A Herdeira do Oceano escrita por carlotakuy


Capítulo 16
Punição


Notas iniciais do capítulo

Boom!



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— Deixa eu ver se entendi – Lia nadou pela enésima vez ao redor do cômodo enquanto Tristan continuava sentado em sua cama – você quer que eu entre no palácio disfarçada de serviçal e que você distraia Nagisa se entregando para ela? Está louco?

Tristan sorriu de lado para a garota, mas Lia cruzou os braços parando o nado e o encarou com a sobrancelha arqueada.

— É um ótimo plano – ele argumentou, mas Lia permaneceu na mesma posição.

Não, não vamos fazer.

— É nosso único plano.

— Você pode acabar morto.

— Qual o seu plano?

Ele cruzou os braços e a imitou, erguendo a sobrancelha. A contragosto ela afastou seus braços.

— Eu...

— Você não tem um plano. Eu, tenho. Quando forem levar mais serviçais para dentro do palácio é a sua chance de conseguir entrar e a minha de distrair ela. Vai dar certo. Eu vou ficar bem.

Mentira.

— Eu posso ir sozinha.

— Sim, você pode – ele abaixou a sobrancelha – mas eu também posso ir e você não vai me impedir de a ajudar.

— Tristan, não, por favor – Lia se aproximou, mas ele continuou de braços cruzados.

— Estamos juntos nessa, Lia.

— Eu... – ela suspirou​ e diminuiu a altura ficando um pouco mais baixa que o tritão – não quero que nada de ruim aconteça com você.

— Eu não vou embora. Não aqui, não agora. Podia ter feito isso lá em cima quando você quis vir nessa missão suicida. Mas eu não vou te deixar sozinha nisso. Eu não quero, você entende o quanto isso é importante para mim?

Os olhos azuis a rebateram penetrantes.

— O quanto você é importante pra mim?

Segurando o olhar dele por alguns segundos Lia fechou os olhos, suspirando, e pegando as mãos dele para a sua ela as apertou.

— Você também é importante pra mim – murmurou baixinho.

Lentamente ele envolveu as mãos que o seguravam.

— Então vamos juntos atrás dos seus amigos. Eu vou ajudar vocês a fugirem fazendo uma distração. Vai ficar tudo bem.

Com um suspiro de derrota Lia caiu sobre Tristan, algo que ela notou fazer com frequência depois da primeira vez perro da fogueira, e ele riu a aconchegando em seu peito. O contato foi quente.

— Você é impossível.

— Não fale de você mesma em segunda pessoa – ele brincou e a jovem sorriu.

— Eu te odeio.

— Eu sei que não odeia.

Lia levantou a cabeça pronta para retrucar, mas a sua cauda e a da Tristan acabaram se enroscando e uma sensação diferente preencheu seu corpo. Excitação e prazer. Ela olhou alarmada para o garoto a sua frente e percebeu que o mesmo aconteceu com ele.

Com os olhos atentos aos​ dele lentamente a jovem se deslizou de novo, desta vez de forma mais demorada, e sentiu cada pedaço seu vibrar em excitação. Era diferente de abraçá-lo, de estar perto dele, do calor natural do tritão.

Era muito mais forte, intenso e gostoso.

Ela queria mais, mas Tristan se afastou, mergulhando da cama para o meio do cômodo. Lia o observou se afastar e o viu tomar fôlego.

— Não devíamos fazer isso.

Lia o fitou meio preocupada e meio curiosa. Tinha sido tão bom, o que havia de errado?

— O que é “isso”?

— Isso é... – Tristan olhou para um lado – Como dizer... – olhou para o outro – Não foi nada.

Lia sorriu cruzando os braços. Ele parecia muito embaraçado para não ter sido nada, ainda que conseguisse esconder muito bem.

— Tristan?

A contragosto ele olhou para Lia e ela ergueu a sobrancelha, com um sorriso divertido no rosto.

— Fizemos algo sexual, não foi?

O tritão abriu a boca três vezes e a fechou todas as três, ruborizado. Ensaiou dizer que não, não era, que foi apenas uma reação da cauda dela ao contato das escamas dele, mas a mentira estava estampada na sua cara e Lia erguia ainda mais a sobrancelha enquanto ele formulava uma resposta.

— É isso, não é?

