A Herdeira do Oceano escrita por carlotakuy


Capítulo 18
Sonho e liberdade




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Depois de ser intimidada pelo capitão para que levasse uma refeição completa para seu convidado de honra Lia retornou ao quarto com diversas bandejas de comida e Tristan agradeceu ao chefe, um marujo gorducho e sorridente, que lhe disse para aproveitar tudo como se fosse sua última refeição.

Todos se entreolharam nesse momento e rindo o tritão aceitou, já provando e elogiando a comida antes mesmo do homem ir embora.

Tomando fôlego, enquanto Tristan comia, Lia lhe contou o que havia acontecido no palácio. O resgate e o confronto. A história que descobriu sobre sua mãe e também sobre sua cauda e suas origens. Noite a dentro essa narração durou e enquanto a jovem terminava de contar sobre como havia salvado o tritão, o sol iluminou o cômodo.

— Então tudo isso aconteceu?

Tristan estava agora sentado na beirada da cama vestindo uma roupa gasta de tecido, com Lia logo a sua frente, na poltrona velha, porém aconchegante do navio. Ela assentiu às suas palavras, mudando a posição das pernas.

— Sim, tudo isso enquanto você estava morto no chão do palácio – lhe lançou um sorriso de ironia.

Tristan sorriu de lado, meio culpado, e se inclinou na direção dela.

— Eu sinto muito. Realmente achei que você iria fugir junto com os seus amigos.

— E deixar você sozinho? Depois do que passamos juntos? Achou que eu fosse fazer isso?

O sorriso do garoto se tornou tristonho.

— Eu desejei isso. Assim você ficaria viva e salva em algum lugar.

— Você é um idiota se achava isso.

Ela levantou e começou a andar até ele.

— E eu te odeio por ter feito isso.

O tritão a olhou sentido, de baixo para cima, e Lia não hesitou em bater nele como desejou fazer a partir do momento em que notou que ele sabia a possibilidade de morrer. Estapeando-o sem parar Lia acabou caindo com ele na cama improvisada e grunhiu quando Tristan segurou seus punhos.

— Me perdoe, Lia. Eu...

Ela se desvencilhou, lhe batendo novamente, mas parou depois do terceiro tapa encarando raivosa os olhos azulados. Por alguns segundos, ela nada falou, mas quando voltou a se mexer ela o beijou ao invés de batê-lo.

E dessa parte Tristan gostou, envolvendo-a rapidamente com seus braços, puxando todo o corpo de Lia para si, sentindo ela vagarosamente se encaixando a ele. Foi uma explosão, uma súplica, um beijo cheio de necessidade e desejo.

A cama era pequena e improvisada, mas não vacilou enquanto eles se entregavam, completamente, ao desejo que havia surgido muito tempo atrás naquela ilha.

Quando seus lábios se separaram, olho no olho, Lia sussurrou, ainda sofrendo, e apertou os braços dele com a unha.

— Eu estou com tanta raiva.

Tristan riu das palavras de Lia, deslizando os dedos pelo rosto dela, a puxando mais para si pela cintura. Mergulhando nos olhos verdes de sua dona, ele sussurrou.

— Então por que me beijou?

Ela o encarou irritada voltando a bater nele.

— Porque estou apaixonada por você.

O tritão novamente interceptou suas tapas, segurando nos punhos dela, e a olhou surpreso, ainda que parte de si saltasse e se remexesse em agitação com aquela afirmação. Com aquele olhar de entrega. Com a raiva que ela carregava por ele ter a deixado de lado.

— Não me diga isso quando me olha com tanta raiva.

Ela se debateu tentando se desvencilhar.

— Amor e ódio andam juntos, nunca ouviu por aí? – novamente se remexeu.

— Então você me ama?

Com os rostos​ tão próximos Lia se viu tentada a dizer sim, mas sabia que era loucura. Como podia amá-lo com tão poucos dias de convivência? Ela não conhecia Tristan de verdade, até então só havia visto o que ele lhe mostrara.

Mas isso não queria dizer que não queria.

— Agora eu te odeio.

