A Herdeira do Oceano escrita por carlotakuy


Capítulo 17
Mãe e filha


Notas iniciais do capítulo

E chegamos a este grande momento!



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— Fico pensando, Tristan Knnegr, se você merece meu perdão – Nagisa arranhou seu cálice com a unha, fazendo soar um ruído agonizante dentro do salão.

Tristan, sentindo as costas queimarem e os sentidos vacilarem, levantou a cabeça para olhá-la, pronto para mais uma vez se humilhar àquela Deusa sombria. Mas tudo o que conseguia pensar era se Lia já havia conseguido fugir. Se estava salva.

— Seus olhos estranhamente me desafiam ao invés de me venerar, tritão – ela estalou o dedo e o chicote desceu nas costas judiadas do garoto.

Mais cochichos reverberavam no salão e Tristan desabou a cabeça, quase sem forças. Nagisa riu novamente, ao menos até a corrente poderosa de energia atravessar o salão principal. O riso de Nagisa cessou junto com o burburinho.

Lia havia ido embora.

Lentamente Tristan elevou a cabeça, para encará-la, e quando a Deusa o olhou ele sorriu.

Desgraçado.

Elevando a mão usando seu poder Nagisa controlou a água ao redor do tritão elevando-o do chão e apertando o pescoço dele no processo ela o arrastou para perto de si. Tristan tossiu agonizando.

— O que você fez? Onde está a garota?

Ainda com um sorriso nos lábios Tristan deu de ombros com dificuldade pela dor que varria seu corpo. Lia devia estar em qualquer lugar agora, longe dali, longe dela.

— Eu não sei, minha Deusa.

Raivosa ela lançou Tristan com tudo de volta no chão, chocando as costas dele na superfície dura. Ele gritou de dor, com os sentidos esvanecendo junto a sua força. Nagisa sorriu, nervosa, mas aquele grito não cessou sua raiva.

— Tritão atrevido e idiota. Você não tem poder algum contra mim aqui. Eu sou uma Deusa.

Dolorido, Tristan virou de lado para fitá-la, mas sua visão estava embaçada e ele não conseguiu focar. Mas pelo menos Lia estava longe agora, pensou. E essa certeza amenizou a força que o fazia aguentar a dor. Perdendo a força e os sentidos ele caiu com a cabeça no chão.

Sangue cobriu o rosto do tritão.

Suspirando ao vê-lo desabar Nagisa elevou o braço, indicando que o tritão que o chicoteava podia levá-lo.

— Já chega, estou cansada. Chame os guardas para cá, preciso que vasculhem o palácio.

O guarda ficou ereto e se inclinou em concordância, olhando para o corpo inerte no chão ao seu lado sem um único pingo de remorso. Ao redor as sereias e os tritões se espaçavam no salão, com o final do show sangrento, experimentando quitutes e bebidas arroxeadas.

— Qual o destino dele, minha Deusa?

Nagisa olhou para o corpo de Tristan no chão com os olhos abertos desfocados e lentamente sorriu.

— Para ele a sentença é a morte.

Alguns cidadãos ali presente pareceram surpresos e chocados, já que há muito tempo não havia aquela sentença na cidade, enquanto outros fingiram não ouvir, assim como fingiram gostar da punição do garoto.

Antes que o capacho tocasse no corpo inerte de Tristan no chão uma energia estrondosa invadiu o salão, derrubando esculturas, pratos e adornos da parede. Todos olharam para a entrada, assustados, e quando Lia entrou, com poder pulsando ao seu redor, os cidadãos arquejaram surpresos.

A cauda de Lia a levou até praticamente ao centro do salão e aquele caos rubro que ela se tornava em sua verdadeira forma captou a atenção de todo e qualquer ser vivo ali dentro. Principalmente Nagisa que esvaneceu o sorriso sádico.

Em contra partida o sorriso de Lia foi ficando ainda maior e seus olhos, fluorescentes, provocadores..

— Estou aqui, mamãe. Hora de resolvermos nossos próprios problemas.

— Que ótima surpresa! – Nagisa fingiu animação, depositando a taça no braço do trono.

Lia olhou para Tristan no chão, praticamente morto, e controlou o desejo de nadar até ele, de ajudá-lo, de pedir desculpas por tê-lo deixado sozinho aquele tempo. Pela dor e a humilhação.

