Kalel - Dança de Sangue escrita por Natan Pastore


Capítulo 6
V


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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V

Bairro Menor, Lor-Al.

Sem um ruído, o alçapão foi aberto.

Dele saíram dois homens e o maior felino que os moradores do Bairro Menor já tinham visto. 

“Uma taberna?”, indagou Ikram. Ele bateu o pó do traje, o túnel pelo qual tinham passado era mais estreito do que ele esperava.

“Se tivéssemos ido pelo outro caminho que a bifurcação nos oferecia, teríamos parado na casa de algum contrabandista”, respondeu Kalel, cobrindo o rosto com o capuz e alisando o pelo de Noken para tirar a sujeira. “Ninguém que trabalha aqui se incomoda com a movimentação nesse quartinho, todos estão cientes de seu real propósito.”

Ikram analisou o ambiente. Estavam num pequeno quadrado de madeira sem nenhuma janela, totalmente vazio. Bem no centro, o alçapão e as escadas de mão que desciam para o túnel. À frente deles, uma porta fina e esburacada deixava os barulhos da taberna chegarem a seus ouvidos. 

Kalel abriu a porta e os três atravessaram a taberna rapidamente. Era bem menor que o estabelecimento de Tianna, com um chão que era uma bagunça de madeira, barro e terra batida, mesas de tábuas grossas e improvisadas dispostas aleatoriamente pelo local e um pequeno balcão com alguns canecos mal lavados e uma ou outra garrafa de hidromel.

Decadente, como ele disse, pensou Ikram ao lembrar da fala de Kalel sobre as condições do Bairro Menor. 

Com uma olhada rápida, eles notaram que o local estava vazio, exceto por uma garçonete sentada atrás do balcão - que não parecia se importar com a presença dos Vastag ali, e dois homens sentados em uma mesa, vestindo trapos. Um deles estava desacordado, babando com a cabeça repousada na mesa. O outro, na frente dele, terminava de bebericar seu álcool numa caneca lascada.

Nenhum deles se deu ao trabalho de olhar para os dois encapuzados e seu gato anormalmente grande passando pelo meio das mesas e saindo pela porta da frente. 

O Bairro Menor era claustrofóbico. Suas edificações mal acabadas de madeira e barro eram uma bagunça, quase como se fossem as paredes de um labirinto. Além disso, estavam presos entre a alta muralha esverdeada e a colina da Catedral. Se olhassem para o alto, podiam ver as luzes do Palácio dos Herviet e da Altíssima Catedral que, daquela posição, pareciam quase que a mesma construção, não fosse o tom mais esbranquiçado das paredes da sede de Iseus. 

Ao longe, na direção do norte, havia um grande paredão feito do mesmo material e com a mesma altura da muralha. Em cima dele, várias mansões, só podia ser o Passo Alto.

Encurralados entre as muralhas e a colina… Que buraco sufocante, pensou Ikram. Fora da muralha, o vento corria livre pelas Planícies. No Bairro Menor, nem a mais fina das brisas ousava entrar. 

 Pelas suas leituras, Ikram sabia que aquele bairro era o mais populoso de Lor-Al, mas mesmo assim não viu uma alma viva nas ruas. Era uma cidade fantasma, quase completamente escurecida se não fosse pelo brilho da Lua acima deles e um ou outro ocasional braseiro perdido em meio às casas. 

“Fiquem aqui”, falou Kalel. 

Sem esperar por respostas, ele caminhou até a parede de barro do que deveria ser uma casa, mas que parecia mais uma patente. Ikram observou-o graciosamente escalar a parede, subir no telhado, pular nas telhas da casa ao lado e escalar os destroços do que parecia ter sido um muro há muito tempo atrás. Kalel era silencioso e ágil, as telhas em que pisara não deram nenhum sinal de que iam ceder ao seu peso, apesar de parecerem desgastadas e podres, como tudo no Bairro Menor.

O Dançarino contemplou a realidade deprimente dessa parte de Lor-Al. Apesar da iluminação quase nula, um desenho das ruas e vielas sem saída começava a se traçar em sua mente. A memória de Kalel era invejável, podia lembrar-se de escritos completos e lugares mesmo se só os visse de relance. 

Encarando o paredão à frente, a mente do Vastag foi preenchida pela visão de um casarão abandonado cujas paredes e telhados destruídos agora serviam de morada para aranhas e ratazanas. Desviou o olhar para a junção entre o paredão e o sopé da colina da Catedral, lá estava a edificação, ligeiramente destacada do resto. 

