Kalel - Dança de Sangue escrita por Natan Pastore


Capítulo 7
VI




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VI

Altíssima Catedral de Iseus, Lor-Al.

“Por escapar… O que devo entender, Elir?”

Jogado em uma das cadeiras da câmara atrás da ala central da Altíssima Catedral de Iseus, o rei Balor Herviet encarava o Alto Sacerdote Elir. Seus olhos azuis eram tempestades fixadas nos olhos negros de do primo. 

“Meus subordinados… Bem…”, Elir engoliu em seco. “Eles tiveram alguns problemas lidando com os invasores, Majestade.” 

“Eu lhe permito gastar fortunas do tesouro real para que você mantenha essa milícia e eles nem ao menos conseguem lidar com dois homens, um gato e uma prisioneira?!”, vociferou Balor. 

Reizinho de merda! pensou Elir. Se não fosse a mão invisível desta Catedral, todo o poderio de nossa família já teria acabado.

“Vossa Majestade, erros acontecem”, respondeu, a voz diminuta e inferiorizada. “Já despachei boa parte dos milicianos e alguns esquadrões do exército loriano para recapturar a bruxa. Tanto a cidade quanto as Planícies Aráveis já estão fervilhando com as forças do Punho Prateado.” 

Balor levantou-se. Suas vestes eram das cores de Lor-Al: verde e prata. Usava uma túnica esmeralda com arabescos prateados e o Punho de Iseus estampado no peito, o longo e grosso manto vermelho dos reis lorianos e a coroa de prata incrustada de esmeraldas e rubis brilhantes na cabeça. 

Como a maioria dos seus súditos, o rei tinha cabelos loiros, cortados curtos como os dos militares, olhos azuis escuros e a pele branca e leitosa. Seu rosto estava livre de qualquer fio de barba que fosse e suas feições, que discordavam dos traços rústicos da maioria dos lorianos, possuíam algo de aquilino que lhe dava um ar de astuto. 

Os dois homens eram altos e magros, mas Balor era mais encorpado e mais alto que o Alto Sacerdote. Sem desviar os olhos de Elir, o rei respirou fundo e falou: 

“De qualquer forma, agora é necessário que nos concentremos em resolver essa situação o quanto antes. Diga-me, primo, as notícias do fracasso da Prisão Inferior já correm pelas ruas de Lor-Al?” 

Uma chama começou a queimar no âmago de Elir. Desde o momento em que o pai de Balor morrera envenenado e seu único filho homem assumira o Trono-Prata, o Alto Sacerdote acumulava mais e mais desgosto pela presença do primo. Um homem tão limitado, mas que acredita ser o maior líder de nossos tempos, pensava Elir. Que patético.

“Qualquer boato que tenha se espalhado certamente já está sendo abafado, Vossa Majestade”, respondeu. “Assim que nossas tropas a trouxerem de volta para nossas mãos, sua morte em praça pública poderá seguir normalmente, Majestade.” 

O rei voltou os olhos ao chão por alguns segundos, ponderando. 

“A menina ao menos é uma bruxa, Elir?” 

“Ela confessou ser para o meu Carrasco”, o Alto Sacerdote respondeu.

“Seu Carrasco é bastante capaz de arrancar a verdade que queira ouvir de seus prisioneiros, não é mesmo?”, Balor retrucou.

Elir suspirou. Onde esse imbecil quer chegar com isso? pensava ele.

“Qual seria a diferença se ela não fosse, Majestade?”, disse.

A pergunta surpreendeu Balor, que arregalou os olhos e franziu o cenho. Ele fala com tamanha audácia para com seu rei, refletiu. Talvez seja hora de colocá-lo em seu devido lugar.

“A diferença, Alto Sacerdote, é que queimar bruxas é a forma mais eficiente de se purificar este reino e queimar inocentes é um pecado aos olhos de Iseus… E aos meus”, vociferou, a voz assumiu um tom altivo. Era a mesma entonação que Balor usava para dirigir-se aos seus servos.

“Não é desta forma que essa Catedral interpreta a situação, Majestade”, retorquiu Elir. “Se ela não fosse uma bruxa, coisa que ela é, estaria fazendo o mais belo dos sacrifícios em nome do bem destas terras.” 