Novamente ela o beijou e juntos eles rolaram na cama, com a risada de Tristan reverberando no quarto vazio e os tapas de Lia esvaziando toda a raiva que ela sentia, abrindo lugar para o amor.

•••

O convés estava agitado quando Tristan surgiu do interior do navio, mas o sol, o mar e o vento salgado o chamou muito mais atenção do que o movimento de marujos indo de um lado a outro, controlando velas e dando nós em cordas.

Lia veio logo atrás dele e sorriu ao ver os olhos do tritão brilharem ao admirarem o céu e a revoada de pássaros que por ali passava, ecoando no céu anil. O mesmo céu que brilhava nos olhos dele.

O coração de Lia se aqueceu, como sempre fazia perto de Tristan, e ela o seguiu saindo das escadas.

— Então essa é a sensação de estar num navio?

— Nunca esteve em um antes? – ela ficou ao lado do garoto.

Tristan negou com a cabeça ainda olhando ao redor e finalmente focando nos movimentos no convés. De um lado alguns marujos estavam sentados em barris, tentando pescar e rindo enquanto conversavam, do outro um deles amarrava a última corda da vela principal, amenizando o vai e vem.

— Eu lembro da sensação de entrar a primeira vez em um navio – comentou Lia, seguindo junto ao tritão para a mureta próxima – eu tinha dez anos e tudo ao meu redor balançava. Não foi fácil me manter de pé também – riu – mas a visão que tive...

Ela se apoiou na madeira fria e encarou a vastidão do mar aberto, uma mistura de verde e azul, que se estendia a sua frente. As ondas e o som de pássaros próximos a lembravam do porto que deixou para trás há muitos dias. Como estaria Nathan? Agatha? Teriam eles ido atrás dela e de Ana?

— Tirou o fôlego? – ele completou, sorrindo.

Lia sorriu também e assentiu, olhando para Tristan. Mas o brilho nos olhos azuis lhe dizia que ele não estava falando do mar infinito com aquela frase. Os cabelos negros se agitavam com o vento, uma nova cicatriz havia surgido, bem próxima a de seu queixo, e o sorriso dele parecia convidá-la para mais um beijo.

Em que momento, em meio àquela jornada maluca, ela se tornou tão atraída por Tristan? Pelo seu sorriso, sua voz, sua história. O tritão a sua frente era um oceano profundo, desconhecido, que a fazia querer se aventurar sem medo.

Tudo. Ela queria saber tudo.

— Qual foi o momento mais marcante da sua vida? Quais seus hobbies? Qual a sua cor preferida?

Tristan riu com a velocidade que a garota o encheu de perguntas e levantando o dedo esperou que ela parasse para que pudesse responder.

— Desse jeito sou eu quem vai ficar sem fôlego aqui.

Ela riu.

— Às vezes eu sou meio agitada. Espero que não seja um problema pra você.

Imediatamente Tristan ergueu a sobrancelha.

— O que quer dizer com isso?

Lia corou e deu de ombros, tentando dar menos importância ao que havia dito do que realmente tinha dado. Ela estava com medo de sua personalidade ser rejeitada pelo tritão. O seu jeito cotidiano ser rejeitado seria...

— Lia, não fuja da pergunta.

Ela olhou contrariada para ele, mas nada falou.

— Eu jamais acharia um problema você ser do jeito que é. Somos diferentes, e isso é um fato, podemos ter divergências sim, mas é isso que dá o sentido da nossa existência.

Tristan sorriu de lado e Lia sentiu que poderia derreter sob aquele sorriso.

— Então você ser agitada, não gostar de joias e vestidos ou ter a mania de ficar provocativa numa discussão não são um problema para mim. Estou aceitando você do jeito que você é e peço que também me aceite como sou.

Ele pegou a mão dela e a beijou.

— Meu hobbie é catalogar plantas e minha cor preferida é branco – lentamente ele desceu os olhos para os cabelos dela – mas acho​ que a partir de hoje é vermelho.

Ambos riram e Lia o estapeou, como havia feito no quarto horas mais cedo, e voltou a encarar o horizonte e a água cristalina. Um lampejo de lembrança, misturada com sonho, atravessou seus pensamentos. Sândalo, água salgada e a imensidão esverdeada sumindo. Ela rindo e o cheiro de Tristan preenchendo cada pedaço da sua pele. Envolvente, quente e aconchegante.