Com um pulo bem executado, Kalel juntou-se a Ikram e Noken.

“O casarão que Tianna mencionou fica lá”, disse ele, apontando com o dedo para o local que tinha visto.

“Não é um lugar bom para uma fuga”, comentou Ikram. “Este será um contrato complicado de cumprir.”

Kalel não respondeu, também estava receoso em relação à Prisão. Lor-Al era um lugar que lhe deixava particularmente agoniado.

“Bem, de qualquer forma, faz tempo que não esfolo alguém”, ironizou Ikram. 

Os dois caminharam em direção ao casarão.

Em direção à Prisão.

O sol já havia nascido há horas, e mesmo assim o Bairro Menor continuava escuro. Um pouco menos do que a noite, mas a sombra das muralhas que o cercavam lançavam parecia impedir que qualquer raio de luz quebrasse o clima lúgubre e melancólico que o ar estagnado carregava. 

Empoleirados em cima de um telhado relativamente estável, os dois Vastag observavam a movimentação no casarão abandonado. Construído rente ao sopé da colina, as paredes pareciam ameaçar que estavam prestes a desmoronar. O teto esburacado carregava uma camada densa de poeira e uma ou duas folhas. Ikram supôs que elas tivessem caído do Passo Alto, já que não tinham dado de cara com nenhuma árvore no buraco em que estavam.  

Contrariando o resto do Bairro, o casarão era movimentado e protegido. Aqueles eram os primeiros guardas que eles tinham visto. Não usavam armaduras e nem mesmo estampavam o punho prateado, símbolo de Iseus. Não, aqueles eram mercenários, Kalel e Ikram sabiam reconhecê-los. 

Silenciosamente, Kalel saltou do teto em que estavam para outro mais baixo, a fim de ter uma melhor visão do local. Noken estava a seu lado, agachado com as garras compridas enfiadas nas telhas. 

Apesar de perceptivelmente maior que o resto das outras edificações, o casarão abandonado parecia estar ali só para esconder a entrada secundária no sopé da colina que levava à Prisão Inferior. Em algum momento de sua existência, deveria ter tido dois andares, mas agora só restavam o chão e alguns pedaços de madeira das paredes do andar de cima. Não desabará com o meu peso, espero, pensou Kalel. 

Era quase meio dia, e só três guardas guarneciam o local. Dois estavam encostados na parede junto à entrada, calados. Ambos trajavam coletes e calças de couro e carregavam um punhal e uma espada curta cada. O terceiro caminhava pelo perímetro do casarão, completamente vestido com uma armadura de couro, duas adagas na cintura e uma espada longa presa na bainha em suas costas. 

Esperava mais, pensou.

O Dançarino se moveu até o telhado em que Ikram estava, agachando-se a seu lado.

“Um na rua e dois na entrada”, comentou. “Isso deve ser rápido.” 

“Eu pego o de armadura…”, disse Ikram, afivelando o soco caleriano na mão esquerda.

“Espere… Olhe ali”, Kalel falou, apontando para o sul. 

Os Vastag observavam atentos conforme mais dois homens usando cotas de malha por cima de roupas de algodão caminhavam em direção ao casarão. Entre eles, um menino magro vestindo trapos rasgados lutava para se desvencilhar de seus captores.

A imagem acendeu algo no interior de Kalel.

“Ao meu sinal”, disse. “Eu fico com aqueles dois.”

Ikram concordou. 

Há alguns metros deles, Noken levantou-se, preparado para saltar do telhado em que estava. Os três esperaram o momento certo, quando os dois homens das cotas de malha entregaram o menino aos guardas e tomavam o caminho que tinham feito.

Kalel pegou o arco, que repousava ao lado deles, e tirou uma flecha da aljava na cintura. Com o arco tensionado, as penas na ponta da flecha faziam cócegas em sua bochecha.

“Agora.”

A flecha voou e, com a precisão de um cirurgião, acertou atrás do joelho de um dos homens de cota de malha. Ele caiu no chão e gritou um xingamento.

Antes que pudesse reagir, um enorme felino saltou sobre ele, mordendo sua garganta. A cota de malha parecia algodão contra as presas afiadas de Noken, que dilaceraram a jugular do homem. Sangue empapou o chão terroso.