“Essa discussão já tomou mais do meu tempo do que eu gostaria!”, exclamou Balor. “Acompanhe-me até os portões da Catedral. Quando o Santo Sacerdote seu irmão voltar, conversaremos sobre sua conduta.” 

Um xingamento subiu a garganta do Alto Sacerdote, mas ele o segurou. Não passa de um tolo! pensava. 

Balor virou-se para a direção da porta à esquerda. A câmara em forma de arco em que estavam ficava atrás do altar e possuía uma porta discreta de ambos os lados. O rei a abriu e atravessou a soleira, dando de cara com o altar. Elir vinha logo atrás dele.

A Catedral era uma grande edificação abobadada feita quase que inteiramente de mármore. Do altar até a entrada, várias colunas estendiam-se, formando um largo corredor coberto por um longo tapete verde e prateado. No altar, que se destacava do resto da catedral por estar em uma plataforma mais elevada que o resto, três cadeiras formavam um semicírculo atrás de uma estátua de dois metros de altura do Punho Prateado. 

Atrás dela, outra estátua com no mínimo o triplo da altura do Punho repousava: a imagem de um homem de meia idade e traços rústicos, Iseus, com uma das mãos cerradas em punho e a outra carregando o Fogo Sagrado que, na releitura da estátua, brilhava verde devido às esmeraldas que descansavam na palma da mão do deus.

Vitrais esverdeados mostrando várias outras imagens do deus dos lorianos acompanhavam as colunas pelas paredes, seu brilho esmeralda impregnava todo o ambiente da Catedral, dando-lhe um ar de calmaria ao lugar. 

Havia ainda um segundo andar, com vários camarotes onde os nobres sentavam-se para assistir às cerimônias, enquanto os pobres, sem poder sentar em nenhum banco ou cadeira, ficavam espremidos entre as colunas e as paredes.

Com exceção dos vitrais verdejantes, do tapete do corredor, do Fogo Sagrado e de alguns adornos aqui e ali, toda a Catedral era prata. Ou deveria ser. Já fazia anos desde a última vez que o templo tinha sido pintado e necessitava de uma nova mão de tinta, então muito do prateado tinha assumido uma tonalidade leitosa de branco.

Algumas horas haviam se passado desde o meio dia e a Catedral estava vazia. O silêncio na igreja trazia algo de calmante para Balor, que descia lentamente os degraus do altar, ciente dos olhos de Elir fuzilando-o pelas costas.

“Para o seu bem, Alto Sacerdote, é melhor que…”

O rei silenciou-se ao ver uma figura encapuzada encostada em uma das colunas. O manto e capuz escuros que o escondiam eram um forte contraste com os tons claros da Catedral.

“E você é?”, perguntou Elir, parado em um dos degraus do altar.

A figura desencostou-se da coluna e deu alguns passos pesados, que ecoaram pela imensidão prateada. Parou há alguns metros do rei. 

Balor levou a mão ao punhal preso em sua lombar, escondido pelo manto escarlate.

“Alguém que pode ajudá-los com o problema das bruxas, definitivamente”, a voz de barítono do homem era controlada e melódica, soava quase como música para os ouvidos deles. 

O rei deu um passo à frente, a mão direita ainda segurando o cabo do punhal.

“Não sabe que nenhuma face se esconde de Iseus?”, falou. “Retire o capuz, agora!”

O homem abaixou o capuz, revelando sua face. Tinha traços bem definidos e um maxilar marcado, os olhos eram vermelhos como o manto de Balor, as sobrancelhas finas e bem alinhadas e os cabelos negros caíam até a altura do ombro, com uma ou duas tranças perdidas em meio aos fios. Estava com uma barba rala, e seu rosto de pele amarelada era belíssimo. 

“Perdoe-me a intromissão, Vossa Majestade”, falou ele. “Estava de passagem pela cidade e encontrei-me ouvindo os boatos de que uma bruxa tinha escapado das masmorras abaixo dessa Catedral, estou certo?”

Balor virou o rosto para trás, fuzilando Elir com os olhos tempestuosos. Já começava a analisar as chances de conseguir abafar o burburinho pela cidade. Ele também não deixou de reparar em como o homem tentava esconder seu sotaque Nakuriano ao falar a Língua Comum. 

O rei suspirou. 

“Você está.” 

O homem esboçou um sorrisinho com o canto da boca.