Ela apertou as mãos em punho e encarou a mulher a sua frente. Deixou seu poder fluir envolvendo o tritão no chão, tentando salvá-lo silenciosa, mas deixou que a raiva lhe desse a combustão necessária para fazer o que precisava ser feito.

E energia vibrou dentro de si.

— Estava esperando você há muito tempo – Nagisa levantou – estava até ficando entediada.

A Deusa lançou um olhar de desprezo para Tristan.

— Seu brinquedinho não foi tão divertido. – sorriu – Espero que você consiga me entreter melhor.

Lia rosnou, quase perdendo a postura, e sem perceber energizou a água ao seu redor, impulsionando-a na direção dos cidadãos ali presentes, empurrando-os no processo. Até mesmo Nagisa acabou indo pouco milímetros para trás com o poder da jovem que sorriu ainda mais provocadora.

— Vamos lá, mamãe. Vou te mostrar para que vim.

A Deusa rebateu o sorriso da filha e levantou a mão.

Claro.

No instante seguinte o salão foi tomado por raios e bolhas, correntezas e vórtices. As sereias e tritões ali presentes saíram desesperados para fora, aos gritos e empurrões, enquanto as duas Deusas se enfrentavam, esquivando e atacando enquanto deslizavam pelo lugar.

Os raios de Nagisa eram rebatidos pelos impulsos de água de Lia, que nadava desajeitada se esquivando do poder que a mais velha lhe lançava. Nagisa já estava ficando irritada com a persistência dela e grunhiu aumentando o embate, praticamente do outro lado do salão agora vazio.

Lia sorriu de lado ao ver a frustração da Deusa e se esquivou mais uma vez.

— Você não tem como fugir aqui, Liana. Seus poderes não derrubarão essa sala como da última vez.

Ela atacou.

— Seus truques não vão funcionar duas vezes comigo.

Lia rebateu e arfou, cansada, próxima ao trono. Elas praticamente haviam nadado em círculo enquanto se atacavam e Lia estava mais próxima de Tristan agora do que antes.

Dando uma rápida olhada nele ela viu os olhos fechados e algumas marcas lentamente se fechando. Os cabelos estavam caindo sobre seu rosto, molhado de sangue, e a cauda azul estava imóvel no chão sujo.

Ao menos seus poderes sobre ele estavam funcionando.

Nagisa interceptou o olhar da filha e sorriu, perspicaz. Quando se preparou para atacar, ao invés de mirar nela, focou no tritão. O raio foi direto e certeiro, mas Lia conseguiu se lançar sobre o corpo de Tristan e rolar com ele antes que o mesmo o atingisse.

O chão fumegou e a água evaporou. Os olhos de Lia se arregalaram assustados. A reação da água ao raio lembrou a jovem sobre a história de Tristan e sua cauda vermelha.

— Você veio do Pacífico.

A afirmação de Lia fez a Deusa erguer a sobrancelha.

— O que está dizendo, pirralha?

— Você veio do Pacífico – repetiu Lia, com mais convicção, soltando o corpo de Tristan – por isso minha cauda vermelha. Por isso...

Nagisa mais uma vez lançou um raio sobre ela, mas Lia o ricocheteou para o lado oposto e ele atingiu o trono que explodiu em pedaços de ouro.

— O que aconteceu para sua cauda se tornar negra?

Os olhos da Deusa brilharam irritados e ela novamente atacou, sendo repelida.

— O que está tentando esconder?

Cale a boca.

— Por que, mãe? – Lia a pressionou, resoluta.

Ao redor da jovem uma barreira de água energizada começou a protegê-los contra os ataques que se tornaram consecutivos.

— Não são histórias para você.

— Você veio do Pacífico e se tornou uma Deusa – quanto mais Lia tentava explicar em voz alta a história da mãe Nagisa se enfurecia – você se envolveu com Netuno.

Nagisa rosnou e esticou o braço na direção da filha. Seu cenho franzido fez contraste com o globo de raios que começou a se formar em sua mão. Cada vez maior e maior.

— Netuno foi só um brinquedo – ela disse com desdém – uma forma de ganhar poder. Presa fácil.

Lia continuou olhando para ela, firme, e a Deusa se enraiveceu pela insistência da garota. Com intensidade ela injetou mais poder no círculo de raios que conjurava.

A água ao redor começou a se tornar eletrificada e o salão, de um branco puro, foi lentamente escurecendo. Os cabelos vermelhos da Deusa foram transpassados por descargas elétricas e qualquer seu vivo que ali se encontrasse teria perecido.

