Suturas e Navalhas escrita por counterpartb


Capítulo 2
Capítulo 2




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Assim que o fim do turno chegou, já estava claro lá fora. Podia sentir a cabeça pesada, um cansaço que nada tinha de físico, e estava louca pra ir pra casa. Tirou sua touca e avental, dobrou com carinho e, colocando-os na bolsa, tomou seu rumo. Saiu pela porta de trás, fazendo o máximo para evitar qualquer médico ou enfermeira que pudesse lhe perguntar alguma coisa. Sabia muito pouco, e o que sabia, não era nenhum segredo. O prontuário estava lá, e sobre a identidade do homem... Bom, sua fama já ia além das fronteiras da cidade. Não havia nada que ela pudesse adicionar a isso.

 Quase 30 minutos de caminhada depois, Lily finalmente chegou em casa. Abriu a porta do prédio e subiu alguns lances de escada até seu apartamento, que estava com a porta destrancada. A jovem bufou, frustrada. Uma vez do lado de dentro, virou a chave quantas vezes eram possíveis. Talvez fosse inconsciente, mas estava especialmente atenta naquela manhã. 

 O lugar que Lily chamava de casa era um pequeno apartamento numa pensão, com dois quartos pequenos, um banheiro, e uma cozinha que se juntava à sala. Não era chique, mas estava sempre limpo e bem arrumado, o que para ela já estava mais do que bom. Jogou sua bolsa em cima da mesa, tirou os sapatos e entrou no quarto. Tudo que queria agora era tirar a meia-calça, fechar os olhos e...

— Lily? — Uma voz fraca soou do quarto ao lado. — É você?

A jovem deu um suspiro, cansada. 

— Sou eu! — Disse, se levantando da cama e indo em direção à voz. — Mas poderia ser qualquer outra pessoa, já que você nunca tranca a porta. 

 Entrando no quarto ao lado, de cortinas e janelas fechadas, estava Dawn, irmã mais velha de Lily. As duas moravam juntas desde que sua mãe morreu, naquele mesmo apartamento, alguns anos atrás. Ela era mais alta, mais doce e mais bonita que a irmã mais nova, mas tinha uma péssima saúde desde pequena. Seus cabelos eram bem loiros, enquanto os de Lily eram cor de mel, e seus olhos eram verdes. Ambos. Hoje, infelizmente aquele olhar era rodeado de olheiras fundas e escuras, e estava magra demais para parecer bem. Sentou-se na cama quando Lily resolveu entrar e se jogar ao seu lado. Sorriu e tossiu um pouco. 

— Deixo aberta caso você volte mais cedo e eu não te ouça bater. Os remédios me apagam. — Falava com ternura, ainda sorrindo. 

 — Isso nunca aconteceu, Dawn. Sabe que não tem muito como fugir do plantão. Mas prometo que, se acontecer, bato tanto na porta que mesmo se você não acordar, a senhora Finnigan vai. 

 As duas riram, e a mais velha continuou a tossir. Lily se sentou na cama, sentindo a cabeça e os ombros pesando uma tonelada, mas não podia deixar de contar o que tinha acontecido no dia anterior. Quase nunca tinha boas histórias pra entreter Dawn, que pouco fazia além de ouvir o rádio, e nenhuma como aquela.

 — Tenho uma boa pra te contar do plantão de ontem. — A outra se empertigou, erguendo as sobrancelhas. — Mas nem sei se você vai acreditar.

 — Se for mais uma história de almoxarifados, com certeza vou. — E riu, dessa vez sem tossir.

— Acho que está mais pra uma história de terror, na verdade. Pelo menos pra mim. — Lily suspirou, mas continuou. — No primeiro plantão, chegou um paciente que ficou umas sete horas na sala de cirurgia. Era gente correndo pra tudo que é lado, e a maioria de fora, uns de terno e uns de boina. Você sabe. No final da tarde, finalmente o homem saiu da sala, e levaram a maca dele lá pra ala.

Dawn assentiu, de olhos bem abertos, como se a ajudasse a ouvir melhor a história.