Com esse sentimento ela sorriu. 

— Você não me disse o momento mais marcante da sua vida.

Tristan, sem olhar para Lia, sorriu.

— Não é óbvio que foi quando te conheci?

Automaticamente Lia lembrou das palavras dele na ilha, na caverna e em sua casa. Seu desabafo sobre a vida, sobre sua história, sobre liberdade.

— Então me diga um momento marcante antes de me conhecer.

Desta vez, Tristan pareceu pensar. Foram longos segundos de silêncio até vir sua resposta.

— Quando recebi minha primeira insígnia de honra. Tínhamos acabado de voltar de uma luta dura contra uma cidade próxima que não venerava Nagisa. Ela ordenou que matássemos todos, mas conseguimos negociar com eles para que começassem a idolatrá-la, ao menos o mínimo para que ela os deixasse em paz, e todos os generais receberam essa condecoração.

O sorriso ínfimo no rosto do garoto não passou despercebido por Lia.

— Foi a primeira vez que percebi que a força não ganhava batalhas. Batalhas eram feitas por pessoas. Pessoas ganhavam batalhas. E não era necessário derramar sangue por isso.

Ainda sorrindo ele olhou para a jovem.

— Esse foi um momento marcante para mim.

Lia sussurrou em concordância e por longos minutos eles ficaram ali, conversando sobre preferências, hobbies e gostos. Lia deixou claro preferir comidas salgadas à doces, enquanto Tristan descreveu com riqueza de detalhes a sensação do açúcar em seu paladar marinho.

Eles riram quando encontraram pontos divergentes em suas personalidades, como o jeito rebelde e extrovertido de Lia e o mais introvertido e centrado de Tristan. E riram mais ainda quando descobriram gostar do pôr do sol e de cáqui.

Mas também haviam diferenças gritantes em suas realidades e Lia contou a ele sobre a vida na terra, com o comércio, dinheiro e modos de se vestir. Tristan complementava tudo que ela falava fazendo um contraponto a vida marinha, sem a luz direta do sol e a falta do que ela chamou de fogão, quadrados​ grandes com bocas que soltam fogo.

Foi quando o estômago de Lia roncou que eles decidiram almoçar. E enquanto caminhavam, de mãos dadas, em direção a cabine do capitão, por convite do mesmo para uma refeição especial para seu convidado, o olhar de um dos marujos chamou a atenção do tritão.

— Estou curioso desde que acordei sobre uma coisa.

— O que? – Lia o olhou automaticamente, curiosa.

— Por que aquele homem não para de me encarar como se estivesse com raiva? Pelo que me lembre não fiz nada para ele ainda.

— Ainda? – a jovem riu, olhando para o tal marujo.

Do outro lado do convés, próximo ao mastro do timão, estava Kevin. Ele vestia uma roupa parecida com a dos outros homens, tecido folgado e calças de couro, com os cabelos loiros molhados e secando açoitados pelos ventos. Ainda era o mesmo garoto que a recebeu na cabine do capitão naquele dia, o mesmo que dançou com ela no convés, aquele que a treinou na luta com espadas ali, pelo local que estavam passando.

Mas agora, e talvez muito antes, Lia percebeu, ele já não a atraia intensamente. Não havia atração, calor ou desejo. Porque agora todos os seus pensamentos eram sobre o tritão ao seu lado, que por sinal esperava pacientemente por uma resposta.

Limpando a garganta Lia continuou a andar, guiando Tristan.

— Digamos que talvez nós tenhamos flertado bastante antes daquela luta e minha ferida mortal.

A sobrancelha de Tristan se ergueu e ele abriu um sorriso de lado.

Flertado bastante?

— Um pouco, um pouco. Eu sou jovem, ok?

Ele riu, desta vez rebatendo o olhar de Kevin, do outro lado do navio, sabendo exatamente o que ele significava. E Tristan não abriria mão da garota que agora tinha a seu lado pelos ciúmes de um pirata.

— Então talvez eu deva flertar bastante por aí também?