— Foi ele quem fez isso com sua cauda?

A pergunta da jovem foi baixa e apoiada no chão ao lado de Tristan, Nagisa quase não a enxergou tamanha era a raiva dentro de si. Raiva pela beleza dela. Raiva pelo poder. Raiva por ela lhe lembrar tanto a si mesma.

Maldito dia em que se permitiu aquele momento junto com ao humano estúpido que gerou Lia. Maldito espírito do mar que roubou sua criança antes que ela pudesse matá-la e sugar seu poder.

A imagem a sua frente era para pertencer a ela.

Desgraçada.

— Netuno é fraco e medroso. Um inútil. O medo dele me marcou.

A cauda negra da Deusa se agitou como se soubesse que falavam dela. Ainda encarando Nagisa Lia permaneceu firme.

— Qual o significado?

A risada esganiçada, quase histérica da sereia, reverberou em todo o salão que tremulou em suas estruturas. Descendo os olhos sobre Lia com loucura estampada neles Lia entendeu o significado da cauda.

— Traição. Punição. Caos.

Nagisa traiu Netuno após se tornar uma Deusa e o grande Deus dos mares a marcou para sempre como uma traidora. Ele lhe deu poder, mas também lhe deu o necessário para descontrolá-lo. Netuno a preencheu com insanidade.

Morra.

No instante em que a energia de Nagisa saiu na direção de Lia, um enorme globo negro com raios incontroláveis, a jovem desceu a barreira e a rebateu com a sua própria energia.

E para a surpresa de Lia, do âmago de seu poder e desejo, chamas intensas intocáveis pela água interceptaram os raios de Nagisa.

Então Lia compreendeu que a cauda vermelha não falava só de genética. Era também sobre poder. E o poder de Lia, o poder que queimava dentro dela toda vez que ela desejava e pedia, era fogo.

Quando Nagisa viu as chamas escarlates de Lia combaterem seus raios as lembranças que ela havia há muito esquecido voltaram com tudo. Aquelas eram para serem as suas chamas. Seu fogo. Seu poder.

Grunhindo com ódio a deusa injetou mais poder em seus raios e do outro lado Lia fez o mesmo. O choque das energias no centro do salão crepitava, perigosa, ora pendendo para o lado do fogo ora para o dos raios.

A água ao redor estava agitada sentindo o perigo e a intensidade daqueles poderes.

— Você não vai aguentar tanto tempo – desdenhou a Deusa, com os olhos refletindo os raios de forma intensa – é o seu fim. Alguma última palavra?

O sorrisinho de Nagisa fez o coração de Lia apertar. Ela não podia perder, não ali, não agora. Não com Tristan morrendo ao seu lado, não com tantas coisas para falar para todos os que amava. Ela prometeu a Ana que voltaria viva.

Seu fogo foi engolido até a metade pelos raios e logo o choque de poderes estava lhe dando desvantagem. Sorrindo ela impulsionou todo seu corpo e vontade contra aquele poder. O fogo empurrou os raios um pouco mais.

— Eu ouvi quando me chamou de Deusa menor. Sabe o que eu gostaria de dizer?

As duas mãos de Lia se firmaram na base do fogo, lhe concedendo mais força. As labaredas se agigantaram.

— A única Deusa menor que vejo aqui é você.

Nagisa sorriu, riu e a fuzilou com os olhos. Os dentes brancos e perfeitos dela marcaram seu rosto, com os lábios vermelhos dando contraste a palidez. Insanidade pairou nos olhos da Deusa e ela chegou a piscar repetidamente um dos olhos.

Morra de uma vez.

Lia segurou a onda de energia que Nagisa lançou com mais força, mas não o suficiente e enquanto seu fogo era tragado pelos raios dela a jovem pensou nos arrependimentos que a atravessaram na caverna quando encarou a morte.

E seu coração apertou quando pensou que não ter dito à Tristan o quanto gostava dele estava no topo de todos eles agora.

Antes que os raios se chocassem contra Lia, na velocidade em que vinham, um vulto cruzou na frente dela com os cabelos negros agitados fazendo cessar sua própria energia. Tristan subitamente estava na frente de Lia e ele sorriu, com sangue ainda em sua boca, e lhe sussurrou sem voz que ela devia usar aquela oportunidade.

Mas a oportunidade que ele conseguiu para Lia, recebendo todo o poder de Nagisa, fez lágrimas caírem antes mesmo da realidade daquela cena se assentar na cabeça da jovem.

