Kalel - Dança de Sangue escrita por Natan Pastore


Capítulo 5
IV




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IV

Prisão Inferior. 

Fazia tempo que Melyria já perdera a noção do tempo. 

Ainda acorrentada, seus braços formigavam e ela sentia-se muito fraca. Achava que era dia, já que o total breu de sua cela fora suprimido por um leve brilho que vinha de algum lugar ao longe, possivelmente do mesmo lugar que ela ouvira o portão abrir-se há… Não sabia quanto tempo.

O filete de luz permitiu-a identificar alguns elementos da paisagem fúnebre e desolada em que ela se encontrava. Grades enferrujadas e muito escuras cortavam seu mundo. Após elas, um corredor estreito e mais grades, outra cela na frente da sua. Todas as paredes pareciam feitas de pedra bruta e estavam cobertas de algo que ela acreditava ser barro. À sua esquerda, uma plataforma de pedra lisa e à direita um buraco de terra. Minha cama e minha patente, deduziu. 

Ela virou o rosto para trás, o que causou uma forte dor no pescoço e na nuca. Visualizou uma bancada de madeira em forma de X com várias correntes e instrumentos pontiagudos espalhados. A visão lhe deixou nervosa, mas Melyria não expressou nenhuma reação. Estava cansada demais para gritar e a garganta seca ardia como o inferno. A única água que ela conseguiu beber tinha sido a de uma goteira que brotara bem acima de sua cabeça, mas que tinha secado há… Bem, ela também não sabia quando ela tinha secado, mas tinha a impressão de ter sido eras atrás. A água tinha gosto de terra e fez sua barriga doer, mas pelo menos tinha aliviado sua sede momentaneamente.

Com o passar do tempo, o ar parecia ter se tornado mais estagnado do que quando o homem havia lhe visitado. Naquela hora, tudo fedia a urina. Agora, o cheiro parecia mais com carne podre e sangue. Para Melyria, a visita do homem fora o último contato com outro ser humano que tivera há séculos. De todas as pessoas possíveis…, pensou. A noite em que fora roubada de sua pureza e da vida de sua família era apenas um tênue brilho distante numa imensidão escura fedendo a urina e carne podre. 

 Ela começava a crer que Elir e todos os outros que prenderam-na ali tinham se esquecido dela. Nem mesmo ouvira o caminhar ou lamentos de outras pessoas. O homem fedido, como assim havia gravado o visitante em sua mente, não tinha mais aparecido em sua cela, e mesmo sua primeira visita tinha sido mais rápida do que ela esperava. Acorrentada, fraca e quebrada, Melyria tinha certeza que o homem fedido teria feito o que quisesse com ela naquele lugar esquecido. Contrariando as suposições dela, ele apenas sussurrou “boas-vindas” em seu ouvido e saiu.

Então eles vão me deixar aqui apodrecendo ao invés de me queimar em praça pública, como planejavam?, ponderou. Não sei dizer o que é pior.

Quase como se tivesse lido seus pensamentos, o corredor ecoou um grito que ensurdeceu os ouvidos de Melyria. O som vinha do lado contrário ao do portão, acompanhado do barulho que ela pensava ter sido de um açougueiro cortando carne. Tudo ficou em silêncio.

O silêncio findou muito rápido. Um par de passos desritmados e mais outros caminhavam em procissão, vindos da direção dos sons que ouvira antes. Melyria recuou o máximo que pode na situação em que estava. Os dois homens mais altos que ela já tinha visto passaram pelo corredor, ignorando-a, carregando uma espécie de tábua. Quando esta passou pelo filete de luz, Melyria teve o vislumbre de um homem nu cujo corpo fora cortado ao meio na altura da cintura. O sangue gotejava de seus interiores, deixando um rastro vermelho no chão do corredor.

Um gosto ruim subiu-lhe à garganta, mas ela conseguiu conter o impulso de vomitar. Ver pessoas brutalmente assassinadas parecia estar se tornando uma atividade diária em sua vida.

“Vão em frente… Livrem-se do corpo. Eu… Eu tenho uma parada para fazer.”

Era a voz dele. Homem fedido.

Os passos desritmados pararam nas grades da cela de Melyria. Agora, ela conseguia ter uma visão melhor do homem: era alto, mas o andar corcunda o deixava menor. A pele era pálida e manchada com tons de roxo, como se fossem hematomas. Tinha alguns fios de cabelos aleatórios na cabeça e os olhos eram como duas fendas negras. O pescoço ostentava vários cortes, alguns mais profundos do que Melyria imaginava que alguém pudesse receber e continuar vivo. Ele estava completamente nu, com exceção de uma tanga de pele cobrindo-lhe a cintura. O mais perturbador, entretanto, eram as pontas de ossos que saiam proeminentes de suas costas, como se eles tivessem crescido desacompanhados do resto do corpo.