O outro homem recuou, afastando-se da fera, apenas para ser surpreendido por Kalel. Um segundo depois e a lâmina do Dançarino brilhava vermelha após esfolar o pescoço do homem. Ao mesmo tempo, Ikram bloqueou a adaga de seu oponente com o antebraço direito, que era protegido pela placa de couro do traje que vestia. Sem hesitar, ele acertou uma joelhada alta no braço do inimigo e desferiu, de baixo para cima, um soco em seu queixo. 

Ele sentiu as pontas afiadas do soco caleriano cravando-se dentro da boca do homem, cortando-lhe a língua. Tão pouca utilidade para uma armadura dessas, pensou Ikram, enquanto esforçava-se para tirar o punho preso do rosto do homem.

Os dois guardas correram na direção de Ikram, que tinha acabo de conseguir desprender-se. Ele agachou-se para desviar do corte horizontal que a espada curta do primeiro atacante descreveu no ar. Levantando-se com um salto, o Vastag acertou uma cotovelada no peito do homem. Precisa e forte, aquilo deixaria-o sem fôlego por alguns segundos. 

Há alguns metros da cena, Kalel pegou outra flecha da aljava e apontou-a para o segundo guarda. Ao notar o Dançarino prestes a atirar, Ikram rolou para longe dos guardas. O homem não se moveu rápido o bastante para evitar a flecha, mas garantiu que ela apenas raspasse seu braço. 

Em seguida, o homem avançou contra Ikram, que bloqueou o ataque da espada curta com uma de suas cimitarras. O choque da lâmina curvada da cimitarra e do fio afiado da espada curta produziram um ruído agudo e desagradável, mais alto do que os Vastag gostariam que fosse. 

Utilizando-se de sua força, Ikram transformou o bloqueio em contra ataque. Ele forçou a cimitarra, pressionando o braço da espada do guarda, que não era tão forte quanto o do Vastag. Obrigando-o a recuar, Ikram agilmente girou para o lado e golpeou o joelho direito do guarda com o soco caleriano. O som de alguma coisa se quebrando foi abafado pelo grito agudo do guarda.

O homem caiu no chão, sua perna não aguentava o peso do próprio corpo. Finalizando-o, Ikram esfolou-lhe a garganta com a cimitarra. O Vastag só teve tempo de levantar-se antes de ver um enorme vulto cinzento saltar sobre o outro guarda, que recuperara-se do soco no peito. 

Quando Noken saiu de cima do homem, Ikram viu que as marcas das garras do feral tinham formado um corte em X no torso do guarda. É impossível não pensar que Noken está apenas se divertindo quando mata alguém, refletiu.

Kalel aproximou-se e, antes que pudesse falar com o companheiro, seus olhos fixaram-se no menino que os encarava, assustado e encolhido junto à parede destruída do casarão. Era o garoto que estavam levando para a Prisão.

“Está tudo bem”, o Dançarino falou. “Saia daqui.”

“Obri… Obrigado”, respondeu o menino, em meio a soluços. O garoto saiu correndo para longe da matança.

Que maravilha! Traumatizamos uma criança, Kalel pensou, desgostoso. 

Não havia mais ninguém no campo de visão dos Vastag, mas mesmo assim os dois se puseram a esconder os cinco corpos em um canto dentro do casarão, empilhando-os como sacos de trigo. Ambos torciam para que nenhum outro guarda na muralha ou nos arredores tivesse escutado os gritos dos milicianos.

O trio aproximou-se da entrada esculpida de pedra da Prisão, o pesado cadeado de ferro tinha sido deixado aberto pelos guardas. 

Antes de entrarem, Kalel encostou a mão no ombro de Ikram.

“Tenha cuidado.”

Ikram olhou para o companheiro, seus olhos cinzentos encontrando os olhos de mel do Dançarino. Gotas de sangue pingavam do soco caleriano, as pontas prateadas e a luva marrom estavam empapadas e vermelhas.

“Nós viveremos para ver o nascer do sol em Nakur novamente, Kalel.”

E eles entraram.

A entrada transformou-se numa sinuosa e larga escadaria, rumando cada vez mais em direção às profundezas. Periodicamente, um braseiro iluminava as paredes frias e úmidas de pedra com seus tons de laranja e vermelho. Noken ia à frente dos Vastag: o feral possuía uma capacidade única para detectar inimigos próximos a eles. Se Noken parasse de andar, Kalel e Ikram parariam na mesma hora.

O trio avançava silenciosamente, emitindo ruídos tão baixos que qualquer um que os escutasse não se importaria em checar o que era.

