Suturas e Navalhas escrita por counterpartb


Capítulo 1
Capítulo 1




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Era noite, e chovia bastante. Apoiada no batente da porta dos fundos, Lily fumava um cigarro sem pressa de voltar. O silêncio era um bom sinal; sinal de que estava tudo da mesma forma em que deixou, e não precisaria correr. 

 O cheiro ali era o mesmo de grande parte da cidade – fumaça e lixo. Afinal, hospitais também precisam jogar seu lixo fora. E que lugar melhor do que a seção em que ninguém está acordado o suficiente para reclamar do fedor? Àquela altura do campeonato, ela já estava acostumada. Tornou-se só um desagrado sutil, dos que persistem no canto da mente, e não mais do que isso.

Sabia que as próximas horas passariam devagar até fazer sua ronda novamente. Tinha um livro na gaveta da sua mesa, no fundo da sala, já puído e cheio de orelhas. Anotações e grifos em caneta preta enchiam as páginas velhas num capítulo ou outro, observações levantadas depois de tanto tempo lendo as mesmas palavras. Algumas alas têm noites muito agitadas, ainda mais que os dias, mas a de Lily não era uma delas. A monotonia era o comum naquela parte do prédio. 

Ela atirou o cigarro longe, no escuro a sua frente, e a chuva logo o apagou. De volta ao trabalho. Sentou-se na cadeira, apoiou os cotovelos sobre a mesa e suspirou, puxando o livro para si. Abriu na página 205, suspirou mais uma vez e começou a ler. Precisava arranjar uma nova história logo. No entanto, ainda que tivesse um romance novinho em folha em mãos, provavelmente não conseguiria evitar sua mente de devanear – não depois de uma tarde tão agitada.

Do lado de fora da sala, alguém tossiu e quebrou o silêncio. Lily insistia em tentar ler sua história, mas falhava com facilidade. Estava muito dispersa.

Naquele dia, tão nublado e cinzento quanto os outros, o primeiro turno de Lily parecia o de sempre. Amarrava seu avental e sua touca para começar seu plantão quando ouviu, quase do outro lado do hospital, homens gritando e passos apressados pelos corredores. Uma maca rodeada de pessoas, algumas enfermeiras e outros médicos, entraram às pressas na sala de cirurgia. Nada fora do normal. De longe, conseguiu ver alguns homens de ternos bem ajeitados, uma mulher que gritava, e boinas. Qualquer morador de Birmingham sabia o que elas significavam, e Lily não era exceção. Na verdade, aquele foi o aviso de que quanto mais longe ficasse daquele alvoroço, melhor. 

No fim da tarde ainda havia médicos operando naquela sala. Via suas colegas correndo com panos ensanguentados até os tanques, e panos limpos correndo de volta para lá. A mulher que gritava sentou-se em uma cadeira ao lado da porta, fumando um cigarro. Os homens de boina eram poucos agora, e dos que vestiam ternos, apenas um ficou. Foi apenas durante seu segundo turno, no começo da noite, que a sala de cirurgia se abriu e a maca foi empurrada até a parte de trás do Hospital St. Thomas. Lily observava tudo de longe, sem deixar seu posto, mas ansiosa em saber o que acontecia. Para quem cuidava de um salão cheio de desacordados, qualquer agitação é grande coisa.

Cuidar de pacientes em coma não era tão ruim para Lily quanto suas colegas de trabalho pensavam. Não havia conversas, é verdade, e os cuidados não eram os mais agradáveis, mas as tarefas eram previsíveis, e as pessoas, dóceis. Os leitos recebiam poucas visitas, que diminuíam com o tempo, até que paravam completamente. Era ela quem cuidava daquelas pessoas, e mesmo sem trocar palavras com nenhuma delas, se afeiçoou de todas com o tempo. Não era a única enfermeira da ala, mas era a única que gostava dali, e não se importava de trocar turnos ou plantões com as colegas quando pediam.  

Quando começou a chuva, por volta das sete da noite, foi o fim da paz de Lily. Já cansada de se esgueirar na beira da porta da ala para tentar ver o que acontecia, se sentou e assistiu as gotas correrem pelo vidro da janela. Perdeu-se em pensamentos por um momento, mas apenas um, pois logo o som de passos e vozes se aproximou dali. A enfermeira se levantou e alisou o avental, ansiosa, quando confirmou que estavam indo até ali. 

Empurrando a maca estavam três outras enfermeiras: Cora, Margot e Julie. Estavam coradas, e em silêncio absoluto. Não trocavam olhares, só encaravam o paciente deitado no leito. Logo atrás vinha o doutor Davies, anotando coisas em um prontuário e murmurando algo que parecia grave para elas. A cama foi encostada no fim da fila, ao lado da mesa de Lily, e a cortina puxada a sua volta a seguir. Tudo que a jovem conseguiu ver foi um homem muito pálido, magro, com a cabeça inteira enfaixada, e inconsciente, claro. Só havia um motivo para ser instalado ali, aos cuidados dela: estava em coma, como todos seus novos colegas de ala.