“Imaginei que estivesse. Felizmente a sorte os favorece e me trouxe até este lugar com uma oportunidade… Única.”

“Diga-nos seu nome, andarilho!”, Elir interrompeu. 

“Chamam-me apenas de Caminhante, sacerdote”.

A forma como refere-se a mim! pensou Elir, indignado com a falta de cordialidade com que pronunciara a última palavra. Até o final deste dia, esse homem ainda será um prisioneiro na Prisão.

“Conte-nos, Caminhante”, prosseguiu Balor, ignorando a intromissão de Elir.. “Que oportunidade única nos oferece?”

“Minhas viagens pelos Dois Continentes levaram-me a conhecer diversos lugares fascinantes, Majestade”, o Caminhante disse. “Entre eles, uma certa ruína em Kaerys que guarda uma relíquia de grande interesse para este reino.”

“Kaerys, é?”, falou o rei. “Continue.”

O Caminhante deu um passo à frente. A essa altura da conversa, Balor já tinha retirado a mão do punhal escondido. Algo lhe dizia que aquele homem não desejava-lhe mal algum.

“Um manuscrito que sobreviveu às intempéries do tempo foi encontrado há alguns quilômetros ao norte do Porto de Zafar, assegurando a existência de um artefato tão antigo quanto o próprio mundo capaz de anular qualquer magia ou feitiçaria próximos a ele.”

É um mentiroso que está a nossa frente, refletiu o Alto Sacerdote. Como um mero andarilho saberia de tantas informações? Vejo duas possibilidades aqui. Ou este homem é um louco ou ele é mais do que quer nos revelar.

Balor fechou os olhos por alguns instantes e os fixou no rosto esculpido do Caminhante quando voltou a abri-los. O homem não deixou transparecer nenhuma resposta à encarada. 

“Se este artefato realmente existe, por que você o vê como necessário para resolver este empecilho da bruxa?”, perguntou o rei.

O Caminhante andou em círculos, colocando as mãos na cinturas enquanto olhava para o chão procurando a melhor maneira de responder ao questionamento de Vossa Majestade. 

“Acredito, Majestade, que o seu sacerdote deve ter capturado a menina e acusado-a de bruxaria sem nenhuma evidência realmente concreta, certo?”

Balor voltou-se para Elir, esperando uma resposta.

“Eu… Havia evidências circunstanciais, meu rei.”

O rei não se deu ao trabalho de responder.

“Como pensava”, continuou o Caminhante. “Acontece que essa garota realmente é uma bruxa. E uma bruxa bem perigosa.”
“Com base no que você afirma isso?!”, vociferou Elir.

“Ora, caminhando por todas as partes do mundo igual eu fiz, chega-se a um ponto em que você consegue saber que rumores não passam de rumores e que rumores são bem mais que isso. Você acredita em mim, Majestade?”

Balor hesitou em responder. Ele realmente sentia que o homem estava certo, havia algo naquele estranho desconhecido que remontava até mesmo a Iseus, seu adorado deus. 

“Estou disposto a ouvir toda a história.”

“Muito bem. Creio que não é do conhecimento de vocês que há um grande reduto de bruxas nas terras desoladas de Saylem, ou é?”, o Caminhante esperou a confirmação de Balor, que fez que não com a cabeça. “Era o que tinha presumido. Foram essas as bruxas que garantiram que Melyria escapasse da Prisão.”

Em nenhum momento o nome dela saiu de minha boca, refletiu Elir, inquieto. Curioso.

“O Lilithar, como as bruxas chamam seu templo profano, está protegido por diversas magias vis e feitiços torpes que o impedem de ser localizado. Com esse artefato em mãos, Majestade, você poderá marchar pelas terras cinzentas e esmagar as bruxinhas, uma por uma. Pense, meu rei, quão grandioso seria o seu legado. O legado de um rei que acabou com a incansável ameaça das concubinas do demônio.” 

Aquilo foi o suficiente. De repente, qualquer questionamento que voava pela mente de Balor desapareceu, envolto na névoa nauseante de imagens que preenchia seus pensamentos. Imagens dos lorianos adorando-lhe como se ele fosse Iseus reencarnado, o maior rei de toda a história de Lor. 

