Para sempre e mais um dia escrita por Isolt Sayre


Capítulo 3
Tragical Romance and All?


Notas iniciais do capítulo

Hey, there!

Quero muito agradecer a todos que estão acompanhando e comentando, seja aqui ou seja no Spirit. Estão me deixando muito feliz mesmo. Um agradecimento especial a Tati Rosa, que foi uma fofa recomendando a história.

Espero que gostem!



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Querida Anne, 

 

Parece-me então que o tempo tem passado rápido para nós dois. Por aqui as folhas já começaram a cair e assim como você, também não tenho dispensado mais os casacos. Perguntou-me se sinto saudade do frio da Ilha do Príncipe Edward. Bom, de fato sinto falta de muitas coisas — de uma certa moça ruiva em especial —, mas a temperatura com certeza não é uma delas. 

Fico feliz em saber que tens se saído bem em seus exames, embora não seja nenhuma surpresa. Sempre fostes a mais inteligente ou por vezes, a segunda mais inteligente. Sim, Srta. Cuthbert, é uma pena não podermos competir mais. Apesar que prefiro infinitas vezes nós dois como um Time. Mas é só uma sugestão, não estou dizendo o que deve preferir. 

Quanto ao que escreveu, sobre fazer parte da minha jornada daqui em diante, Anne, você é parte dela desde o princípio. A diferença é que caminharemos juntos a partir de agora, como parceiros de vida. 

Infelizmente ainda não houve tantas oportunidades para explorar Toronto — admito que a faculdade tem me ocupado muito e meus tempos livres são reservados a biblioteca. Você iria amar a cidade e o povo. Existe um brilho diferente por aqui, existe progresso e pessoas dispostas a fazer mudanças. As pesquisas na universidade não param e é incrível  quantas mentes brilhantes trabalham em um lugar só. Há muito no que inspirar e mal posso esperar para que possa ver tudo isso. Se aprendi algo com você é que o mundo é muito mais lindo diante dos seus olhos. 

E confesso que tudo que mais desejava era ir a Avonlea para o aniversário da Srta. Stacy. Pode me perdoar por não poder estar presente, Anne? Eu prometo que irei em breve, mas neste momento receio não ter recursos suficientes. Estou a procura de estágio ou trabalho de meio período, e quando conseguir, visitá-la será muito mais fácil. A carta chegará depois do aniversário, mas por favor dê as minhas felicitações a Srta. Stacy e diga que estou com saudades. 

Por fim, não poderia deixar de agradecê-la pela fotografia que enviastes. Não é um segredo, e provavelmente sabes que teu sorriso tem me encantado desde nossos primeiros encontros. Eu era apenas um menino quando me apaixonei por ti e confesso não ter reconhecido esse sentimento na época. Éramos jovens, sedentos por aventura, liberdade e amizades, porém, cercados por preconceitos, orgulho e injustiças. Tantos empecilhos pelo caminho — até mesmo o oceano já esteve entre nós. E falando nisso, dentre os motivos pelos quais retornei a Avonlea, saiba você estava entre os mais importantes. E pensar que precisei viajar o mundo para reconhecer que tudo que precisava — e desejava — estava bem ao meu lado. Precisei aproximar-me de outra pessoa para entender o que sentia por ti. Não espero que compreenda-me — sei que feri teus sentimentos e tornei nossa história arrevessada —, mas não conhecia esse tipo de amor e cheguei a pensar que não sentias o mesmo por mim. Reconheço o quão tolo e imaturo fui. Não me prolongarei nesse assunto, sei que prometemos conversar sobre o passado quando estivermos juntos novamente. Mas saiba que apesar do que tenha nos acontecido, a chave do meu coração pertenceu a ti, desde o início. E ela sempre te pertencerá, independente da direção que a vida nos leve. 

 

Até breve. 

Com todo amor, 

 

Gilbert 

 

Gilbert releu a carta algumas vezes antes de dar-se como satisfeito. Não enviaria a Anne palavras mal escritas e sentimentos pobremente expressados. Ele queria ser digno de merecer o amor daquela moça, queria correspondê-la com cartas que demonstrassem o quão apaixonado e encantado estava por ela. Sabia que jamais seria tão habilidoso com as palavras quanto Anne, mas desejava que ela pudesse sentir a mesma felicidade que ele sentia quando lia suas cartas.  

Era engraçado como de repente Anne passara a ser tão importante em sua vida. Gilbert era pouco mais que um menino, mas meninos têm sonhos e em seu futuro havia essa moça de olhos acinzentados e semblante delicado como uma flor. Esperava não estar sendo precipitado demais, mas também não pensava em propor Anne antes de terminar seus estudos. Apenas parecia inevitável enxergar sua vida junto a ela. 