Ela voltou a se aproximar, ameaçando fazer de novo, e ele nadou até a porta, praticamente se encurralando.

— É – disse apressado – é algo sexual.

Lia o olhou surpresa.

— Você não parece acostumado com isso – comentou novamente se aproximando.

— Não, não sou – Tristan a olhou se aproximar – acho que deveríamos ir.

Lia sorriu travessa e perto o suficiente ameaçou cruzar suas caudas de novo.

— Está com medo?

Pondo as precauções para o lado e cedendo a provocação Tristan rebateu lentamente o sorriso de Lia, puxando-a para si pela cintura, e próximos o suficiente sussurrou de encontro a orelha dela:

— Sim, estou com medo.

Lia sentiu o coração disparar e o corpo inteiro derreter quando ele mesmo deslizou sua cauda pela dela, fazendo-a praticamente revirar os olhos. A jovem estava brincando com ele depois de ver sua reação, mas não esperava que Tristan fosse reagir assim.

Não que ela fosse reclamar. Nem um pouco.

Lentamente ele se afastou segurando sua própria excitação. Sua respiração estava rápida e seus olhos azuis estavam intensos e escuros. Lia arfou em busca de ar quando voltou a encará-lo e a uma distância tão curta as bocas quase se tocaram.

— Satisfeita?

O sussurro dele foi quente sobre o rosto de Lia e ela respondeu baixinho que sim, ainda que todo seu corpo gritasse e rebatesse que não, que ela queria mais, que queria descobrir mais prazer com ele, queria beijá-lo e consumir todo o desejo que queimava dentro dela.

Mas a mão de Tristan se afastou rápida demais e com um sorriso de lado ele deu duas batidinhas na porta.

— Então é hora de ir.

Voltando a raciocinar o plano do tritão voltou a tomar forma em sua cabeça e o perigo dele para o garoto a deixou angustiada. Mas não adiantava mais discutir. Aqueles olhos a sua frente estavam prontos para enfrentar tempestades e tormentas e nem mesmo Lia conseguiria pará-lo.

— Me prometa que vai ficar bem.

As palavras de Lia tiraram Tristan do breve momento de divertimento e ele suavizou a expressão, deixando o sorriso de provocação se tornar mais afável. Delicadamente ele colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha da garota e beijou sua testa.

— Prometo.

Mas ele sabia que não adiantava prometer algo como aquilo. Ela também, mas ouvir aquelas palavras vindas dele a deram mais segurança. Pondo as mãos uma em cada bochecha dele Lia o puxou para que os rostos ficassem da mesma altura e esquadrilhou cada pedaço dele.

Desde os olhos à cicatriz rebelde em seu maxilar.

— Não ouse quebrar sua promessa – sussurrou, fazendo-o sorrir.

E foi quando ele sorriu que todas as desculpas pararam de fazer sentido. Então Lia delicadamente o beijou, um beijo rápido, que o deixou atordoado e a fez rir por sua expressão.

— Então estamos combinados.

Quando a jovem se afastou e fechou os olhos, novamente se metamorfoseando, Tristan sorriu e quis rir histericamente. Balançando a cabeça e focando no que estavam prestes a fazer ele observou Lia e seu coração apertou como nunca o fizera antes.

Ela precisava conseguir e ele faria de tudo para que Lia saísse dali salva. E viva.

Rodando em seu próprio eixo Lia admirou sua mais nova camuflagem, com cabelos negros e cauda verde, e sorriu para Tristan, que a retribuiu. Ele ficaria ao seu lado a vida inteira se pudesse.

— Estou pronta.

O tritão assentiu e dando uma última olhada na garota, evitando a nudez que vinha junto com a camuflagem, lembrou da ilha e do caminho até ali. Lembrou da caverna e dos sorrisos dela. Da risada e da forma como ela se encaixava em seu corpo em seus súbitos abraços. Lembrou também do cheiro dela e internalizou cada parte daquela Deusa a sua frente.

— Estamos prontos então.

As palavras desceram rasgando a garganta de Tristan, mas o sorriso de Lia, encorajador, o deixou um pouco menos pesado.

Então era isso. Tudo estava prestes a começar.