Homem fedido carregava um molho de chaves na mão. Apesar da pouca luz, ele não teve dificuldade em achar a chave da cela de Melyria e abri-lá. Ele entrou.

Por curtos instantes que, como todos os instantes em que esteve ali, pareciam eternidades, Melyria o encarou. Seus olhos azuis expressavam medo, as fendas escuras dele não pareciam expressar nada. Eram vazios. Com sua respiração arrastada, homem fedido colocou a mão no queixo de sua prisioneira, analisando-a.

“Você sentiu minha falta.”

Melyria não respondeu. A forma como ele cuspiu as palavras não aparentava dar muita margem para respostas. A voz era como um sussurro e transmitia uma sensação muito ruim, era como se alguém lentamente passasse uma lâmina em uma chapa de latão.

“Diga-me, como é o seu nome?”, perguntou. 

Ela considerou não responder, mas a mão segurando seu queixo a induzia.

“Me… Melyria.”

Homem fedido soltou um suspiro, quase como se fosse um sorriso.

“Um belo nome… Tem melodia… Sim, tem”, ele retirou a mão do queixo dela. “Eu não tenho um nome. Os de cima me chamam de Carrasco, apenas Carrasco… Tem menos melodia nisso.”

Melyria engoliu em seco. O Carrasco aproximou-se da parede e, com uma chave maior do que as outras, desprendeu os grilhões que penduravam Melyria. Ela ficou aliviada, o sangue voltou a fluir por seus braços, formigando, era uma sensação boa. 

Logo passou.

“Melyria… Você vê aquela bancada atrás de você?”, perguntou o Carrasco. Ela fez que sim com a cabeça. “Deite-se nela.”

A garota olhou para trás. Ela não sentia vontade de deitar-se naquela espécie de mesa, mas, ao ver o Carrasco sacar uma lâmina do meio de sua tanga, teve certeza de que não tinha escolha. Melyria deitou-se com os braços acima da cabeça e as pernas espaçadas, o corpo assumindo a forma de X da bancada. Seu captor aproximou-se, arrastando a perna esquerda, o que lhe conferia os passos desritmados.

“Acontece, minha melodia, que temos uma tarefa muito importante para fazer”, o tom de voz ficou mais alto, a sensação ruim também. “Você está aqui para confessar seus pecados… Sim, você está.”

“Eu… Eu não pequei.”

Ela sentiu a lâmina fria e suja contra o pescoço.

“Ah… Mas eu acho que você pecou. Muita gente acha”, ele riu. “É hora de se redimir.”

O Carrasco pegou uma das correntes que pendia da bancada e a utilizou para prender as pernas de Melyria à madeira. Depois, fez o mesmo com os braços. 

“Melodia… Diga-me: o que você é?”

“Eu… Apenas uma camponesa das proximidades de Athor.”

Resposta errada. Um corte rápido em sua panturrilha. Foi superficial, mas doía muito. A lâmina devia estar untada como algum tipo de ácido.

“Você mente para si mesma, minha melodia… Você é uma bruxa.”

Algo dentro dela ardeu. Tinha sido essa falsa acusação que fizera toda sua vida desmoronar. Antes, a acusação deixava-lhe com asco, repúdio. Agora, era o combustível da crescente raiva dentro dela. Entretanto, estava indefesa e impotente.

“Vamos de novo, bruxa”, ele suspirou. “O que você é?”

“Apenas uma camponesa das proximidades de Athor.”

Novamente, resposta errada. Um novo corte. Dessa vez uma longa linha que ia do antebraço até a altura do ombro. Este era mais fundo.

“Diga-me… O que você é?!”, o tom de voz do Carrasco ficou mais alto.

“Uma camponesa das proximida…”

Ela nem conseguiu terminar a frase. A lâmina voou por sobre suas coxas, traçando duas linhas vermelhas nas pernas dela. Melyria não conseguiu conter o grito.

“O que você é?!”, o Carrasco gritou. 

“Camponesa…”, ela falou baixinho.

O Carrasco enfiou a lâmina no corte que tinha feito na panturrilha dela. A dor suprimiu todas as outras sensações de Melyria, ela gritou e se debateu, presa à bancada. Ele suspirava, como se sentisse prazer no sofrimento dela. O que era bem verdade.

“Última chance, melodia… O que você é?”, ele sussurrou ao ouvido dela. O Carrasco riu ao ver lágrimas de dor escorrerem dos olhos da menina.

