Suturas e Navalhas escrita por counterpartb


Capítulo 4
Capítulo 4




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Doze dias passaram desde que Thomas Shelby chegou ao hospital. Ele não recebeu mais nenhuma visita, mas o terreno continuava vigiado por seus homens. Para a sorte de Lily, o cantor não voltou a aparecer, e aos poucos as coisas se normalizaram. Ainda se sentia ansiosa ao atravessar a cortina bege e encontrar aquele homem ali, branco e imóvel como uma estátua de mármore, mas estava se acostumando. Além disso, descobriu uma maneira perfeita de se acalmar e fazer as horas passarem mais rápido nas madrugadas e manhãs frias: cantar.

 Quando eram pequenas, Lily e Dawn iam à igreja com sua mãe toda semana, sem falta. Era um ambiente amigável e reconfortante, como deveria ser, exceto para Lily. Mesmo batizada como todas as outras crianças, sua “condição” assustava boa parte dos adultos, que acreditavam ser coisa do diabo. Proibiam seus filhos de brincarem com ela, faziam fofocas entre si, e todos evitavam a caçula das Price. Acabava sentada no banco do pátio, assistindo Dawn e os amigos jogando um jogo qualquer depois da missa, até que a irmã se compadecia e vinha brincar com ela.

 Alguns dias, para não atrapalhar Dawn na sua diversão, Lily ficava dentro da igreja, pulando entre os bancos e inventando algum jogo para si. Até que se divertia sozinha, mas era só para esperar a hora de ir embora. Foi quando a Irmã Sarah, uma freira tão boazinha quanto velha, a encontrou e a convidou para cantar no coral, para “gastar aquela energia em algo bom para o espírito”. É claro que, como qualquer outra garota de 6 anos, preferia muito mais jogar bola com os amigos, mas aceitou e não se arrependeu.

 Quando Lily fez 11 anos, Dawn já se tornara grande demais para brincar, e não havia nada que segurasse a rejeição da turma pela pequena. Depois de um dia especialmente ruim entre as crianças, fugiu da missa e nunca mais voltou lá - assim como sua mãe e sua irmã. No fim das contas, cantar acabou se tornando uma memória boa de um tempo ruim e, em momentos tensos como aquele, resgatou o hábito. 

 A visita do vigia-cantor acabou não sendo tão ruim assim, afinal.

 Naquele silêncio, tinha que cantar baixinho pra não chamar atenção, mas o fez quase todos os dias em que deu plantão. Alguns hinos, algumas músicas do rádio, até canções de ninar tiveram a vez. Foi um bom descanso para o velho livro, coitado, que já deveria ter sido aposentado há tempos — e para os nervos de Lily também. Não queria admitir nem para si mesma, mas só de pensar em chegar no hospital, já ficava ansiosa. 

 Naquela quarta-feira à tarde, a enfermeira chegou um pouco mais cedo que de costume para o plantão da noite. Era a ansiedade que a acelerava ao longo do dia, fazendo tudo rápido demais sem perceber, e não teve escolha além de ir esperar na sala das enfermeiras. Evitou por tempo demais o encontro com as outras. Não dava mais pra escapar. 

Tentou entrar de fininho, e até que conseguiu, já que as duas colegas que estavam ali também não olharam na direção da porta. Uma delas era Mary, loira e alta como só ela, e a outra era Edith, uma morena de quadris largos e olhos escuros. Cochichavam perto dos armários, claramente fofocando, e Lily se sentou na primeira cadeira que viu.

— Que pena. Nem consegui ir lá ver. Acabei trocando uns turnos com a Cora, e fiquei pra trás.

— Não perdeu nada. — Mary desdenhou, sem perceber que era observada. — Parecia um boneco, como todos os outros. Odeio aquele lugar. 

— Mesmo assim… Acho que fui a única que não espiei. Uma pena mesmo. 

Edith continuou a suspirar, reclamando, até que a amiga se cansou e, dando de ombros, se virou para o resto da sala. Vendo Lily ali, mas ainda acreditando que estavam falando baixo o suficiente para não serem ouvidas, se animou e deu aqueles seus passos longos até ela. 

— Lily! Sua diabinha… — Sentou-se ao lado da jovem, os olhos acesos como chamas. — As meninas estão atrás de você há dias pra saber o que aconteceu naquela noite. 

— Imagino… — Ela respondeu, distraída, mas tentando ser simpática. — Acabei desencontrando todo mundo, acho. Mas te garanto que não tenho nada demais pra contar.

Enquanto ouvia, Mary acenou para Edith, que veio até elas com timidez, mas tinha o mesmo olhar que a amiga. Sentou-se ali também, e Lily já começava a encarar o relógio na parede, rezando para que os minutos passassem rápido agora, pois sabia que viria um interrogatório pela frente.

— Oi, Lily. — Disse a morena, mais dócil que a outra. — Muita agitação lá no calabouço?

Era como as outras enfermeiras chamavam a ala 6, por motivos óbvios. 