Ela o fitou com os olhos semicerrados, pronta para rebatê-lo em defesa de seu relacionamento recém iniciado, mas Tristan riu, puxando-a para si pela mão que compartilhavam.

— E então, quer flertar bastante quando voltarmos ao quarto?

Lia corou antes de perceber, perdendo as palavras que estavam na ponta da língua, e Tristan riu ainda mais, abraçando-a com um braço só. O calor e o cheiro dela aqueceram seu corpo.

— Sinto dizer, mas às vezes eu sou um pouco ciumento.

— Engraçadinho – Lia o beliscou.

Beijando-a na cabeça, em meio aos cabelos ruivos, Tristan a soltou, entrelaçando ainda mais suas mãos.

— Não teve nada entre nós – ela murmurou, fazendo-o rir.

— Estamos aqui agora – ele apertou suas mãos – o passado é passado a partir desse momento.

Parando na frente da porta do capitão, com a mão na maçaneta rústica, Lia parou alguns segundos, levando os olhos até o garoto ao seu lado.

— O que você quis dizer naquela hora com mania de ficar provocando numa discussão?

Tristan riu e ela abriu a porta, ainda fixa nele esperando sua resposta. Enquanto o tritão contava que escutou partes do diálogo dela com Nagisa, as que ela a provocava, eles entraram no cômodo, sendo recebidos pelo sorriso enorme do capitão, sua barba muito bem-feita e uma mesa fumegante com uma comida que, Lia sabia, deveria estar deliciosa.

•••

Assim que chegaram a ilha Halouei Lia mal havia descido no porto quando foi rapidamente abraçada pela dona dos longos cabelos negros que conhecia bem. No momento em que Ana a envolveu em seus braços e Lia sentiu o calor e o cheiro de sua irmã, ela vacilou se acabando em lágrimas.

— Você demorou tanto!

As duas choraram agarradas no píer, enquanto Pierre observava-as de seu navio, ao lado de Tristan que esboçava um sorriso fechado ao vê-las juntas. As palavras sonhadoras de Lia sobre Ana começavam a tomar forma logo a sua frente.

— Sabe o que é isso, meu filho?

O tritão olhou para o capitão e assentiu, novamente descendo os olhos para as irmãs. Aquilo era o que Lia chamava de...

— Casa.

Sorrindo abertamente Pierre concordou com a cabeça e alisou sua barriga.

— Hora de descermos, garoto. Temos uma grande festa nos esperando..

Tristan tirou a visão das garotas para o capitão. Eles haviam conversado por horas a fio na cabine antes de chegarem a ilha e Pierre era diferente do que ele imaginou, vendo-o na caverna. Talvez fosse a atual presença de um coração e novos sentimentos brotando dentro dele, mas talvez fosse a personalidade daquele homem, que mesmo se aproximando da velhice exibia a energia de uma criança.

— Estou louco por uma festa de piratas.

Com a risada do capitão, que começou a comandar seus homens para a ancoragem do navio, Tristan desceu para a plataforma de madeira, se aproximando lentamente do misto de choro e riso que havia se tornado o reencontro de Lia.

A dupla, entretanto, já não sabia se estavam realmente chorando ou rindo, e lentamente foram se afastando. Cadu se aproximou meio tímido, pronto para um abraço e uma bronca, mas se rendeu a risada de Lia e seu abraço, se esquecendo da carta e da fuga.

Quando cedeu sua irmã para o namorado Ana viu Tristan, alguns passos atrás delas, e ele acenou. Retribuindo o aceno seguiu até ele, lhe estendendo a mão e sendo correspondida.

— Novo por aqui?

— Um pouco – Tristan sorriu, olhando para Lia.

Ana seguiu seu olhar e abriu um largo sorriso, voltando-se para o garoto a sua frente após alguns segundos.

— Bastantes novidades nessa viagem?

— Você nem imagina. Ana seu nome, estou certo?

A garota pareceu surpresa.

— Sim. E o seu?

— Tristan – ele novamente estendeu a mão e ela a apertou.

Voltando a olhar para Lia e Cadu, que agora começavam uma discussão breve, Ana sussurrou para si, baixinho, fazendo Tristan rir:

— Ela vai ter que me contar tudo o que aconteceu.