Houve uma explosão nas costas de Tristan e toda a água dentro do salão fumegou estridente, ensurdecendo todos. Nagisa sorriu vitoriosa de onde estava, sem ver nada além de bolhas efervescentes, e Lia a atacou antes mesmo do corpo de Tristan tombar no chão.

As chamas consumiram a Deusa em questão de segundos e o grito dela, esganiçado, ecoou agonizante por todo o palácio e além dele. O corpo dela se transformou rapidamente em bolhas e espuma do mar e depois da reação da água ao ataque da Deusa cessarem, Lia se viu sozinha no salão.

Com as lágrimas vindo com força a jovem olhou receosa para o corpo de Tristan, paralisado, abaixo de si. As costas antes marcadas estavam pulverizadas e em carne viva, e ele não respirava.

Essa percepção a desesperou mais do que tudo e Lia nadou apressada até ele, se lançando no chão e o pegando nos braços. O corpo, que sempre foi tão quente, começava a ficar frio. Não era possível.

Não era possível.

Não era possível.

Lia chiou e soluçou aos prantos, tentando usar seu poder para ajudá-lo, mas nada surtia efeito, e o tritão em seus braços cada vez mais se afastava dela. Para longe, para a morte.

— Droga Tristan, que droga.

Ela o apertou contra si trêmula.

— Por que você fez isso? Idiota. Sabia que podia morrer, seu...

Lia chorou ainda mais.

Ele não lhe disse que poderia haver pena de morte. Ele não lhe deu tempo para salvá-lo. Ele sequer se despediu apropriadamente.

A lembrança do beijo e das palavras dele antes de ir para a entrada a fizeram se desmanchar em lágrimas. Tristan sabia que podia morrer e ele estava disposto a isso, só para salvá-la. E agora...

Lia respirou fundo e abriu os olhos com dificuldade, olhando para o nada ao seu redor. Estava sozinha ali. Completamente sozinha.

Olhando mais uma vez para o rosto de Tristan em seus braços ela desejou que pudesse fazer alguma coisa para salvá-lo. Que pudesse discutir com ele pela loucura que foi o seu plano. Queria batê-lo e dizer que o odiava por isso. Mas que ainda estava apaixonada por ele e o beijaria até perder o fôlego.

Agora, ela não podia fazer mais nada.

Lentamente ela deslizou a ponta dos dedos pelo rosto pálido do tritão.

Mas você pode, minha Deusa.

A jovem levantou a cabeça assustada, olhando para os lados, e viu uma figura ao fundo. Pequena, arredondada e nadando vagarosamente até ela.

— Você é...

Sua guia, minha Deusa.

Lia sorriu, minimamente, ao ver a tartaruga que a havia ajudado antes de seu primeiro encontro com Nagisa. Ela parecia um pouco maior agora, mas ainda era a mesma, sabia.

— Como posso? – sussurrou, sem esperança.

Seu colar. O búzio. Ele é extensor do seu poder, mas também é um amuleto de proteção. Ponha seu desejo nele, minha Deusa, e depois o coloque no tritão.

A mão de Lia foi automaticamente para o colar e sem a menor cerimônia ela o puxou, apertando o búzio na palma de sua mão, desejando, pedindo, exigindo, a vida de Tristan. Pensou no momento em que o conheceu, nos dias que ficaram sozinhos no acampamento, nas conversas, nos risos, nos sorrisos. Nos abraços e no beijo apaixonado escondido dentro do palácio.

Por favor, ela implorou em silêncio, o dê mais uma chance.

O animal se aproximou vagaroso e pairou ao lado de Lia, observando seu movimento. Quando feito o pedido Lia olhou para ele buscando orientação e a tartaruga se encolheu, em incentivo.

Lentamente a jovem colocou o búzio sobre o peito de Tristan e após longos segundos nada aconteceu. As lágrimas saíram rapidamente e Lia gemeu de tristeza.

Uma luz esverdeada envolveu sua mão, seus olhos, seu corpo. A mesma luz envolveu Tristan e se tornou tão forte que a jovem fechou os olhos sem aguentar tamanho brilho.

Quando Lia os abriu novamente, já sem luz, tudo estava normal. Exceto​pelo de que Tristan respirava e o búzio havia sumido da sua mão.

— Para onde ele foi?

— O búzio agora está no tritão. Vai protegê-lo contra males até o dia de sua verdadeira morte.