•••

Lia entrou sem dificuldade no palácio, conjurando para ela os adereços que os serviçais usavam, e por sua semelhança com todas as outras habitantes da cidade subaquática, não foi reconhecida. E sequer questionada sobre seu nome acabou sendo arrastada imediatamente para a cozinha do palácio pelas outras sereias.

O palácio era uma construção grande em mármore branco polido. Tinha plantas coloridas enroscada em seus pilares externos e na parte interior tudo era bastante parecido, exceto pelos portais dourados que levavam de um salão a outro, quase num labirinto, e detalhes em ouro maciço em todas as salas, desde esculturas à desenhos cravados na parede.

Lia se localizou bem ali dentro e evitou usar poderes o máximo que pôde, para não chamar a atenção de Nagisa, e ao chegar na cozinha, um conjunto de balcões e gêiseres subaquáticos, que estouravam em locais controlados elevando-se por aberturas no teto abobado, imediatamente percebeu que realmente não precisaria.

Conchas decoravam todas as superfícies, folheadas em ouro para não perder a opulência e a comida era preparada por vários tritões e sereias, todos com os mesmos adereços de Lia, um avental sobre a cabeça e pulseiras grossas e pesadas, indicando subserviência. De lá saia comida de poucos em poucos minutos e Lia ouviu que o salão principal estava recebendo cada vez mais súditos.

Ela observou admirada todo o lugar, mas retomou a postura e começou a fazer o que lhe pediam, desde organizar pratos e talheres a segurar velas e ajudar a decorar carrinhos de comida. Avaliando as saídas, e a mais próxima do caminho para a masmorra, Lia esperou o momento certo para ir resgatar seus amigos.

Havia discutido com Tristan o caminho inteiro até o palácio lugares que levariam a masmorra e ele lhe deu exemplos de esculturas e gravuras que ela já havia visto até ali. Enquanto limpava as louças com uma esponja do mar Lia voltou a repassar em sua cabeça a despedida que tivera com o tritão.

Estavam ambos já dentro do palácio, depois de passar sem dificuldade pelos guardas um em casa extremidade da rampa até a construção, escondidos entre pilares, numa alcova pouco visível. Frente a frente com o tritão Lia viu a expressão em seu rosto pesar e seu peitou apertou.

Era como um doloroso adeus.

Mas ela voltaria, Lia afirmou para si. Depois de salvar Pierre e levar Ana para casa ela voltaria. Nem que tivesse que enfrentar algas parasitas e um monstro marinho, ela voltaria. Mas por agora, era difícil olhar para Tristan e se despedir.

— Tenha cuidado e finja que é nova se te encontrarem indo para as masmorras. Não fale muito com ninguém, os serviçais aqui não falam, e também não reagem a nada. Lembre-se disso.

Ele pegou as mãos dela na sua e beijou cada um de seus dedos. Quando o fez no último suspirou e levou seus olhos para os de Lia, e soube que talvez nunca mais a visse. Que jamais a encontraria depois do que podia acontecer com Nagisa.

A intensidade nos olhos azuis cravados nos seus fez Lia quase errar o movimento de sua cauda, bamba.

— Eu não posso ir embora sem isso.

Lia ia olhar em confusão para Tristan depois de suas palavras suspiradas, mas quando ele a beijou, um beijo de verdade, ela só conseguiu se entregar completamente, puxando-o contra si e sentindo cada pedaço do seu corpo entrar em combustão.

Ela o retribuiu e Tristan intensificou o encontro de seus lábios, aproveitando cada segundo da sensação dela, de sua entrega, do momento que ele evitou por tanto tempo.

Ele devia tê-la beijado antes e se preocupado com as consequências depois, quis gritar contra sua própria consciência. Teria aproveitado ainda mais intensamente cada momento junto com ela. Teria a coberto com sua paixão.

Mas ele estava prestes a ir para a forca e não conseguia evitar sentir a injustiça que era se afastar de Lia ali, sem nenhuma perspectiva de vê-la mais uma vez.

Quando as bocas se afastaram e ele olhou para ela com os olhos verdes semiabertos e o rubor preenchendo seu rosto seu coração, já tão acostumado a se acelerar perto dela, aqueceu junto com todo seu corpo.

Beijando uma última vez a garota e a Deusa que transformou sua vida completamente e para sempre ele quis chorar. De raiva, frustração, medo. Mas a mão dela, deslizando de seus cabelos para seu rosto e o sorriso nos lábios dela assim que ele novamente se afastou, o deu energia para continuar.