•••

Mal haviam descido do píer para a areia da praia quando Lia foi bombardeada por Ana e Cadu de perguntas sobre como foi a viagem em busca do coração. Antes de ser alugada por eles a jovem apresentou Tristan ao casal, como um bom amigo, e ele fez uma careta frente a descrição, recebendo um beliscão e rindo da reação de Lia.

Ana e Cadu pareceram surpresos, mais Cadu do que Ana, e eles se cumprimentaram, com Ana apenas refazendo as formalidades pelas quais já haviam passado.

No percurso até a mansão Lia contou, de forma rápida e indolor, que lutaram contra um navio pirata e soldados, que foi ferida mortalmente e tratada por Tristan e que com ele enfrentou algas parasitas, fugiu de um monstro marinho e invadiu o palácio de sua mãe.

Da luta contou brevemente que Nagisa desapareceu em bolhas, deixando Tristan um pouco tenso. Ela sentiu a mudança do tritão pela mão que compartilhavam, mas a apertou, tentando amenizar a reação dele. Depois falariam sobre isso, ela quis dizer, e respondendo-a Tristan sorriu contando um pouco sobre a realidade subaquática.

Ana ficou maravilhada enquanto Cadu permaneceu com um pé atrás, reclamando, quase o tempo inteiro, sobre ela ter fugido deixando apenas uma carta para trás. A irmã de Lia comentou sobre os dias que passaram ali e teceu muitos elogios a Anthony e sua hospitalidade, assim como a sua extensa coleção de estátuas e obras de arte.

Chegando na mansão o grupo, tanto de jovens quanto de marujos, foi recebido com festa. Havia música, mesas, homens bebendo e dançando em meio ao quintal da construção e um ex-capitão extravagante na porta principal, elevando uma taça de bebida com um sorriso de orelha a orelha.

Pierre, que vinha logo atrás, riu animado e Anthony desceu as escadas imediatamente abraçando o companheiro. O pequeno grupo entrou no meio da festa e por algum tempo, entornando os cálices de bebida junto a alguns marujos, Lia esqueceu do caos que haviam​ sido os últimos dias, na ilha, no fundo do mar, na espera para que Tristan acordasse.

Agora ao lado do tritão, vendo-o fazer careta a cada dose de rum que a acompanhava, sorrindo e rindo junto a ela, Lia se sentia extremamente feliz. Seu corpo estava leve e mesmo com Ana falando da saudade que estava sentindo de casa e da ansiedade para voltar logo, Lia não desanimou.

Apresentou Tristan à Anthony assim que os capitães se juntaram a eles numa mesa improvisada de barril e os olhos do homem brilharam ao conhecerem um verdadeiro tritão. Ele conversou brevemente com o garoto sobre alguns mitos do mar que conhecia e se surpreendeu com os conhecimentos de Tristan.

Enquanto tudo isso acontecia, Lia bebericou de seu rum observando, do lado completamente oposto e proposital, Kevin e Kyler conversando casualmente e baixo, ainda que a música estivesse alta o suficiente para a jovem ter certeza de que não estavam conseguindo se escutar.

O loiro lançou olhares para ela em alguns momentos e Lia sentiu que deveria fazer alguma coisa quanto aquilo. Não parecia certo subitamente começar a ignorá-lo, como bem-estava fazendo. Falara com Kevin praticamente o básico desde que havia voltado com Tristan.

Então, se levantando e deixando Ana e Cadu na bolha que haviam criado para si e Tristan sendo alugado por Anthony, Lia seguiu até o pirata do outro lado, sem saber muito bem o que fazer ou falar.

Mas quando Kevin levantou os olhos para ela, Lia soube o que queria.

E ela não queria perder Kevin.

— Podemos conversar?

Kyler abriu um sorriso zombeteiro, encobrindo-o com a taça de vinho que bebia, e Kevin o encarou com os olhos semicerrados antes de se voltar a Lia, sem nenhuma expressão no rosto.

— Claro.

Levantando Kevin a seguiu. Eles pararam perto das escadas que davam acesso a mansão e se escorando no corrimão de pedra o loiro encarou Lia, cruzando os braços.