“Bruxa.”

Um sorriso rasgou o rosto pálido e deformado do homem. Ele hesitou, afastando-se de Melyria e jogando a lâmina no chão. 

“Sim… Só a dor revela a verdade.”

Desritmado, o Carrasco caminhou em direção a saída da cela. Antes de sair, parou.

“Você sabe o que fazem com bruxas, minha melodia?” 

Ele olhou para trás. As fendas escuras pareciam enxergar a alma de Melyria.

“Queimam.”

— 

Subindo a Via Loriana, Lor.

Kalel franziu o cenho de desgosto ao ver Ikram bocejar. Até mesmo Noken, que andava ao seu lado, emitiu um grunhido de desaprovação. 

“Você não dormiu muito”, observou o Dançarino.

Ikram ficou em silêncio. Não tinha dormido mesmo. 

Mais de um dia havia se passado desde a Taberna. Justamente como fora previsto, o trio aproximava-se das altas muralhas de Lor-Al ao pôr-do-sol. Kalel achava algo de poético ao ver o sol se pondo na direção de Saylem e a lua subindo da direção oposta. 

“Aquela é a única entrada?”, indagou Ikram, com os olhos focados no grande portão no fim da Via Loriana. Lor-Al era um dos poucos lugares nos dois continentes que Ikram não conhecia. Ele também não sentia vontade de conhecer.

Kalel, por outro lado, já tinha passado pela cidade mais vezes do que gostaria, numa época em que Manto Negro havia separado a dupla para ver como os dois trabalhariam sozinhos.

“Não, e nós não vamos entrar por ela”, respondeu. A imagem do mapa da cidade de Lor-Al inundou sua mente, refrescando sua memória. “Lor-Al é uma cidade murada em forma de círculo. A Altíssima Catedral e o Palácio Herviet ficam no topo de uma elevação no centro da cidade, são quase a mesma construção.”

“O lugar mais protegido do continente, suponho.”

Kalel assentiu.

“A cidade é divida em três bairros: o Passo Alto dos nobres, a Avenida dos Comerciantes e o Bairro Menor, onde ficam os pobres e a nossa entrada.”

Ikram não deixou de notar a mudança na entonação de voz do companheiro quando falou do último bairro. 

“Qual é o problema do Bairro Menor?” 

“Eu não gosto do lugar”, respondeu. “Os nobres e religiosos exploram os pobres do Bairro e tiram todo o ouro deles com a justificativa de que precisam da moeda para manter a Catedral.”

“Até aí não é muito diferente de outras cidades”, Ikram interrompeu. “Lugares diferentes, nobres de merda iguais.”

Um sorriso amarelo estampou o rosto de Kalel. Poucas coisas incomodavam-no tanto quanto a desiguildade entre os pobres e os nobres, especialmente quando questões religiosas estavam atreladas. Apesar disso, há muito tempo ele já tinha aceitado que não poderia fazer nada para mudar a situação, este era um mundo de poucos e ricos, e nunca deixaria de ser. 

“O problema aqui é que aqueles que não podem pagar os impostos são levados pelos Inquisidores para trabalhar na Catedral ou no Passo Alto. Se eles se recusarem… Bem, agora eu sei para onde eles vão.”

A Prisão, deduziu o careca. 

“E a nossa entrada?”, perguntou.

“Existe uma brecha escondida na muralha, do outro lado da cidade. Contrabandistas a usam para escoar mercadorias, mas qualquer um que não seja adepto da igreja de Iseus pode passar por ela.”

A dupla tinha comprado dois cavalos velhos de um vendedor na Taberna da Encruzilhada e agora os Vastag cavalgavam num trote rápido pela Via Loriana. Ambos os animais pareciam não ter gostado da companhia de Noken, por isso o feral espreitava pela relva baixa das Planícies Aráveis, afastado das pedras polidas da estrada. 

Para qualquer lado que se olhasse, havia campos de trigo e cereais. Era época de colheita e por isso vários fazendeiros trabalhavam no pôr-do-sol, aproveitando os últimos raios de luz do dia. Se algum deles tinha visto Noken - o que era difícil, já que os ferais são predadores furtivos -  não parecia ter se importado. Ocasionalmente, alguns casebres e moinhos decoravam a paisagem e carroças passavam pela Via.

Era uma região tranquila. As Planícies Aráveis estendiam-se do final de Saylem até o litoral leste de Maerys e tudo que se podia ver eram fazendas e alguma ou outra vila. O contraste com a populosa e apertada Lor-Al era imenso. 