E, de repente, as escadas terminaram e se expandiram numa câmara rochosa e mau iluminada. Sete homens no local: cinco sentados numa longa mesa num canto e mais dois guardando um alto portão gradeado que levava à um corredor escuro. 

Os três pararam, escondidos atrás do portão entreaberto da câmara.

“Agora ou nunca”, Kalel sussurrou.

Ikram sorriu.

“Isso vai ser divertido.”

Kalel pousou a mão enluvada sob o feral, praticamente não sentindo a pelagem espessa da criatura. Noken jogou o peso do corpo nas pernas traseiras, pondo-se em postura de ataque.

E então, um a um, os sete homens caíram.

Nenhum deles teve tempo para reagir quando o feral investiu contra a mesa em que cinco estavam sentados. Noken fincou seus dentes afiados no braço do homem mais próximo às escadas e, com um puxão, derrubou-o no chão. 

Os outros homens na mesa levantaram-se num piscar de olhos e os dois que guardavam o corredor desembainharam suas espadas de aço.

Os olhos de Kalel percorreram a câmara, analisando tudo no ambiente. Nenhum dos homens vestia nada mais espesso que couro e suas armas, mesmo à pouca luz de lampiões e braseiros, aparentavam precisar de uma pedra de amolar.

Antes que pudessem processar a visão de Noken subindo em cima do homem e destruindo-lhe a garganta, dois vultos saíram das sombras da escadaria. As tranças de Kalel dançaram no ar, acompanhando o movimento do punhal do Dançarino. Com um giro, a lâmina abriu um profundo corte horizontal nas gargantas dos homens que guardavam o portão. Os dois caíram, engasgando-se no próprio sangue.

Restavam quatro.

Com um salto, Ikram subiu na mesa e chutou o rosto de um dos homens, que bateu as costas na parede, desnorteado. Noken investiu sobre ele, saindo de cima do primeiro morto.

Ikram girou para o lado a tempo de desviar do golpe de uma faca. Outro homem tentou atacá-lo pelas costas, mas o Vastag prontamente saiu de cima da mesa, pegou a cadeira mais próxima e arremessou-a contra seu atacante. Atento ao combate, Kalel não hesitou e, dando um mortal no ar, caiu em cima do pobre coitado que tinha acabado de ser atingido. O Dançarino cravou o punhal no peito do homem. 

Uma faca voou pelo ar na direção de Ikram, mas ele prontamente a bloqueou com o antebraço. Saindo de cima do homem que acabara de matar, Kalel rolou pelo chão até o lugar onde tinha deixado o arco repousando. Com um giro, levantou-se e colocou a flecha na corda. 

A flecha cravou-se no olho direito do homem que atacara Ikram.

“Intrusos! Intrusos na Prisão!”, ele gritou. “Alguém me aju…”

O homem foi abafado pelo brutal murro que Ikram desferiu contra o rosto do homem, amassando seus ossos com o soco caleriano e cravando a flecha ainda mais para dentro de sua cavidade ocular.

“Milicianos de merda! Não conseguem fazer nada sem gritar”, esbravejou. 

“Temos que ser rápidos agora, toda a prisão deve ter escutado os berros dele”, falou Kalel, chutando o portão do corredor, que se escancarou emitindo um ruído agudo de ferrugem.

O trio adentrou o corredor. O ar tornou-se ainda mais frio e estagnado conforme eles caminhavam em passos quietos pelo breu, grades estendiam-se em ambos os lados. 

“Merda, não consigo ver nada”, praguejou Kalel, no ouvido de Ikram. “Você trouxe mais paselina consigo?”

Ikram assentiu, puxando outro frasquinho do líquido bege de um dos vários bolsos que seu colete tinha. Noken correu de volta para a câmara e voltou em instantes com um pedaço de madeira na boca, era uma parte da cadeira que Ikram arremessara em um dos milicianos. 

Kalel tirou a madeira da boca do feral e deixou que Ikram despeja-se todo a paselina na ponta dele. Sem demora, a madeira incendiou-se. 

Segurando a fonte de luz improvisada na altura do ombro, Ikram estudou o local. Já estavam na Prisão, aquilo era certeza. Celas e mais celas surgiam dos lados deles, algumas vazias e outras com corpos apodrecendo, não parecia haver uma alma viva em nenhuma delas.