— O que quer?

— Eu vim pedir desculpas.

As palavras dela o desarmaram e o pirata que foi pronto para comprar briga titubeou, vendo os olhos sinceros que o fitavam com determinação. Os mesmos olhos que o fisgaram naquele navio, os mesmos olhos que o atraiam como imãs. Lia sorriu, tímida.

— Desde que cheguei não falei com você e como deve ter percebido...

Ela lançou um olhar para Tristan, ainda entretido, e o loiro maneou a cabeça.

— Você voltou acompanhada.

— É – Lia murmurou, voltando para ele – e estar acompanhada não me dá o direito de ser babaca, eu sei. Então principalmente peço desculpa por isso. E também não quero que fiquemos assim.

Lentamente a sobrancelha de Kevin se elevou e um sorrisinho de lado despontou em seu rosto.

— Assim?

— Você lá, eu aqui, fingindo que não nos conhecemos – ela gesticulou – quando nos conhecemos sim. E eu estarei sendo mentirosa se disser que você não foi importante para mim.

Lia o encarou e Kevin teve certeza do sentimento que brotou no instante em que viu ela agarrada ao corpo inconsciente do tritão, chorando por ele como ele nunca a havia visto chorar.

O sentimento de que a havia perdido. Perdido a garota que quis beijar naquela floresta. Perdido o sorriso caloroso e os olhos que brincavam quando ele lhe cantava.

Mas Kevin sabia que havia perdido ela muito antes de vê-la debaixo da água, de vê-la com o tritão, de vê-los de mãos dadas.

E foi quando pensou em entregá-la para Nagisa.

Kevin não contou isso a seu pai ou qualquer outra pessoa. Guardou o peso da culpa durante todos aqueles dias na prisão, pensando que Lia estava morta, e que talvez não tivesse lutado o suficiente para salvá-la, insistido o suficiente para que ela fugisse.

Que ele tinha a traído naquele momento, com aquele pensamento. Não merecia Lia, Kevin sabia. E essa certeza só se intensificou com a chegada do tritão, com o relacionamento deles. Com o sorriso dela ao seu lado.

Quem sabe fosse para ser assim, apenas uma paixãozinha entre tantas que ele já tivera. Mas Lia era especial, sempre foi, e Kevin não iria esquecer dela e nem do momento em que a perdeu.

— Você é importante para mim, Kevin. Sem você eu teria morrido naquela caverna sem nem ao menos poder me defender. Se não fosse você e seu pai eu jamais teria tido a oportunidade de me encontrar. De encontrar minha mãe, minha história, ele – novamente indicou Tristan.

— Meu ego está completamente ferido nesse momento.

Lia sorriu à suas palavras.

— Você também foi importante pra mim, Lia. Não precisamos fazer isso mais complicado do que parece. Estamos bem.

Ela olhou receosa para Kevin, mas o loiro sorriu e lhe estendeu a mão. Pegando a mão dele na sua Lia sentiu que tudo estava realmente bem e eles riram, sem saber porquê. Era estranho reviver o passado naquele toque de mãos, como no momento em que Lia fez o acordo com Pierre, mas não tinha passado ali.

Aquilo era futuro.

•••

— E então, que tal? O que achou da minha humilde casa?

Lia prendeu o riso, logo atrás de Anthony e Tristan, olhando de soslaio para Pierre, que os seguia lado a lado. O tritão maneou a cabeça, percebendo o excesso de decoração.

— É grande e parece aconchegante. E o mais importante de uma casa é o sentimento que ela traz.

O amigo de Pierre colocou a mão no queixo, pensativo, enquanto eles terminavam de subir os degraus. O primeiro andar ainda era tão extravagante quanto dá última vez que ela estivera ali e caminhando pelo corredor Lia notou que era o mesmo em que havia ficado hospedada. E logo a frente, além de alguns marujos que passavam trêbados, estava uma sacada.

— Então aqui terminamos nosso tour – Anthony bebeu um longo gole de seu cálice – ou gostaria de admirar minha coleção de quadros famosos?