“Os lorianos… Eles não têm nenhum porto?”, indagou Ikram, subitamente. O pensamento lhe veio à cabeça. 

“Há um porto escondido nas bordas de Saylem, onde começam as Ilhas Quebradas”, Kalel respondeu. “É uma instalação bem pequena, os lorianos preferem usar o porto em Al-Faraq do que passar perto do Farol.” 

“Não deixa de ser curioso o fato de você estar ciente da existência desse porto e, ao mesmo tempo, ele ser secreto.”

“Quando Manto nos separou, fui enviado para realizar um contrato com uma nobre loriana”, explicou. “Dias que não gosto de recordar.”

O assunto morreu ali. Alguns minutos depois, os Vastag já conseguiam observar as luzes dos braseiros de Lor-Al e discernir os guardas lorianos nas torres da muralha. Diferentemente das baixas muralhas de Al-Faraq, as de Lor-Al eram um imenso paredão circular feito de tijolos de pedra cinza-esverdeada. Ao longo de sua extensão estavam várias torres de guarda, janelas de disparo e paliçadas, que Kalel achou que dificilmente fossem necessárias, dada a altitude em que estavam.

 Dizem que estas muralhas já estavam de pé antes mesmo da queda do Império Vermelho, pensou. Só posso imaginar quem morava aqui antes dos lorianos

A visão despertou os sentimentos do Dançarino, que estava relaxando conforme passavam pelos pastos e plantações. Agora, novamente atento, Kalel viu que se aproximavam da entrada principal de Lor-Al e por isso fez um gesto com a cabeça para Ikram. Rapidamente, ambos os Vastag desviaram-se da Via Loriana e seguiram uma estrada de terra batida que se embrenhava no meio de uma plantação de trigo. 

Acelerando o passo dos cavalos, os dois chegaram à entrada secundária da cidade em pouco mais de uma hora, flanqueando sorrateiramente a muralha. Os Vastag desmontaram dos cavalos e deixaram-nos correr livres pelos pastos, algum fazendeiro adoraria encontrá-los por aí. Noken aproximou-se deles e Kalel acariciou-lhe a cabeça. O feral ronronou.

Os três estavam no meio de um amontoado suspeito de arbustos rentes às pedras da muralha. Já era noite e nenhum deles conseguia enxergar muita coisa. Ikram catou do chão o galho mais grosso que achou, retirou um frasco de um dos vários bolsos do colete e despejou seu líquido bege na ponta do galho. Instantaneamente, o pau começou a pegar fogo, mas as chamas só cobriam a parte molhada do galho.

“Os milagres da paselina”, comentou Ikram, entregando a tocha improvisada para Kalel.

O Dançarino agachou-se e tomou o cuidado de deixar a tocha afastada da vegetação, não queria criar mais luminosidade ainda, sabe-se lá quem poderia enxergá-los. Ele tateou o chão até achar o que procurava. Puxou um arbusto falso para longe, revelando um largo buraco precariamente vedado por algumas tábuas de madeira podres. Ikram ajudou-o a puxar as tábuas para longe e os três adentraram o breu.

Agora, o trabalho começava.

Em algum lugar de Saylem.

“Ela está sofrendo, irmã”, comentou Antilaj, 

Do topo de uma bela torre de mármore branco, duas mulheres olhavam atentamente para o céu estrelado. Sua mãe Lua estava bem acima delas, cercada pelas filhas estrelas. Cyrena encarou a irmã, o brilho do luar tornava seus olhos ainda mais amarelos, como o ouro. 

“Sim, ela está. Mas a dor faz parte do aprendizado dela.”, respondeu. “Só após presenciar os males dos homens com os próprios olhos que o toque da Deusa despertará de vez em Melyria.”

“Os corvos… Você consegue vê-los, Cyrena?”

A irmã fechou os olhos dourados por um instante. Abriu-os lentamente.

“Eles passam pelas muralhas da Cidade Falsa neste exato momento, Antilaj”, ela fez uma pausa. “Há algo de… Incomum com um deles.”

“Incomum?”

“É como se pesadas nuvens de tempestade o escondessem de minha visão. Esse corvo tem algo de único.”

“Um druida, talvez?”, indagou Antilaj.

“Não, a energia que emana dele parece ainda mais primitiva que as forças do Verde. E há algo mais: um feral o acompanha.” 

“Um feral? Pensei que eles só juravam sua lealdade para com mulheres.” 

Cyrena observou o céu limpo. Ao longe, seis estrelas desenhavam a constelação de Azel, o Cinturão Élfico. 

“Os mistérios deste mundo nunca deixam de nos surpreender, irmã.”


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