Lua sorriu, incerta, mas sentindo o corpo de Tristan esquentar novamente o abraçou, notando que as costas antes açoitadas estavam​ cicatrizadas e apenas finas linhas​ preenchiam a pele do garoto.

Soluçando ela agradeceu, sem saber a quem, por Tristan estar vivo. E o abraçou com força, sentindo seu cheiro de sândalo e o calor de seu corpo mais uma vez preencherem o seu.

•••

— Ele é forte, está se recuperando.

— Mas ele não precisa mesmo de nada?

Alguém riu.

— Não capitão, ele não precisa. Tudo que ele precisa agora é acordar e descansar. Foram longos dias de febre e ela finalmente cessou.

— Ele é um convidado de honra no meu navio, minha querida, não esqueça disso. Preciso oferecer o melhor!

— Você já foi bom anfitrião o suficiente, capitão, não se preocupe. Somos eternamente gratos.

Tristan piscou, sendo despertado por vozes altas, e sentiu enjoo antes da tontura. Abriu os olhos e viu madeira por todo lado e o balanço do navio o fez controlar a ânsia.

Ele sentou com dificuldade, ainda de olhos fechados, e quando os abriu dois homens altos, fortes e bronzeados o olhavam curiosos.

Quase que o tritão gritou de susto, mas as vozes que ele havia ouvido continuavam a conversar e uma delas, ele se atentou, conhecia bem.

— Quem são vocês? – perguntou em tom baixo.

O cômodo que se fechava a seu redor era pequeno e quadrado. O tom madeira estava nas paredes, na porta e nos móveis. Um grande armário estava disposto na parede logo a frente, com um homem loiro bem ao seu lado, apoiado com a cintura numa escrivaninha cheia de papéis e remédios.

Ele o encarava de outra forma, diferente dos outros, que tinham mais curiosidade do que hostilidade. Os olhos amendoados desse pareciam avaliá-lo com desdém.

Alguém bateu na porta e a atenção de Tristan foi para ela, notando uma poltrona do lado oposto da cama em que se encontrava. Um dos homens dali de dentro havia batido e a abriu dando visão ao tritão a um corredor escuro.

Por um momento Tristan ficou paralisado, em alerta. Estava em um lugar desconhecido e não tinha a menor ideia de como chegara até ali. Na verdade, seus pensamentos estavam confusos. Tudo que ele lembrava era de...

— Ele acordou!

O som de passos apressados no corredor ecoou e a cabeleira que passou pelo vão da porta, ruiva, fez Tristan sorrir, ainda com o corpo meio dolorido, e o enjoo se tornou distante.

Tudo que ele lembrava era de Lia.

— Tristan, você acordou!

O sorriso no rosto dela aumentou o dele. Ela mantinha agora os longos cabelos vermelhos presos em uma trança na lateral de sua cabeça e tinha pernas novamente, vestindo um conjunto de couro parecido com o da primeira vez que se encontraram.

A admiração dele durou tanto que Lia se aproximou e sentou ao seu lado, na beirada da cama, e ele só conseguiu falar segundos depois.

— Você está bem.

A garota riu, assentindo, e pegou a mão dele nas suas.

— É, eu estou bem. Quem não estava bem...

Lia tocou na testa dele afastando os cabelos negros que caiam sobre ela.

— Era você.

Os homens que estavam ao redor de Tristan, e o observavam em relação a sua saúde, se espaçaram e vagarosamente saíram do quarto, totalmente esquecidos pela dupla.

Exceto Kevin, apoiado na escrivaninha, que observava a cena irritado. Lia havia praticamente o evitado durante todos os dias desde que voltara ao navio, encharcada e com aquele tritão em seus braços.

Ela estava chorando e Pierre se desesperou quando foi avisado de sua chegada. Acomodou prontamente o soldado de Nagisa num dos vãos de carga e improvisara uma cama, mais confortável do que a que ele mesmo dormia.

Kevin não sabia a história daquele garoto, seu antigo inimigo, mas a preocupação de Lia com ele o deixava com raiva. E a expressão dela, agora, o enchia de irritação.

Lia deslizou a mão da testa para o rosto de Tristan, sentindo o calor que se desesperou ao sentir esvanecer naquele palácio. Agora ele estava vivo, na sua frente, e seu coração se aquecia frente aqueles olhos que tanto gostava.

A sua guia a alertou que Tristan podia sofrer um processo de rejeição ao amuleto e ele ficou dois dias inteiros queimando em febre sem nem ao menos ter acordado. Agora ele estava ali, bem e desperto, e Lia se sentia aliviada.