— Doutor Davies chegou lá cheio de mistério e fechou a cortina do leito rapidinho. Encaixou o prontuário na cama e falou pra eu me preparar pra “dias bem agitados” — A moça tentou imitar a voz grossa do médico, e arrancou risadas da irmã. — Nesse ponto eu já estava quase pulando da mesa pra ir ver quem era. Com esse segredo todo, podia ser até Churchill, se não fosse tão magro. Então quando ele saiu, corri no leito e fui ler a ficha.

 — Vou adivinhar: é alguma coisa indecente, né? — Dawn sorria, achando graça. — Não, espera. É alguém que a gente conhece?

 — É, mais ou menos, eu acho… Tá mais pra alguém conhecido do que alguém que conhecemos. 

 — Conhecido? Você diz alguém famoso?! 

 Lily deu de ombros, concordando de leve com a cabeça. Tecnicamente sim, ele era famoso…

 — Uau! Mas famoso famoso mesmo? Do tipo, Henry Edwards?

— O que diabos Henry Edwards faria em Birmingham? — Ela riu do devaneio da irmã. — Não, nada disso. Não é “famoso famoso”.

Dawn ficou visivelmente decepcionada, mas continuou:

— Quem então? 

— Acredite se quiser, mas… Thomas Shelby. Em carne, osso, e agora uma placa e alguns parafusos na cabeça.

 Infelizmente a irmã não achou graça no comentário como ela esperava que achasse.

 — Famoso?! — Se revoltou, brava como se tivesse dito que o próprio diabo estava lá. — Lily, ele é um bandido. Ele e toda aquela família dele. 

— Mas é conhecido. — Deu de ombros mais uma vez, ignorando a exaltação. — Virou até político, acho.

— Como se isso fosse boa coisa. — Dawn encostou na cama, sentada. — Uau. Thomas Shelby. E o que ele teve, afinal? 

— Levou um tiro na cabeça. Quem foi, não sei… Mas colocaram vários homens deles lá, vigiando o hospital.  

— Achei que ele não morasse mais aqui. Não sei quem me disse, a Sra. White, talvez?

Lily piscou, surpresa com o interesse de Dawn pelas fofocas da dona da padaria, mas deixou pra lá. Como ela ia saber? Afinal, morando ali ou não, era ele dormindo no leito 32.

— Lily… — A irmã se reclinou ainda mais pra frente, e falava mais baixo, como se alguém pudesse ouvi-las. — Não acha meio perigoso ficar perto dele? Quer dizer, é aquela coisa de gangue. É capaz que voltem atrás dele pra “terminar o serviço”.

— Terminar o serviço? — Lily riu da irmã, que não gostou muito da reação — Você tá ouvindo muita novela. 

 Na verdade, essa foi uma das primeiras coisas que a enfermeira pensou durante a longa madrugada em que ficou ao lado do inconsciente Sr. Shelby, mas jamais admitiria em voz alta. Preferia deixar como só um medo irracional, uma paranoia, pois se realmente considerasse a  possibilidade, não conseguiria mais ir trabalhar. E, pra alguém que paga as contas da casa sozinha, trabalhar é tão essencial quanto respirar. 

 — Não tô brincando, besta. — Dawn continuou, agora entre tosses. — Se colocaram homens lá… Existe uma chance.  

 Ela desatou a tossir, uma tosse seca e profunda. Lily correu até o banheiro e pegou um frasco pequeno e escuro do armário ali, para pingar algumas gotas no copo d’água da cabeceira de Dawn. Com esforço, a irmã conseguiu dar alguns goles sem engasgar, e retomou o fôlego. 

 — Tudo bem? — Lily perguntou, sentando-se ao seu lado na beira da cama. 

Dawn acenou com a cabeça, dando um suspiro. 

— Não precisa se preocupar. — Lily continuou. — Ninguém sabe que ele está lá, é segredo. Acho que foi por isso que colocaram ele ali comigo. Se alguém soubesse, com certeza seria uma confusão, com jornalistas e tudo mais. 

— Mesmo assim, Lily. — Dawn não estava nada convencida, e nem Lily, na verdade. — Você precisa tomar cuidado, porque nessa brincadeira de gangue, quem mais sofre são os que não tem nada a ver. – Falou, rouca, e deu mais um gole de água. – Não tô falando pra você parar de trabalhar. Só, por favor, tome cuidado. Só um vaso muito ruim de quebrar sobreviveria a um tiro na cabeça. 