Tristan continuaria com ela para sempre dentro de si.

— Você leva meu coração com você​, minha Deusa.

Apoiando sua testa contra a dele Lia fechou os olhos e deslizou as mãos pelo braço dele até sua mão.

— Isso não é um adeus Tristan, eu prometo.

Ele estava sorrindo quando Lia abriu os olhos.

— Não ouse quebrar sua promessa.

O correspondendo Lia novamente o beijou, louca e apaixonadamente, com todo o desejo que corroía seu corpo sempre que o via, sabendo que aquele mísero momento não poderia ser o suficiente para isso.

Quando se despediram e Tristan se afastou, lançando um último olhar para traz antes de seguir para a entrada exigir uma audiência, Lia sentiu o peito doer com ainda mais força.

E ele doía novamente ali, na enorme cozinha, contando os pratos que em breve iriam ajudar a saciar a fome do monstro que era responsável por tudo aquilo estar acontecendo em sua vida, na vida de Pierre, de Tristan. Sua mãe.

Depois de um suspiro Lia ouviu um burburinho vindo de uma das entradas da cozinha e percebeu que era o momento para fugir. Fingiu guardar a louça em um dos lugares mais próximos da entrada lateral e se esgueirou para fora, nadando com rapidez na direção das masmorras.

Mas antes que pudesse se aproximar, já tendo passado por três das quatro referências de localização dadas por Tristan ela foi interceptada um grupo de sereias que vinham apressadas da entrada. Lia foi obrigada a diminuir o nado e sorrir como se estivesse perdida, como Tristan a ensinou, e acabou sendo puxada pelas sereias agitadas para o salão principal.

Lia tentou dizer que precisava ir para a cozinha trabalhar, mas as sereias não a escutaram, puxando-a consigo sem parar um só minuto. Falavam sobre estarem perdendo algo inédito e interessante, e a garganta de Lia fechou.

Tristan.

 O salão estava cheio de tritões e sereias quando Lia e as outras chegaram. Ali dentro a jovem percebeu que a decoração era a mesma do templo que ela destruíra no seu primeiro encontro com a Deusa, com mármore polido e ouro em abundância.

Os cidadãos submarinos, ao contrário do que Lia achou, não pareciam ligar muito para o ouro e toda a riqueza do lugar, entretidos com outra coisa localizada aos pés da Deusa. E foi quando Lia notou que Nagisa estava sentada no lugar mais alto do salão, apoiada com toda sua classe num trono de ouro maciço, girando em sua mão um cálice transparente de vinho.

O sorriso em seu rosto era sádico e os lábios vermelhos só ampliavam o prazer que ela sentia. O som de chicotes que veio do centro da comoção alertou os sentidos da garota. O coração de Lia apertou e ela se desvencilhou das mulheres, nadando apressada até o mais próximo que conseguiu para enxergar.

No instante em que seus olhos encontraram o foco da atenção do público seu coração se despedaçou e seu corpo tremeu perdendo a força do nado. No chão de mármore branco, agora sujo de sangue, estava Tristan curvado para a Deusa, apoiado com dificuldade no chão, com suas mãos amordaçadas uma na outra.

Um tritão maior e mais forte, trajado em armadura e com uma expressão neutra estava logo atrás dele, lhe chicoteando com vinhas espinhentas nas costas pálidas, deixando grandes e profundos rasgos em sua carne. Vermelhos e transbordando sangue.

Lia segurou a vontade de ir até lá e também a de cobrir a boca, lembrando que os serviçais não expressavam emoções, mas as lágrimas chegaram em seus olhos antes mesmo que ela as pudesse controlar. Seu coração apertou com força e a risada de Nagisa fez a cena ainda pior.

Os cidadãos ao redor cochichavam entre si, alguns incrédulos e outros bastante empolgados com a visão. O estômago de Lia se retorceu em angústia e raiva.

No meio do salão Tristan grunhiu de dor com mais uma chicotada, fazendo a jovem olhá-lo automaticamente. Por que ele não a havia dito que isso podia acontecer?

Por que não a...

A lembrança das expressões deles quando lhe contou do plano foram bastante claras. Ele sabia que podia acabar ali, mas pretendia salvá-la antes de tudo. Antes de si.

