Suturas e Navalhas escrita por counterpartb


Capítulo 3
Capítulo 3




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Foi impossível não pensar no que lhe esperava no hospital naquela noite. Quando chegou, foi direto até a sala das enfermeiras para se arrumar, mas não tinha pressa alguma de entrar na sua ala. Ainda via homens estranhos rondando pelos corredores, e sabia que as chances do Sr. Shelby ter ido embora era pouca. Em coma ou não, uma cirurgia na cabeça demandava tempo pra se recuperar. Talvez, sendo rico, pudesse se recuperar em casa. Será que ninguém da família pensou nisso? Que sorte seria.

Indo lentamente até seu posto, Lily fez o possível para se esquivar das outras enfermeiras, que costumavam andar em pares ou trios, e evitar interrogatórios. Se tem uma coisa de que funcionários de hospital gostam, é de fofocas — e aquela era uma das grandes. Todos já deveriam saber quem estava lá, o motivo e a ala, e por isso sabia que seria alvo de todas as perguntas do mundo por parte das suas colegas.

 Não sabia de nada, então não teria muito o que falar, mas a disposição para lidar com isso era zero. Só queria que as horas passassem o mais rápido possível, o que sabia que não ia acontecer, para poder ir pra casa. Cada momento ali a deixava mais ansiosa.

 Entrando na ala 6, silêncio como sempre. No último leito, ao lado da sua mesa, a cortina bege continuava esticada. Sem surpresas ali — e sem sorte para Lily também. Ela se sentou, respirou fundo e começou sua ronda. Anotava a pressão, os batimentos e a temperatura de todos os pacientes ao longo do turno. Higienizava, medicava, tudo de acordo com o prescrito… Inclusive o ilustre Sr. Shelby.

Com o coração disparado, Lily finalmente chegou na última maca. Entrou por trás da cortina e deu de cara com o mesmo homem magro e pálido da noite anterior. Tinha olhos fundos, maçãs do rosto bem agudas e a mesma expressão que o resto deles: como se não estivesse mais lá. 

Olhando assim, não parecia tão intimidador. Era tão frágil e indefeso quanto qualquer outro paciente dali. Controlando a respiração, a enfermeira tomou coragem e seguiu sua rotina. Um homem normal, pensava. Notou os dedos amarelados de cigarro, a tatuagem no peito e algumas cicatrizes aqui e ali. Prova viva de que era tão mortal quanto todos nós. Talvez o mito fosse muito maior que ele mesmo, quem sabe? 

Quando terminou, se sentou de novo e acendeu um cigarro. Estava tudo bem, tudo normal, e assim continuaria. Nada estava acontecendo. Se o mundo não sabia que ele estava ali, não tinha com o que se preocupar. 

Pela janela, viu alguns homens rondando do lado de fora. Não usavam boinas, mas os reconhecia da noite passada. Pareciam conversar entre si, fumando, sem agitações. Logo sumiram do campo de visão de Lily e não voltaram mais. Era um terreno grande, o do hospital. Tinham muito o que cobrir. Enquanto isso, o homem que vigiava o andar andava pelos corredores próximos e cantarolava uma música qualquer, que ecoava pelas salas. 

No silêncio, era impossível não prestar atenção na cantoria. Lily tinha a impressão de conhecer aquela música, mesmo mal cantada daquele jeito. Começou a murmurar a melodia, tentando lembrar de onde a conhecia, mas sem sucesso. Parou para ouvir o homem um pouco mais, e voltou a murmurar. Será algum hino da igreja? Talvez uma balada. Era antiga, enterrada em algum lugar da sua memória. Fechou os olhos e continuou o som, batendo a ponta do pé levemente no chão. Estava na ponta da língua, mas não conseguia dizer…

— Gostou da voz, enfermeira? — De repente o homem estava ali, na porta da ala, dando um sorriso malicioso de dentes tortos para Lily. Ela tomou um susto, é claro, o que só pareceu diverti-lo mais. — É uma libra por música.  

— Estava tentando descobrir qual era, na verdade. — Respondeu, ignorando a provocação. — A música. Tenho a impressão de que a conheço de algum lugar.

— É uma balada velha. Vida e Morte de…

Um lampejo clareou a memória.

 — Thomas Stukely. Eu lembro agora... Bem apropriado. 

 O homem sorriu, mas Lily não conseguiu retribuir o gesto, tensa demais pra ser simpática. Não gostava de se sentir observada, ainda mais numa ala deserta como aquela, por um cara como aquele. Apenas engoliu em seco e continuou quieta.

 — Escolhe uma então. Pra cantar. — O homem se apoiou no batente da porta, entretido. — Você tem cara de que canta que nem um passarinho.

 — Acho melhor não. — Disse, hesitante e com o rosto quente. — Não sou cantora, e pode incomodar os pacientes. 

 — Nem se a guerra recomeçasse aqui e agora, nessa sala, esses caras iriam se incomodar. — Seu tom mudou, menos amigável. — Canta, passarinho.

Lily encarou o brutamontes por um momento, pensando em como sair da situação. O homem parecia cansado, de rosto inchado e sujo. Era alto, mas não especialmente forte… Só tinha aquele mesmo ar ameaçador que os outros que passeavam pelos terrenos do St. Thomas tinham. Talvez fosse coisa da sua cabeça, mas estava intimidada e um pouco constrangida.

— É uma libra por música. — Disse, tentando parecer mais segura do que realmente estava, e talvez afastar o homem.

— Ficamos quites então. 

Suspirou, derrotada. Ainda que não fosse uma grande cantora, aprendeu tudo que podia no coral da igreja, e não fazia feio; só não o fazia há anos.

Escolheu cantar o canto das doces prímulas, e o fez o mais suavemente possível. Aquele ainda era um hospital, ela ainda era uma enfermeira, e levava muito a sério seu trabalho. Viu o homem se encostar na parede, a observando, e sentiu as bochechas queimarem. Odiava aquela sensação. Resolveu terminar a canção de olhos fechados, e foi uma boa ideia. Cantar pareceu acalmar seu coração agitado, mesmo que só por um segundo.

Quando abriu os olhos, ele estava parado na mesma posição. 

 — Boa música, passarinho. Vale mais que uma libra. 

 — Obrigada. — Lily alisou seu avental, nervosa.

O homem se esticou e pigarreou, desencostando da porta.

— Tenho minha ronda pra continuar agora. Boa noite pra senhora. Da próxima vou pensar em uma boa pra você cantar.

Lily desejou-lhe uma boa noite e o viu se afastar com alívio do peito. Era horrível pensar que estava rodeada de gangsters, bandidos ou o que quer que fossem. Por sorte, aquele era um bandido “legal”… Se é que isso existe. De qualquer forma, o que importava é que tinha ido embora, e que uma próxima não aconteceria. Só queria voltar a ler seu livro velho, totalmente entediada, como fazia dias atrás. Não era pedir muito.

Apesar disso, Lily continuou a cantarolar pelo resto do plantão. Cantar faz bem pra alma, seja você bom nisso ou não. A manhã chegou devagar, mas não tanto quanto ela esperava, e a enfermeira voltou pra casa pensando em prímulas e belas noivas.


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