Em milésimos de segundos, depois do olhar de Tristan cair sobre Lia perguntando-a claramente o que fazer, ela se colocou ao seu lado, sorrindo simpática para o ex-capitão e segurando na mão do garoto.

— Agradecemos muito, mas estamos cansados. No momento, só queremos descansar.

— Entendo.

— Mas amanhã parece ótimo! – interveio o tritão, fazendo Lia apertar a mão dele mais do que o suportável.

Anthony sorriu ao comentário e concordou, entornando a bebida.

— Então amanhã nós iremos! Por enquanto, aproveitem sua estadia aqui.

— Claro, muito obrigada.

Ele virou-se, pronto para entrar num corredor lateral, e Pierre acenou para a dupla, seguindo o amigo. Deixando-os sozinhos no opulento corredor da enorme mansão.

— Amanhã parece ótimo?

Tristan riu da expressão indignada no rosto de Lia enquanto ela o puxava para o lado oposto dos homens. Na direção da varanda.

— Ele deve ter uma outra mansão só com...

— Eles realmente parecem boas pessoas.

As palavras do tritão fizeram Lia diminuir seus passos e ambos adentraram na sacada. Era ampla e vazia, com uma visão privilegiada do sol descendo de encontro ao mar logo a frente e a brisa fria da tarde resfriando o espaço.

— Sim, eles são.

Lia sorriu, tomando um gole de rum, agora mais tragável do que na primeira vez, e caminhou até o parapeito da varanda, apoiando ali seu copo.

— O dia está acabando – ela murmurou.

Parando ao seu lado e apoiando o copo ao lado do de Lia, bem mais cheio que o da garota, Tristan assentiu encarando o pôr do sol que vagarosamente se desenrolava a sua frente.

— E a minha jornada também – continuou, ainda mais baixo.

O tritão não olhou para Lia, pondo os cotovelos na mureta. Ele entendia o que aquilo queria dizer, ou também o que não dizia. E ambos não tocaram no assunto em momento algum depois que o tritão havia acordado, mas ali estava ele, exigindo ser discutido.

— Sinto que postergamos essa conversa até agora.

— É – Lia murmurou girando o copo de rum.

Ela encarou além da varanda, cheio de pessoas na parte de baixo, indo de um lado para o outro sob o gramado ralo, misturado a areia da praia na frente da mansão, e suspirou. Era difícil falar sobre futuro naquele momento.

— Eu não sei como vai ser daqui pra frente. Não sei se quero voltar para minha antiga vida.

— Nunca foi possível saber o futuro, Lia. Mas estou preparado para o que vier a frente – ele a olhou – mas e você? Está?

Um ínfimo sorriso surgiu em seu rosto.

— Gosto de pensar que sim.

Eles sorriram um para o outro e voltaram a encarar a festa que se desenrolava logo abaixo, assim como o sol que esvanecia no horizonte. Os raios alaranjados começavam a manchar o céu e alguns marujos acendiam grande tochas ao longo da animada festa.

— Pierre me chamou para fazer parte de sua tripulação.

Tristan soltou um chiado de concordância.

— E o que você acha disso?

— Acho bastante tentador – olhou de lado para ele – a vida selvagem num navio em pleno alto mar me enche de energia.

Lia suspirou.

— Mas não é isso que quero.

— E o que você quer?

Tristan desceu seus olhos sobre a jovem e os raios rubros do pôr do sol, mesclados aos cabelos dela, deixaram o coração e todo o corpo do garoto agitado. E o sorriso em seu rosto, junto ao olhar sonhador e pensativo, o encheram de calor. De carinho. De amor.

— Eu quero ir atrás da minha origem. Eu quero ir ao oceano Pacífico.

O tritão sorriu, a incentivando, e Lia assentiu convicta, com o sorriso maior do que antes.

— Levarei Ana para casa em segurança e irei em busca de respostas e talvez novas perguntas. Nagisa não foi o fim. Tem vários oceanos a frente, me esperando, e estou pronta para entrar neles.

Virando totalmente para o tritão Lia tomou fôlego, pronta para a pergunta que remoeu fazer todo o caminho até aquela varanda. Vendo o preparo dela Tristan esperou e sorriu automaticamente com suas palavras.