A garganta de Lia fechou.

— Então, Tristan Knnegr, é verdade que se arrepende de trair seu povo e seu lar pela beleza de uma Deusa menor?

Lia olhou para Nagisa raivosa, mas abaixou o olhar assim que se lembrou da neutralidade dos serviçais.

— Sim – ele sussurrou, fraco.

Imediatamente ele recebeu mais uma chicotada.

Lia queria correr até Tristan e defendê-lo daquela mulher, queria pegar o sorriso do rosto dela e destruí-lo por completo. Lia queria acabar com ela. Os poderes da garota tremularam dentro dela.

Não era mais só raiva que Lia sentia dentro de si era um ódio imenso e profundo. Ela jamais perdoaria Nagisa pelo que ela fazia. Por Pierre. Por Tristan. Por seu povo a mercê daquele monstro marinho. Fechando as mãos em punhos Lia jurou destruí-la.

Mas os olhos de Tristan encontraram com os dela em meio a seu caos e eles lhe disseram para se afastar. Para ir embora. Para resgatar os seus amigos. Aquela era sua chance de salvá-los e Tristan estava ali exatamente para isso.

Lentamente ele abaixou os olhos tentando afastá-la de si com esse ato. Lia não devia estar ali. Ela devia estar salvando os seus e indo embora. Devia fugir.

Lágrimas novamente escaparam dos olhos de Lia.

— E então, Tristan Knnegr, se arrepende profundamente de seu ato de traição ou devo lembrá-lo do destino dos desertores?

Com um estalo dos dedos de Nagisa o tritão atrás de Tristan o chicoteou novamente e um de seus cotovelos foi ao chão. A Deusa riu e sua cauda negra se agitou em animação. Algumas sereias arquejaram com pena, outras permaneceram em silêncio observando o sangue do traidor se mesclar com a água no salão.

Nenhum deles se atrevendo a contrariar sua Deusa.

— E onde está minha filha, traidor? Onde ela abandonou você para que voltasse para pedir o perdão de sua Deusa?

— Na ilha, senhora.

Outro estalo, mais uma chibatada.

Mentiroso.

Lia nadou para trás sem forças para aguentar aquela cena. Tristan guinchou e cuspiu sangue, mas repetiu o que havia dito. Novamente foi chicoteado e o riso de Nagisa e de alguns cidadãos ecoou no salão.

Controlando o ódio, a dor e o choro Lia nadou para longe da cena. Para longe do salão. Para longe de Tristan. Os sons das chibatadas ainda ecoavam além das paredes de mármore do salão principal e ela nadou apressada para as masmorras repetindo para si que voltaria para ele.

Que não o abandonaria como ele não a abandonou.

O grito dele fez mais lágrimas caírem dos olhos dela, sumindo junto a água, e Lia apertou as mãos em punhos, tentada a voltar imediatamente e impedir aquela barbaridade. Para manter seu foco dobrou a velocidade, fazendo sua cauda doer com a força.

Assim que Lia chegou à masmorra, no mesmo lugar que Tristan havia dito se encontrar, ela localizou seus amigos na primeira cela, desolados no chão frio. Bolhas de oxigênio cobriam suas cabeças e eles respiravam com dificuldade.

Desgraçada.

Tomando um último fôlego, parada na entrada, a jovem nadou até eles segurando nas barras de ouro maciço de sua prisão, balançando-as para chamar atenção do grupo. O primeiro que olhou para ela foi Finn e ele arregalou os olhos ao vê-la, uma chama de reconhecimento correu no rosto dele.

Os outros dois levantaram e ficaram em posição de ataque, ainda que não possuíssem nenhuma arma, e Pierre virou de lado, descendo os olhos para a figura marinha na frente de sua cela.

Kevin, o único de frente para a grade, apenas elevou seus olhos avaliando a sereia. Mais um serviçal? Era hora da comida? Quanto tempo havia se passado ali embaixo?

O loiro suspirou, fechando novamente os olhos. Eles poderiam estar salvos a essa hora se não fosse por...

— Lia?

A voz de Pierre, arranhada, fez o filho novamente abrir os olhos. A sereia apoiada nas barras agora sorria para o capitão e aquele sorriso, o mesmo que ele vira tantas vezes no navio, fez seu coração agitar.