— Está pronto, Blythe? — a voz de  seu companheiro de quarto junto ao batente da porta fez Gilbert voltar a si. — Elizabeth já deve estar querendo nos matar. Sabe como as mulheres são quando estão com fome 

— Ahn... Sim. Eu já terminei. — respondeu, enquanto guardava rapidamente a carta na bolsa e endireitava o chapéu na cabeça. — Há quanto tempo está aí? 

Duncan sorriu, divertindo-se. Gilbert e ele deviam ter quase a mesma idade, dividiam o mesmo quarto e ambos haviam acabado de iniciar o curso de Medicina. Duncan tinha cabelos escuros e rebeldes, olhos verdes como Gilbert jamais havia visto e um constante semblante sarcástico, de forma que era difícil saber quando ele estava ou não falando sério. Em poucas palavras, o rapaz não passava a confiança que parecia ser necessária para um estudante de Medicina. No entanto, julgar o livro pela capa fez  Gilbert quebrar a cara em pouco tempo. Não demorou muito para o garoto entender que aquela expressão divertida era apenas faixada. Duncan era dono de uma genialidade ímpar, de forma que Gilbert sentia-se realmente sortudo por ter encontrado uma amizade como a dele. 

— Tempo suficiente para ver você babando sobre aquela fotografia. — brincou o garoto e Gilbert revirou os olhos. Obviamente Duncan referia-se a foto de Anne, agora colada na parede de frente sua escrivaninha. — Era para ela a carta? 

Gilbert assentiu com a cabeça. Mencionara Anne algumas vezes aos amigos, guardando para si os maiores detalhes. Seu relacionamento com ela não era um segredo, mas Gilbert sempre fora reservado, falava pouco sobre sua vida pessoal e sobre o que havia deixado em Avonlea. No entanto, já havia se tornado bastante óbvio para Duncan que a moça era mais que uma amiga. Gilbert escrevia-lhe cartas toda a semana e seu semblante se iluminava quando comentava sobre ela, eventualmente. Colar a fotografia na parede do dormitório só havia confirmado as suspeitas de colega de quarto.  

— Tem planos de vê-la em breve? — perguntou Duncan, enquanto os dois desciam as escadas do dormitório rumo a porta de entrada 

— Não. — respondeu Gilbert, o tom frustrado bastante nítido na voz. Não queria prolongar o assunto, mas o olhar insistente de Duncan o obrigou a continuar. — Receio não ter recursos suficientes para uma viagem de trem no momento. Talvez em algumas semanas, se o estágio der certo. 

Duncan confirmou com a cabeça. Por um breve momento, Gilbert pensou ter visto em seus olhos um rastro de compreensão, como se ele entendesse o sentimento. Gilbert ergueu as sobrancelhas, Duncan não era tão reservado quanto ele, mas não lembrava-se do garoto comentar sobre ter deixado alguém em sua cidade natal. 

— E você, meu caro Duncan Graham? — quis saber Gilbert, tentando imitar o mesmo tom de voz divertido do amigo. — Alguém o espera em casa? 

Duncan riu. 

— Não, meu caro Blythe. — respondeu o garoto depois de um tempo, no qual Gilbert suspeitava que ele estivesse se lembrando de alguém. — Deixei tudo para trás, literalmente. Estou mais interessado em conhecer as belas moças de Toronto. Talvez eu prefira as personalidades fortes e independentes da cidade grande.  

Gilbert acreditava em Duncan, mas algo lhe dizia que havia algo em seu passado que ele parecia querer esquecer. Não perguntaria, não era do tipo insistente ou curioso, só imaginou que o amigo também devia ser dono de uma história de amor que aparentemente não terminara muito bem. Mas Duncan claramente não tinha problemas em se relacionar com mulheres, era muito galanteador e Gilbert notava os olhares das garotas na direção dele enquanto andavam juntos pelo campus da universidade.  

— Não sentes interessado em conhecer as mulheres da cidade, Blythe? 

Gilbert não havia pensado naquilo. Na verdade, sentia que não havia espaço para aquele tipo de interesse. A única pessoa que enxergava daquela forma era Anne e estava apaixonado por ela, não tinha olhares para outra moça. A Medicina também havia se tornado a “menina de seus olhos”, realmente  não sobrava espaço para pensar ou desejar outras coisas.  

— Não — respondeu Gilbert com sinceridade. — Tudo que tenho de mais precioso eu deixei na Ilha do Príncipe Edward. Estou aqui pela Medicina. 

Duncan assentiu, parecia impressionado e ao mesmo tempo descrente.  

— Sorte sua Blythe. Mas temos alguns anos por aqui. Conversamos sobre isso daqui um tempo.  

Gilbert acabou por sorrir, balançando a cabeça negativamente. Duncan provavelmente não tinha nenhum tipo de salvação, restava-lhe a Gilbert apenas achar graça de suas atitudes e palavras, embora discordasse do amigo em vários níveis. Duvidava muito que conheceria outra jovem que se equiparasse a Anne, mas também sabia que não havia necessidade alguma em arguir com Duncan sobre isso. Gilbert era bastante seguro de suas ações e princípios, não era um jovem facilmente influenciável. 