— Não mais do que o normal. — Lily sorriu, tentando disfarçar o desconforto. — Só recebemos uma visita lá naquele dia, e depois, o mesmo de sempre. 

— Uma visita? Era... — Mary abaixou o tom, acreditando mais uma vez que estava falando baixo, mas sem realmente estar.  — Era um deles?

O arrependimento bateu imediatamente. Achou que se dissesse algo, qualquer coisa, seria o suficiente. Estava muito enganada.

— Deles? Tem um monte deles aqui no prédio. — Tentou despistar as perguntas, sem sucesso.

— Não, bobinha… Eles. Da família. 

— Meu Deus, Lily… — Edith se inclinou para frente, sussurrando. — Foi aquele que é doido? Você sabe, que matou o filho daquela senhora… 

 — Todos eles já mataram alguém, Edith. Eles são gangsters. — Mary a cortou, rolando os olhos com impaciência. — Qual deles, Lily? Você deve saber qual é qual.

 Quase todos na cidade sabiam qual era qual. Engolindo em seco e mantendo o olhar no relógio, respondeu:

 — Era a senhora Gray. Acho que é tia dele, a cigana… Sabem?

Ambas pareceram um pouco decepcionadas, como se esperassem que a visita fosse de um dos irmãos, algum bandido parceiro, ou coisa do tipo. Mal imaginavam que a mulher era tão intimidante quanto os outros.

— Sei. Ela leu cartas pra minha mãe algumas vezes. — Mary encostou na cadeira, finalmente mais calma, mas estridente como sempre. — Acho que ela estava sempre bêbada, mas vai saber. Foi só isso então? Mais ninguém?

Lily deu de ombros, negando com a cabeça. Foi o suficiente para as duas amigas se entreolharem e darem de ombros também.

— Pois é, uma pena. Finalmente achei que ia ter um pouco de agito por aqui. Durou pouco. 

Edith e Lily olharam para a loira com reprovação, a que respondeu com um aceno.

— O quê? Não estou falando de troca de tiros ou coisa assim. Só, não sei… Mais visitantes, talvez.

Parecia inacreditável, mas o que Mary realmente parecia querer era flertar. Um romance proibido, enfermeira e bandido — ou melhor, enfermeira e bandido milionário, já que estava atrás de algum dos Shelby. Só uma mulher doida ou sem medo da morte desejaria algo assim. Lily ficou sem reação por um momento, sem entender como a fonte de toda a sua angústia recente poderia ser uma semente de fantasia para as outras. 

— Bom, sua chance de virar uma Shelby infelizmente passou, Mary. — Edith, provocando a colega sem um pingo de timidez, sorriu. 

A loira mostrou a língua para a amiga, que só riu mais, e acendeu um cigarro.

— Tanto faz. Era um horror ter que ir naquele lugar mesmo, só pra ver o homem. — Se virou para Lily, séria. — Sem ofensas. Sei que você gosta de lá, Lily, mas o clima é muito estranho. Mesmo com as suas canções de ninar.

O coração de Lily pulou dentro do peito, e o rosto esquentou imediatamente. Devia estar com as bochechas cor de tijolo agora. Jamais pensou que alguém poderia ter a ouvido. Era o silêncio que fica à noite, dando eco... Ou só uma das colegas fofoqueiras que passou por ali e contou pra todo mundo. Sinceramente, não queria saber. Não fazia diferença. Só queria terminar aquela conversa o mais rápido possível e evitar as outras enfermeiras pro resto da vida.

Por sorte, faltavam cinco minutos para o começo do seu plantão. Se despediu das outras, colocou a touca e o avental, e seguiu seu caminho. Naquele momento, preferia enfrentar qualquer Shelby do que continuar aquele papo. No entanto, chegando na ala, se deu de cara com um fato que as duas já haviam deixado claro, mas não havia processado: A cortina bege não estava mais fechada, e o leito 32 estava vazio.

Lily teve um misto de sensações ao atravessar a sala até sua mesa, definitivamente diferente do que esperava sentir quando acabasse aquele circo. Estava aliviada, sim, mas também um pouco decepcionada. Não entendia o porquê, mas estava. Ao sentar na sua mesa e abrir a gaveta, dando de cara com o velho livro, sentiu um vazio no estômago. Era o tédio de novo, que queria tanto de volta - ou pelo menos achava que queria. Voltou como se nunca tivesse ido embora. 

De repente, Mary não estava tão longe da compreensão de Price. Um agito não era tão ruim assim, no fim das contas... Ou será que angústia vicia?

Aquele plantão foi o mais longo do ano, mesmo com música e vários cigarros. Uma despedida chata para o que era, para Lily, quase uma aventura profissional. Pelo menos agora teria uma história boa para contar sobre o hospital — não que fosse contar pra alguém. Afinal, quem acreditaria que cuidou pessoalmente de Thomas Shelby? Pois é. Agora, só lhe restava uma dúvida: de como estaria o homem que sobreviveu a uma bala na cabeça.


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