O cheiro de carne podre impregnou as narinas do trio à medida que eles caminhavam apressadamente pelo corredor. Kalel foi tomado pela mais profunda sensação de nojo. A verdadeira face da fé em Iseus, pensou. 

O corredor abriu-se em uma bifurcação. 

“Para qual lado?”, perguntou Ikram.

Algo dentro de Kalel conduziu-o.

“Esquerda.”

Ao darem o primeiro passo em direção à esquerda, os barulhos começaram. Vozes perdidas nas trevas implorando por socorro e o baque surdo de várias correntes inundou os ouvidos dos Vastag. 

“É a luz, eles não estão acostumados com ela”, deduziu Ikram. “Eles sabem que não somos milicianos.”

“Não podemos ficar correndo no escuro”, Kalel disse. “Manto Negro descreveu Melyria como uma mulher loira de olhos azuis, olhe cada cela!”

Por minutos que pareceram eras, Kalel e Ikram puseram-se à espiar pelas grades de cada compartimento, procurando por Melyria. Noken, cujos olhos eram capazes de discernir com clareza o mundo ao seu redor mesmo na escuridão, precipitou-se à frente, correndo pelo corredor.

O feral rugiu. Eles correram em sua direção. 

“Melyria?!”, chamou Ikram, vendo que Noken encarava uma cela grande no fim do corredor. 

De trás das grades, eles ouviram os passos leves se aproximando do corredor. Melyria apertou as barras da cela com força, apoiando todo o seu peso nela. Mal conseguia ficar em pé.

“Quem… Quem são vocês?”, perguntou, com a voz fraca. 

“Sem tempo para apresentações”, respondeu Ikram. “Afaste-se das grades, viemos te tirar daqui.”

Ikram depositou a tocha encostada na parede entre a cela de Melyria e a cela ao lado. Prontamente preparado para a situação, puxou duas gazuas do bolso e se pôs a arrombar o cadeado que prendia as grades. 

E então, ouviram passos. Vários pares deles. Os ouvidos sensíveis de Kalel perceberam que um par deles andava desritmado.

Melyria também percebeu.

“É ele!”, ela exclamou. “Ele vai matar vocês, saiam daqui!”

“O Carrasco?”, perguntou Kalel. 

A garota fez que sim com a cabeça.

“Droga!”, praguejou. “Ikram, rápido.” 

“Eu preciso de tempo, esse cadeado é mais complexo do que pensei que seria”, respondeu, sem desviar os olhos das gazuas que se moviam delicadamente buscando pela fechadura.

Três figuras apareceram ao longe no corredor. Duas eram muito grandes e a do meio caminhava curvada, parecia carregar alguma coisa em suas costas. 

A luz da tocha os revelou. As costas do homem estavam destruídas por ossos expostos e deformações. 

Era o Carrasco.

“Mais prisioneiros… Que alegria”, a voz dele saiu áspera e esganiçada, mas foi o suficiente para arrepiar os pelos dos Vastag.

Os dois brutamontes que o acompanhavam avançaram sobre eles.

Kalel olhou para trás, o corredor terminava em uma parede há alguns metros dali.

“Eu seguro eles!”, avisou, desembainhando as duas cimitarras da cintura e jogando o arco no chão. “Tire ela daí!”

Noken acompanhou-o, disparando para cima do homem à esquerda. Kalel correu na direção do homem à direita, seus olhos eram escuros e vazios e seu rosto exibia uma grande cicatriz em diagonal desde a bochecha até a testa.

Kalel deslizou pelo chão de pedra bruta para desviar do soco que o homem da cicatriz tentou desferir. Ainda agachado, girou para trás do oponente e desenhou um corte na panturrilha direita dele. Aquilo devia derrubá-lo.

Mas não derrubou. 

Kalel olhou incrédulo para a lâmina da cimitarra, limpa como se tivesse acabado de ser feita, nenhuma gota de sangue. Um corte tão profundo… E nem uma gota de sangue, pensou.

Levantou-se, mas não rápido o bastante para não sofrer o contra ataque do homem da cicatriz. Kalel foi pego pelo pescoço e forçado contra as grades de uma cela. Sentiu o ar fugir de seus pulmões quando foi socado no peito. O impacto foi tanto que fez o Dançarino derrubar as cimitarras no chão.

Noken, que tinha surpreendente conseguido derrubar o outro homem numa disputa de força, largou seu adversário e partiu para cima do atacante de Kalel. O feral saltou e cravou as presas no pescoço exposto dele, fincando as garras por todo o seu corpo. Não fez nenhuma diferença, o homem nem parecia sentir os dentes entrando em sua carne. Também não sangrava.