Sem pensar duas vezes ela o abraçou e o tritão riu, envolvendo-a apertado em seus braços. Na hora em que desistiu de sua vida para salvá-la ele pensou que nunca mais poderia senti-la daquele jeito. Mas ali estava ele, vivo, e com Lia em seus braços mais uma vez.

E ele desejava que não fosse a última vez.

Ele afundou o nariz nos cabelos avermelhados, sentindo o cheiro floral que conhecia tão bem, e sorriu automaticamente. Como ele estava morrendo de saudades deles.

— Seu idiota — ela murmurou​, com raiva.

Tristan riu e Lia o apertou mais contra si.

No quarto Pierre entrou silencioso observando a cena e sorriu ao vê-la, com o garoto que Lia ficara ao lado desde o dia que havia voltado para o navio abraçado a ela.

O capitão lançou um olhar de aviso para Kevin, mas ele o ignorou, focado no abraço da dupla. Com seu corpo cada vez mais se enchendo de raiva.

E inveja.

Os olhos de Tristan foram até ele curiosos e Kevin o encarou com mais intensidade do que pretendia, irritado. Lia o ignorou durante todos os dias que ficou no navio focando exclusivamente naquele pirralho.

Ele não conseguia aceitar isso.

Quantos anos ele teria?

Pierre pigarreou, alertando o filho, e o olhar de ambos os garotos se voltaram para ele. Tristan o olhou interessado, vendo o chapéu e a barba que o haviam intimidado na caverna cobrirem um homem muito mais irreverente. Diferente da expressão do capitão na caverna aquele sorriu para ele e guiou o filho para fora do quarto fechando a porta.

Lia continuou abraçada a ele por mais alguns minutos antes de se afastar, ainda temerosa, e olhou dentro dos olhos azuis com cuidado. Tristan sorriu e o coração dela acelerou.

Ele estava ali. Ele realmente estava ali. Vivo.

— Eu vou matar você.

O tritão olhou surpreso para ela e fingiu medo.

— O que uma Deusa tão poderosa vai fazer com um pobre mortal? – ele se encolheu, teatralmente.

Lia, entretanto, não riu permanecendo séria.

— Por que não me contou que pretendia se sacrificar para que eu fugisse?

Tristan ficou em silêncio, desfazendo a postura de brincadeira.

— Por que?

— Porque você nunca aceitaria. E o mais importante para mim era sua segurança, Lia.

— Mas a sua segurança era importante para mim. Eu acreditei que você levaria apenas um esporro e seria perdoado. Sabe o quanto doeu ver você sangrando naquele chão?

O tritão a olhou sentido e Lia suspirou, balançando a cabeça.

— Você é muito cabeça dura.

— Você também.

Ela ergueu a sobrancelha e ele a rebateu.

— Onde estamos?

— No navio de Pierre. Vim direto para cá depois que...

Eles ficaram em silêncio, mas Tristan o quebrou encarando a ponta da trança de Lia.

— O que aconteceu com ela?

A pergunta pegou Lia desprevenida e, tomando fôlego, a jovem se preparou para a conversa que esperou por dias. Mas antes que Lia começasse um monólogo batidas na porta os interromperam.

Ambos olharam automaticamente para ela e um marujo de longos cabelos, que Lia identificou como sendo Finn, anunciou que requisitaram a presença dela na cabine.

Lia assentiu, dizendo que já ia, e assim que a porta voltou a se fechar encarou o garoto a sua frente.

— Preciso ir, eu já volto.

Acariciando o rosto dele uma última vez Lia levantou. Tristan, entretanto, segurou seu pulso.

— Para onde estamos indo?

Lia sorriu de lado.

— Para minha casa.

Tristan a olhou surpreso e tão logo Lia disse isso ela saiu do quarto improvisado. O garoto, sozinho, encarou a parede e o teto de madeira por longos segundos antes de sorrir. Tanta coisa havia acontecido até ali e tudo parecia um sonho estranho. Seu corpo, ainda dolorido, lhe dava a sensação de acordar após um longo sono.

Mas ele estava ali, Lia estava ali, e era o que mais importava. Tristan havia dito a ela que a sua liberdade era ajudá-la, mas na verdade sua liberdade era ela. Lia o fazia sentir-se livre.

E extremamente vivo.


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Notas finais do capítulo

Ufa!



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