“Majestade”, Elir dirigiu-se ao rei. “Se este artefato realmente existir, também deve ser uma magia corrupta como a das bruxas…”

“Um tanto contraditório, Alto Sacerdote”, o Caminhante falou antes que Balor pudesse silenciar o sacerdote. “Também escutei boatos de que sua milícia utiliza-se de forças ancestrais… Forças que tornam o véu entre a vida e a morte mais tênue… Que ressuscitam mortos e criam corpos que não sangram…”

“Cale-se!”, gritou Elir. 

Balor estendeu o braço para o Alto Sacerdote. Um sinal para que ficasse quieto. Estava totalmente encantado pelo Caminhante. Nem mesmo as acusações que saíram da boca dele contra Elir foram capazes de tirá-lo de seu estado de transe.

“Você está sendo de grande importância para mim, Caminhante”, disse o rei, aproximando-se do homem. “Deixe-me mostrar minha gratidão! Acompanha-me até o Palácio dos Herviet.”

O Caminhante fez uma pequena reverência e acompanhou Balor até a saída. Antes de passarem pelos altos portões da catedral, os olhos de Elir identificaram o sorriso amarelado no rosto daquele homem. O sorriso de um manipulador.

Em algum lugar entre as dimensões.

Era um penhasco. 

As rochas negras do que Kalel acreditava ser basalto estavam cobertas por um volumoso manto de poeira, uma forte ventania carregando pequenos sedimentos rochosos açoitava-lhe o corpo, que estava desprotegido sem o traje dos Vastag e apenas com roupas leves de algodão.

Não havia sol, não havia lua, não havia estrelas. O céu era um breu infinito que se estendia por todas as direções, e ao mesmo tempo uma estranha luz esbranquiçada parecia borrar a realidade permitindo que ele enxergasse as formações rochosas ao seu redor. Aclives e declives, rochedos para todos os lados. 

Aos pés dele, uma queda cujo fundo seus olhos não conseguiam encontrar. O vento lutava contra Kalel, tentando derrubá-lo na imensidão escura. Mas ele resistia. Não sentia medo, o medo só o mataria em sua mente. Ele reconhecia que estava sonhando. Um sonho tão vívido que parecia capaz de sobrepujar sua própria existência, mas ainda assim só um sonho.

E, do outro lado do penhasco, parado como um poste enquanto o vento esvoaçava-lhe as vestes, Manto Negro.

“Kalel!”, exclamou ele. 

A voz do homem era natural aos ouvidos de Kalel, acostumados a ouvi-la durante toda a sua vida. Naquele momento, naquele lugar, ela soava distante e apagada, mas também parecia ecoar de todos os cantos do mundo. Era confuso. 

Kalel não sabia onde estava, não sabia se aquele lugar realmente existiria fora de sua mente ou da mente do Manto. A cada sonho em que o líder dos Vastag aparecia, era transportado para para um mundo diferente.

“Nós estamos com a garota!”, gritou, a voz se perdeu em meio às chicoteadas do vento. 

“Levem-na à terra desolada!”, o Manto Negro respondeu, sua voz soava como o crocitar dos corvos. “Vocês procuram o Lilithar, a morada das bruxas de Lilith! A menina saberá o caminho!”

E então, o mundo se desmantelou. A ventania cessou e os rochedos se desfizeram, evaporaram. Agora, só restava o escuro. Mas Kalel não o temia, existiam coisas piores que a luz poderia revelar.

Nas Planícies Aráveis.

Olhando ao longe, para a pastagem alta, Melyria conseguiu identificar a pelagem cinza-azulada do grande felino que rondava o perímetro ao redor deles. Noken era seu nome, ela lembrou de ter ouvido Kalel chamá-lo assim.

Estavam escondidos num pequeno barracão de uma fazenda abandonada há muitos anos, alguns quilômetros ao leste de Lor-Al. Já era a tarde do dia seguinte à fuga, e Melyria começava a sentir-se melhor. Ikram havia tratado suas feridas, garantindo que elas não infeccionassem, e preparou um caldo com ervas que encontrara no chão que tinha revigorado suas forças.

Ele estava sentado a seu lado, olhando para o norte, contra a brisa fresca que corria livre pelas Planícies. Um pouco mais afastado, encostado contra a parede de madeira da edificação em que se encontravam, Kalel revira-se em um sono agitado.

“É sempre assim com vocês?”, Melyria perguntou.