Merda! Merda! Faça alguma coisa, pensou Kalel. 

Ikram o fez. 

Utilizando todo o peso do corpo, Ikram acertou um soco na bochecha do homem da cicatriz, jogando-o para longe.

Kalel sentiu o ar voltar aos pulmões. Antes que pudesse voltar ao combate, dois braços vieram de trás da grade e o prenderam.

“Me ajuda! Me ajuda!”, gritou uma voz masculina em seu ouvido. 

Enquanto o Dançarino lutava para se libertar, o Carrasco aproximou-se dele, ignorando Ikram, que trocava socos com o homem da cicatriz, e Noken, que voltara a lutar contra o homem que tinha derrubado.

O Carrasco enforcou o pescoço de Kalel. De novo.

“Que encantador… Veio se entregar de bom grado… Corvo?”, a forma como ele proferira a última palavra delatou seu ódio pelos Vastag. 

Os olhos do Carrasco encontraram a cicatriz no pescoço de Kalel. Ele tirou uma faca da tanga que usava e a afundou suavemente atrás da orelha direita de seu mais novo prisioneiro, redesenhando seu antigo ferimento.

“Seu filho da puta…”, o grito de Kalel saiu abafado. A dor que vinha daquela cicatriz ia muito além das dores físicas.

Sentia que estava prestes a desmaiar. Não podia desmaiar, mas os sentidos estavam abandonando-lhe e a consciência esvaindo-se. E então, o Carrasco o largou. 

Com a pouca força que ainda tinha, Kalel libertou-se dos braços do prisioneiro e caiu no chão, ofegante. Olhou para o lado: Melyria pressionava a tocha de paselina contra o rosto do Carrasco. Há alguns metros deles, Noken tinha imobilizado um dos homens enquanto Ikram ainda estava lutando com o homem da cicatriz. Seu olho direito era uma mancha roxa de inchaço.

Recomponha-se, Kalel! pensou. Respirando fundo, pegou uma de suas cimitarras caídas no chão e arremessou-a contra o Carrasco. A lâmina cravou-se na coxa deformada dele. O Carrasco deu um tapa no rosto de Melyria, derrubando-a no chão.

Kalel correu em direção a ela e ajudou-a a levantar. 

“Obrigado”, falou, arfante. “Agora, afaste-se.” 

Melyria correu para longe da ação, o esforço que precisava para se manter em pé era evidente.

Carregando a outra cimitarra que tinha pego no chão, o Dançarino avançou na direção de Ikram, que acabara de cair após um violento murro no abdômen. Ele sentiu o ferimento que tinha sofrido em Al-Faraq reabrindo-se com o golpe. 

Kalel também deduziu isso ao ver a feição de dor no semblante do companheiro. Esfaquea-lo não fará diferença, pensou. Seu cérebro se pôs a analisar as possibilidades o mais rápido possível. 

Desviou o olhar para Noken, que fazia força para garantir que o outro homem não se movesse. 

Esfaquea-lo não fará diferença, mas mesmo alguém como ele precisa da resistência das pernas para ficar em pé.

O homem da cicatriz estava descalço. A oportunidade perfeita.

Transferindo toda a sua força para os joelhos, Kalel agachou-se por trás do homem da cicatriz. A cimitarra na mão, a adaga na outra. 

Num instante, as duas lâminas tinham cortado os tendões do tornozelo. Kalel rolou para o lado para impedir que o homem caísse em cima dele. Rapidamente, Melyria aproximou-se e ajudou-o a levantar. Os dois foram até Ikram, apoiando-se um no outro.

“Conseguem correr?”, perguntou Kalel.

Ikram cuspiu um pouco de sangue.

“Não é como se tivéssemos escolha.”

Noken mordeu o tornozelo do homem que estava imobilizando. O feral se juntou ao trio. 

Antes de começarem a correr, Kalel encarou o Carrasco, caído no corredor de pedra. Seus olhos eram fendas escuras queimando nas trevas da Prisão.

“Corram… Sim, corram… Eu conheço seus rostos… Vocês morrerão aqui… Você sabe disso… Minha melodia.”

Os quatro saíram correndo no escuro, enquanto dezenas de prisioneiros agarravam-se nas grades, batendo nelas e gritando pelo socorro que nunca receberiam.


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