— E você? Quer entrar neles comigo?

Deslizando as mãos para a cintura de Lia, puxando-a vagarosamente até si, ele assentiu chegando tão próximo que apenas um único movimento levaria a um beijo. Mas Tristan postergou aquele momento por longos segundos, segurando uma Lia insegura em seus braços, com a respiração acelerada e olhos ansiosos.

— Sempre desejei liberdade, Lia. E agora que a tenho quero usá-la da melhor forma possível.

Sorrindo de lado ele sussurrou, baixinho, no espaço entre seus lábios​:

— Então eu vou a qualquer lugar com você, minha Deusa.

Primeiro ela abriu um sorriso pequeno que aumentou conforme o processamento daquelas palavras. Rindo no final a mesma o puxou para um beijo, profundo e ansioso, que fez as pernas dela ficarem bambas.

Quando se afastaram, ambos sem ar, o sol já havia desaparecido no mar, e a luz de dentro da mansão os iluminava na varanda vazia.

— Mas não acredito que Nagisa tenha sido o fim.

O êxtase de Lia lentamente se esvaiu, dando lugar a confusão. Tirando um dos braços da cintura da garota, mas mantendo-a perto Tristan retomou o grande copo de rum apoiado na varanda, o entornando.

— O que quer dizer com isso?

— Talvez Nagisa não tenha tido um fim. Talvez ainda esteja viva.

— E com base em que...

Lia lembrou da tensão dele quando ela contou a Ana e Cadu sobre o desaparecimento de sua mãe em bolhas. Apertando inconscientemente o ombro de Tristan, enquanto se apoiava nele, ela encarou seu próprio copo na varanda.

— O que pode ter acontecido?

— Eu não sei – ele fez uma careta com o ardor na garganta – mas pode ser que ela tenha fugido. Sem corpos, sem provas.

Lia assentiu e balançou freneticamente a cabeça, de um lado para o outro, antes de pegar seu copo e imitar o tritão. Quando engoliu a última gota de álcool assoprou com a boca ardendo por dentro.

— Não vamos pensar nisso agora. Estamos em uma festa.

Tristan riu e a soltou apoiando seu copo na mureta.

— Então vamos descer e dançar esse negócio que os humanos chamam de música!

Lia riu quando Tristan tentou imitar os marujos na dança, de um jeito trôpego e arrastado. Ele sorriu para a garota, bêbado, e a visão a sua frente a fez rir ainda mais.

Naquele momento ele não parecia um soldado nem mesmo o garoto que encontrou naquela caverna. Ela tão pouco. Ambos haviam mudado durante aqueles dias e a sensação dentro de Lia, aquela que a aquecia toda a vez que encontrava os olhos azuis do garoto, a fazia querer mudar ainda mais.

Junto com ele.

Correndo até Tristan ela pulou em seus braços. O tritão a segurou cambaleando, rindo, e recebeu um beijo tão intenso que nem mesmo as chamas que ardiam próximas poderiam se comparar.

Mesmo que as mesmas tivessem se agitado junto com as emoções da garota.

Afastando-se e olhando naqueles olhos intensos e anis Lia sentiu que tudo fazia sentido. Os sonhos, a jornada, o ataque que virou cicatriz em sua barriga. Apesar de todo sofrimento ela não mudaria nenhum​ dos acontecimentos​ que os havia levado até ali.

Que a havia feito conhecer Pierre. Que a havia feito conhecer Tristan. E que agora a levava para o seu próprio futuro.

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Fugitiva dos sete mares [olhas as notas]


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Notas finais do capítulo

Fechando a história e encerrando essa aventura fantástica de Lia! Eu, completamente apaixonada por ela, deixei o final em aberto para o futuro, mas é um projeto que precisa ser muito bem elaborado, então, por enquanto, vamos só aproveitar esse momento de paz ahsjahjsa. E ah! Sobre as sereias com caudas roxas tenho para postar uma história, que colocarei aqui o link, e que traz uma nova personagem e um novo enredo, ainda que passeando pelo mesmo universo. Se quiserem dar uma olhada, só entrar no link ao final do capítulo.

Então, adeus ou até mais!



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