Era ela.

— Eu voltei, capitão. Achou que se veria livre de mim assim tão fácil? Vim resgatar vocês.

Pierre levantou apressado, quase caindo de volta no chão, e correu até a grade. Segurando as barras que o separavam de Lia ele riu e chorou, apoiando a testa no ferro.

— Você está viva.

Ainda que estivesse angustiada Lia sorriu e riu, chorando junto com ele, encostando sua testa com a do homem pelo pequeno espaço. Pierre estava coberto pelo cansaço, com os olhos fundos e a barba sempre bem-feita toda emaranhada. O que Nagisa havia feito com ele?

Com todos eles?

Kevin levantou cambaleante do fundo da cela e caminhou até eles vagarosamente. Aquilo só podia ser uma ilusão. Lia sereia? Lia viva?

Lentamente um sorriso surgiu em seu rosto.

Eles estavam salvos!

— Capitão, você está chorando – Lia sussurrou surpresa.

Era a primeira vez que ela via Pierre expressar tão abertamente suas emoções e o homem sorriu, orgulhoso, assentindo.

— Ela me devolveu meu coração para que sofresse por você. Mas você... Nós pensamos...

— Pensávamos que estava morta, Lia – a voz de Kevin soou arrastada ao lado do pai, mas ainda que ele tivesse falado com ela seus olhos corriam o corpo de sereia admirados.

Notando isso Lia dissipou a camuflagem e quando os cabelos negros deram lugar aos longos ruivos e sua cauda se agitou em um vermelho vivo, todos os homens dentro da cela a olharam ainda mais surpresos.

— Eu sobrevivi graças a...

A imagem de Tristan sendo açoitado passou por sua cabeça e voz de Lia falhou. Mas o capitão continuou por ela, observando-a com seriedade.

— Aquele garoto.

Lia olhou para o capitão, com a expressão séria, e assentiu devagar. Sim, Tristan havia salvado sua vida. Ele a vinha salvando desde que tinham se encontrado. Mesmo que não fisicamente.

Kevin permaneceu fixo na palavra garoto e olhou de um para o outro curioso. Ele não tinha visto nada depois de criar a distração antes de serem capturados e Lia ser dada como morta.

— Sim, Tristan salvou minha vida depois da caverna.

— E onde está ele agora?

O sorriso fraco de Lia e o olhar que ela o lançou, forte e determinado, o mesmo que o mostrou quando decidiu ajudá-lo fez o capitão entender o que ela estava pensando e sentindo.

E o que estava prestes a fazer.

— Agora ele está no salão principal sendo açoitado para que eu possa tirar vocês daqui em segurança.

A explicação dela deixou Kevin com os olhos arregalados, mas Pierre sorriu, aquele seu sorriso de sempre, agora cheio de emoção e envolvendo as barras ao redor do seu rosto ele balançou com a cabeça na direção da tranca.

— Então o que está esperando? Nos tire logo daqui e vá salvá-lo.

Lia sorriu agradecida ao capitão e assentiu. Rapidamente ela elevou a mão sobre a fechadura, abrindo-a. Nadou para dentro da cela com cuidado e encarou os cinco homens ali presentes. Kevin estava em farrapos assim como os outros três marujos de confiança de Pierre e todos pareciam​ exaustos.

Nenhum deles falou quando a viu entrar, mas o alívio e o agradecimento em seus olhos era sincero e Lia os cumprimentou com um aceno da cabeça.

— Hora de ir para casa.

Kevin sorriu, aliviado, e os outros homens a olharam em expectativa. Com um último olhar para o capitão, que assentiu, Lia fechou os olhos usando seus poderes. A água dentro da cela se agitou com ondas fracas de energia. Ela desejou que eles voltassem seguros para o navio de Pierre. Que voltassem para casa.

Uma luminescência esverdeada brilhou sob a pele deles e lentamente seus corpos se dissolveram em espuma, sendo transportados. Ao final Lia expirou com dificuldade pelo uso dos poderes, mas retomou o fôlego assim que seus companheiros desapareceram.

Saindo da cela ela se preparou para o confronto que temeu todo o caminho até ali, apenas com uma certeza. De que só uma delas sairia viva.


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Notas finais do capítulo

Alguém tem alguma coisa pra falar? AHJSHAJ.



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