Lily riu, sem poder discordar. Nenhum deles era coisa boa, muito menos sua estadia no hospital… Mas que escolha ela tinha? Se tivesse sorte, o homem já teria ido embora no seu próximo plantão, na madrugada seguinte. Seria só um susto, uma onda forte no mar de tranquilidade que era sua vida. Quem sabe?

Com a cabeça pesada e olhos doloridos, Lily se despediu de Dawn, que também estava prestes a adormecer após seu remédio, e foi para o quarto dormir. Nem mesmo a ameaça de todas as gangues de Birmingham juntas a impediriam de descansar naquele momento, e foi o que fez — mal tirou o vestido e a meia-calça, e já estava desmaiada em cima da cama. 

O sol já estava baixo quando a enfermeira acordou. Como de costume quando tinha dois plantões seguidos, acordou com o corpo pesado e dificuldade de abrir os olhos. Era como se uma carroça tivesse passado por cima dela — e depois dado ré, e seguido em frente novamente. Estava na mesma posição em que se jogou em cima da cama, sem nem deitar sob os lençóis, mas não se importou. Levantou-se da cama, procurou seu robe e o vestiu, ainda em transe, sem ver direito o que fazia. Foi só quando saiu para a cozinha, a fim de comer alguma coisa e tomar um chá, que percebeu que ele estava do avesso. 

Do quarto de Dawn, ouvia o rádio ligado, num volume baixo. Será que não tinha comido nada desde cedo? No relógio da parede, já eram quatro da tarde, e não tinha louça na pia. Lily abriu a porta sem anúncios.

— Não comeu nada ainda? — Disse, sem rodeios.

— Bom dia pra você também. — A irmã sorriu, doce. — Comi uma maçã. Não estou com fome.  

— Você nunca está com fome. Vou fazer chá e algo pra comer. Trago aqui quando terminar. 

— Mas não estou com fome. Só o chá está bom. 

 — Que pena. Vai ter que comer mesmo assim. — Lily deu de ombros, fazendo uma falsa cara de pena, e Dawn suspirou. Quase todos os dias eram assim, então ela sabia que não adiantaria discutir. Quando queria, a mais nova das irmãs Price era bastante resoluta. 

 Enquanto esperava a água da chaleira ferver, a enfermeira acendeu um cigarro e sentou na janela do seu quarto, olhando o mundo lá fora. A rua em que morava não era agitada, mas sempre tinha alguns carros e pessoas de passagem. No céu, via nuvens claras e linhas de fumaça das fábricas subindo, escuras e sujas, como o habitual. Na verdade, a tarde estava tão comum e rotineira, que todo o transtorno da noite passada parecia só um sonho. Via um casal sorrindo do outro lado da calçada, um cachorro cheirando uma lata de lixo perto da esquina, e um homem de boina andando rápido até o fim da rua.

 Talvez fosse a conversa que teve com Dawn, ou um pouco de paranóia, mas não lembrava a última vez que viu um deles naquela rua. Poderia ser pura desatenção, pois estavam por toda parte, mas Lily estava sensível o suficiente para se incomodar — até perdeu o gosto pelo cigarro que fumava. Podia só coisa da sua cabeça, mas estranhava do mesmo jeito. Quando voltou pra sala, a água nem tinha começado a borbulhar.

As Price não teriam mais muito tempo juntas no resto daquela tarde, pois Lily tinha o plantão da noite e precisava sair de casa antes de escurecer. Tomaram chá e comeram sanduíches juntas, ouvindo novas músicas no rádio e evitando falar sobre o hospital, o que foi bem agradável. Eram melhores amigas desde que se lembravam por gente, e qualquer um que as visse notaria isso. A presença de Dawn fazia bem a Lily, e era o que lhe dava forças para, assim como naquela tarde, levantar e enfrentar as longas horas de plantão no hospital. 

 Logo a enfermeira Price saiu de casa, pedindo mais uma vez para que a irmã trancasse a porta a seguir, e tomou seu rumo. Parecia só mais um fim de tarde normal, num dia comum, dentro da rotina de sempre… Mas ainda teria uma longa noite pela frente.


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