Davies encaixou o prontuário do homem em sua maca e deu passos largos em direção a Lily, que observava curiosa o comportamento das amigas: continuavam mudas, e agora encarando o chão. O médico pediu para que saíssem dali, e o fizeram sem um pio.

— Senhorita Price. — Cumprimentou, polido e seco. — Não tenho tempo para explicar tudo, e sei que suas colegas farão um bom trabalho em descrever cada detalhe do que aconteceu, então serei breve. Cuide bem daquele homem, e não diga nada sobre o que sabe ou vai saber pra quem não for daqui. Os próximos dias serão agitados.

Lily se surpreendeu com o tom do médico. O que esse paciente tinha de tão especial? 

— E posso saber quem ele é, doutor? — Perguntou, curiosa mas contida.

O homem, alto e calvo, deu um sorriso esperto por baixo do bigode. Já estava em direção à porta quando respondeu:

— Leia no prontuário, ou não vai acreditar em mim. 

Ele desapareceu sob o batente, e Lily mal aguentou esperá-lo sair para correr até o leito 32, onde estava o recém-chegado. Ouvia vozes no fim do corredor, e sabia que era questão de tempo até mais alguém aparecer e atrapalhar sua curiosidade. Escondendo-se atrás da cortina bege e encardida em volta da maca, puxou o prontuário e começou a ler. 

Traumatismo cranioencefálico, ferimento de bala na região da têmpora direita. O projétil não foi encontrado, e a ausência de um ferimento de saída indica que provavelmente está alojado no paciente. A investigação não foi feita por causa do alto risco de parada. Hemorragia estancada. Realizada uma craniotomia com placa e parafusos para selar o crânio. Estabilizado e encaminhado para a ala 6 por motivos de discrição. 

Lily finalmente levantou os olhos para o paciente que, afinal, só estava ali por conveniência. Não estava em coma, apenas desacordado, e poderia voltar a qualquer momento. Aquele pensamento lhe arrepiou a espinha, pois agora sabia exatamente quem era o sujeito inconsciente à sua frente, e o porquê de ter sido escondido ali, na ala dos esquecidos, com ela. 

 O doutor tinha razão em tudo que falou, e suas amigas tinham motivo para se comportar daquela maneira. Sabe-se Deus o que devem ter visto e ouvido naquele dia.

 O som de passos se aproximando da ala interrompeu seus pensamentos, e a enfermeira disparou em direção à sua mesa para não ser pega bisbilhotando. Tentou parecer tranquila, mas sabia que estava pálida pois sentiu o sangue fugir das bochechas enquanto lia o prontuário. Se o diagnóstico já era ruim o bastante, saber quem dormia ali era ainda pior. Logo uma mulher apareceu na sala, e a atravessou em silêncio. Seu salto alto batia alto a no piso frio, e pela forma que andava, parecia ser dona do lugar. Ao chegar até Lily, a encarou por um momento e depois olhou para a cortina fechada à sua esquerda. 

— É ele?

— Sim.

 A mulher logo se enfiou para dentro da cortina, e ali ficou por mais tempo do que Lily pôde contar. Estarrecida atrás de sua mesa, a moça não precisou reparar muito na visitante e seu casaco de pele para presumir quem era ou quem procurava. Mais uma vez o doutor estava certo: se receberia visitas como essas até ele acordar e ir embora, seriam dias muito agitados.

Nas horas seguintes, só se ouvia as gotas de chuva batendo na janela e sussurros por trás da cortina daquele leito. Sinceramente, Lily só queria que a mulher fosse embora. Sua presença era intimidante. Era bonita, ainda que fosse mais velha, mas também parecia presunçosa e ríspida. Para a jovem, ela e sua família eram quase uma mitologia da cidade, personagens com histórias incríveis demais para serem reais — e ver que eram reais, afinal, bem ali na sua frente, era um pouco assustador. 

Durante a visita, viu um homem ou dois rondando do lado de fora do hospital, nos fundos, e uma boina perambulando na porta da ala. A sensação de vigilância não era boa. Será possível que alguém viesse atrás dele? Se metade das histórias contadas forem verdade, talvez.

Lily nem se deu mais ao trabalho de fingir estar distraída com outra coisa. Ficou ali, de boca seca, pensando no pior. Algum tempo depois, a mulher finalmente saiu de trás das cortinas e logo acendeu um cigarro. Deu alguns passos e apoiou a mão na mesa da enfermeira, a encarando.

— Aquele ali é o homem mais importante de Birmingham. — Lily assentiu com a cabeça. — Então é bom que fique quieta sobre o que sabe, e use esses olhos de bruxa pra ficar de olho nele.

As duas se encararam por um momento tenso. Lily sabia bem o que ela queria dizer com aquele comentário, mas não responderia nada. Era esperta demais para retrucar uma Shelby. A mulher continuou a olhá-la, até que sorriu, maliciosa, e começou seu caminho até a porta de saída.

 — Até depois, bruxa. — sibilou, e desapareceu pela porta.

Foi como se um peso enorme nos ombros de Lily sumisse. De repente se sentia cansada, mas por sorte teria um resto de plantão tranquilo naquela madrugada… Mas só naquela. Afinal, não é todo dia que um dos seus pacientes é Thomas Shelby.


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