão a fazia enxergar além da aparência dele, vendo um homem forte que sofria por anos a fio por ter se entregado a uma maldosa Deusa do mar.

Quando as histórias, antes tida como delírios, se tornaram tão palpáveis à Lia?

— Não seja idiota – ela o rebateu, com as mãos na cintura – não tenho qualquer relacionamento com o filho do capitão.

— Você não me engana! E aquela troca de olhares? Os sorrisos?

A sobrancelha da jovem se ergueu, incrédula, mas Cadu continuou.

— Você é uma irresponsável! Está pondo Ana em perigo e sabe disso!

Antes​, Lia queria rir pela loucura que o amigo estava inventando sobre ela. Mas suas últimas palavras a atingiram com um impacto gigante. Fechando as mãos​ em punhos​, tentando não atingir o rosto dele sem pensar, sentiu uma onda de raiva varrer seu corpo.

— Você sequer para pra pensar nos outros! Disse que a salvaria e o que está fazendo?

Ana olhou irritada para Cadu, mas outra coisa o atingiu antes do olhar da jovem. A mão de Lia. O tapa foi rápido e alto, de modo que todos os olhares próximos desceram sobre o trio, que até então conversava num tom baixo.

— Não fale disso como se fosse algo banal – a voz de Lia foi cortante e além de surpresa no rosto do garoto o impacto do tom o fez se encolher – não fale como se eu não me importasse com a segurança dela. Essa é a única razão por estarmos aqui, cuidar de Ana sempre foi e sempre vai ser minha prioridade. Achei que você me conhecesse, mas aparentemente não.

Ana abaixou a cabeça e Cadu também o fez.

— Então me deixe dizer uma coisa a você – ela cutucou o peito do garoto com raiva – eu jamais colocaria Ana em perigo. Isso aqui – Lia abriu os braços mostrando todos os marujos – não é perigo para ela. O capitão não é perigo para ela. Sabe o que é perigo? – apontou para o oceano a frente – Enfrentar esse mar num bote, sem nenhuma noção de direção ou meios para sobreviver.

Os olhos verdes, tantas vezes luminosos queimavam escuros sobre Cadu.

— Sua ideia de fuga é um perigo para Ana. Muito mais do que esses trinta homens que cuidaram de cada uma das nossas necessidades desde que fomos descobertos.

Ela deu um passo a frente e ficou tão perto que o calor da raiva irradiou para Cadu, mas Lia manteve o tom baixo, ameaçadora.

— Não venha me dizer sobre cuidar ou não da minha irmã. Não me magoe para que eu não comece a odiá-lo.

Com um empurrão Lia pôs Cadu de lado e saiu, em passadas pesadas, atrás de alguns marujos que se enveredaram na areia contornando a floresta mais ao longe. Não ouviu quando Ana repreendeu o garoto ou quando ele pediu desculpas a ela por não pensar em sua segurança.

Não escutou os homens, ao redor, se recolherem ao verem ela empurrar o amigo e sair andando fingindo que nada tinham observado. Ou Kevin, que do navio visualizou a cena e desceu apressado, mas foi impedido pelo pai, que negou com a cabeça.

A moça precisa de um tempo sozinha.

Lia não enxergou nada na sua frente, fervendo em raiva. Ana era sua irmã, ela sempre colocou ela acima de tudo e qualquer coisa, como assim não estava pensando na irmã? Aquilo era um absurdo!

Subitamente Lia estancou entendendo a origem das contradições que a tomaram momentos antes. Sua vida sempre foi cuidar de Ana, desde pequena zelou pela irmã, e subitamente se encontravam num lugar estranho com pessoas novas e Lia começara a pensar em outras coisas. Pensara na mãe, em Pierre e em si mesma.

Talvez Cadu não estivesse tão errado, mas não era porque não estava pensando em Ana. Sua irmã estava bem, ninguém a havia machucado, e tinha um trato com o capitão que ela estaria a salvo em casa se algo ruim acontecesse e não pudesse cumprir com sua parte do acordo. O motivo daquilo era porque, pela primeira vez, Lia havia pensado nela.

Sufocada por Agatha em sua mansão, com nada além de um futuro vazio, Lia se agarrou a única coisa que possuía: sua irmã. Seu pai era ausente, mesmo que a levasse vez ou outra ao porto para que se divertisse fora de casa, sabendo do comportamento que sua esposa dispensava a filha adotiva.

Lia sempre havia feito tudo por Ana, mas porque nunca haviam lhe permitido fazer algo para si mesma. E agora ela queria fazer algo pelo capitão, algo que ele acreditava que só ela era capaz de fazer. Lia queria fazer isso também por si mesma, antes que se perdesse no mundo de diamante que estivera trancada por tanto tempo.

Os pés de Lia ameaçaram dar meia volta e a jovem quis se desculpar com Cadu, dizer que nem tudo era mentira e contar a eles a verdade que surgia na sua frente. Mas não, não iria voltar atrás naquele momento.

O que Lia tinha dito ao garoto era verdade e ele precisava refletir sobre aquilo antes de tudo. Suspirando e retomando o passo, um pouco mais atrás da multidão de marujos que havia passado na sua frente, Lia vislumbrou o que surgia na curva da suposta praia, adentrando num descampado ao lado das árvores que ali se encontravam.

Diante de seus olhos surgiu uma gigantesca mansão, escondida pela vegetação, ostentando luxo e riqueza, assim como um passado que fez os pelos da jovem se arrepiarem no instante em que ela a vislumbrou.


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Notas finais do capítulo

Essa discussão sempre me deixa tensa, não importa quantas vezes eu leia ahsjahsja. E vocês aí? O que acharam?



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