Ikram virou-se para encará-la. Seus olhos da cor da cinzas encontraram os olhos azuis claros dela.

“Assim como?”, respondeu. A voz estava serena.

“Esconder-se em lugares desocupados, revezar o descanso e libertar prisioneiros”, ela respondeu.

O Vastag não conseguiu conter o sorriso.

“É, costuma ser assim.”

“Há muitas vidas piores do que essa”, comentou Melyria. Ikram fez que sim com a cabeça. “Vocês devem conhecer muitos lugares pelo mundo, não?”

“Mais do que a maioria das pessoas, não posso negar”, respondeu ele.

Tenho que ser cuidadoso com as informações que deixo escapar, pensou Ikram. Não sabemos quem é o contratante e nem se ela não está fingindo não saber quem é.

“Eu nunca saí do reino de Lor”, Melyria disse, cabisbaixa. “Ouvi histórias de uma cidade em Nakur, Palastra. Uma cidade com torres tão altas que pode-se tocar as nuvens do topo delas. Eu gostaria de conhecer um lugar como esse.”

Recordações da capital da Caleria invadiram os pensamentos de Ikram. Lembranças amargas que ele escondera no âmago de seu ser. 

“É, as torres são lindas, mas não tão altas”, respondeu. “A cidade é esplendorosa, mas você não gostaria de ir lá nos dias de hoje.”

“Por que não?”, questionou ela, cheia de curiosidade.

“O soberano de lá, o Grão General, ele não permite que sejamos bem-vindos em qualquer cidade que faz parte do Império Caleriano”, respondeu Ikram. “Pessoas como eu e você estariam pondo um alvo nas costas no minuto em que pisassem em Palastra.”

“Pessoas como eu e você?”
“Você é uma bruxa. Eu sou um Vastag. Os calerianos nutrem um ódio antigo contra nós.”

“Eu não sou uma bruxa!”, exclamou Melyria. 

Ikram a encarou. Seu olhar era tão profundo quanto o do Carrasco na Prisão Inferior, mas não era carregado de obscuridade igual ao do homem fedido. Ela conseguia distinguir sofrimento neles, mas também compaixão.

“Eu conheci bruxos antes”, falou. “Todos eles negaram sua natureza sobrenatural até serem expostos a alguma espécie de magia. Se você for uma bruxa, vai acontecer em algum momento. Eles dizem que é como renascer, como acordar de uma vida de ignorância e despertar com os olhos de uma ave de rapina.”

Melyria não respondeu. Talvez já tenha acontecido, ela pensou. Desde que tinham escapado de Lor-Al, passado por aquele buraco abaixo da Muralha no Bairro Menor, uma memória… Não, era algo mais como uma sensação, uma sensação estava fixada em sua mente. Aqueles dois homens enormes que não sangravam continuavam a assombrá-la. Até mesmo tinha sonhado com eles.

E, toda vez que se lembrava dos Vastag lutando contra eles, vendo que não sangravam, uma memória ainda mais antiga emergia à superfície de seus pensamentos. Não sabia de onde viera, de quando viera, mas acreditava com todas as suas forças que aquela informação era verdadeira. 

No fundo, Melyria sabia que os homens que não sangravam não eram mais homens, não eram nem mesmo seres vivos. Não, aqueles eram corpos reanimados por algum tipo de magia pútrida, magia essa que tornava as leis da natureza mais flexíveis do que deveriam ser. E, de alguma maneira, ela sabia disso. 

Seus olhos se arregalaram. Foi naquele instante, repousando numa fazenda abandonada ao lado de dois mercenários e de um grande felino, que Melyria teve certeza.

Certeza de que era uma bruxa.

“Darius!”, gritou Kalel, dando um pulo e despertando de seu sono perturbado.

Ikram e Melyria, a bruxa, viraram-se rapidamente, olhando para o Vastag recém acordado.

Ofegante, como se tivesse acabado de fugir de uma tempestade, Kalel disse:
“Você… Você deve ser escoltada até o Templo Profano em Saylem.”

Uma ilustração de um glorioso templo que Ikram vira num livro de lendas há muito tempo ressurgiu de suas memórias. O Lilithar, o templo das Filhas de Lilith. Não imaginava que fosse real.

“Ainda tem certeza de que não é uma bruxa?”


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