Os dois caminharam juntos pelo campus, conversando assuntos aleatórios sobre as aulas, professores e exames. Entraram no prédio do Kings College Circle, um edifício de arquitetura neo gótica, com paredes inteiramente feitas de pedras acinzentadas, recobertas em algumas porções por uma hera teimosa que lhe dava um certo charme. O prédio era simétrico e detalhado, a torre central era alta e quadrada, as janelas alongadas com extremidades arredondas bem trabalhadas e peitoris largos. Estar ali dava a Gilbert a impressão de ter voltado alguns séculos no tempo.  

Os dois garotos seguiram o fluxo de alunos em direção ao refeitório. Ao entrarem no salão, começaram a procurar a figura de Elizabeth Bagshaw. Havia se tornado um costume dos três fazerem o desjejum juntos, antes do início das aulas da manhã. A moça devia estar impaciente naquela altura, ela era extremamente pontual e de acordo com seu relógio de pulso, Gilbert e Duncan estavam cinco minutos atrasados para o encontro. 

Duncan foi mais rápido para localizá-la e apontou para uma mesa ao lado da janela, onde uma moça de cabelos escuros segurava um livro aberto, mas sua atenção estava completamente voltada para o lado de fora do prédio. Os dois se aproximaram da mesa sem a garota perceber. Ela permanecia com o olhar distante e rosto descansava sobre as mãos.  

— Leitura interessante? — perguntou Duncan, surpreendendo Elizabeth propositalmente. A moça saltou discretamente no lugar, fechando o semblante para o garoto. 

— Mais interessante que os dois rapazes mais pontuais do campus — rebateu ela, a ironia quase sendo mais intensa que a de Duncan. 

Gilbert riu. Divertia-se com o fato do amigo tentar provocar Elizabeth constantemente e a mesma devolver-lhe com respostas curtas e frias. Conhecia poucas mulheres com aquele temperamento, uma delas estava a milhas de distância dali. Elizabeth Bagshaw — Lizzie, como gostava de ser chamada — também era uma moça com idade próxima de Gilbert, talvez alguns meses mais jovem. Os cabelos eram negros feito breu e contrastavam de uma forma harmoniosa com sua pele pálida. Os olhos tinham um tom acastanhado, que sob o sol pareciam mudar de cor. Elizabeth era dona de um olhar frio e intenso, rosto com ângulos bem demarcados e lábios que dificilmente revelavam sorrisos. Definitivamente  era o semblante de uma mulher que há  muito tempo já havia deixado de ser menina.  

—  A culpa foi desse rapaz aí. — defendeu-se Duncan, não deixando-se intimidar por Elizabeth. Os dois estavam naquela espécie de joguinho desde o dia que se conheceram. — Nosso menino apaixonado estava terminando sua carta de amor.  

— Será que nosso menino sabe que tem uma reunião com a mulher que poderá vir a ser sua futura tutora? — Elizabeth repreendeu Gilbert com o olhar e o garoto ergueu as mãos, se rendendo.  

— Estás certíssima, Srta. Bagshaw. E estou ciente da reunião, obrigada.  

Gilbert estava longe de ser um especialista do gênero feminino, mas se havia aprendido algo com as mulheres, era não contradizê-las sem necessidade.  

— Quem é sua futura tutora afinal, Gil? — perguntou Duncan. 

— Dra. Emily Oak — respondeu Gilbert e antes que pudesse terminar a frase, Elizabeth o interrompeu. 

— Ela é uma das médicas patologistas mais renomadas da América. Trabalha com diversas linhas de pesquisa muito promissoras, além de ser legista chefe do Hospital de Toronto. Ela orienta alguns alunos de mestrado e doutorado, mas nunca ouvi dizer que orientou um estudante de graduação. Talvez não se interesse muito por estudantes inexperientes. Portanto, mantenha os pés no chão, Gilbert.  

Os garotos se entreolharam. Gilbert ergueu as sobrancelhas, não podia negar que Elizabeth também dominava a arte da inconveniência.  

— Sabes como ser animadora, não é mesmo Lizzie? — falou Duncan, sorrindo irônico para a garota. 

— Estou falando o que eu sei. A verdade. — falou ela secamente. 

— Mas não precisamos conhecer todas as informações sempre, entende? 

— Gilbert precisa sim saber dos fatos. E também precisa passar uma boa impressão. Estou sendo útil, como sempre. — e vendo que Duncan  argumentaria novamente, a garota cortou. — Não venha discordar disso, Duncan. 

Realmente não havia o que discordar naquele ponto. Lizzie estava certa, Gilbert precisava passar uma excelente impressão a Dra. Oak, afinal, ela teve um papel importante para que o garoto conseguisse ingressar na U of T. A Srta. Stacy o havia recomendado muito bem a ela, então era importante que Gilbert agisse de forma profissional, fazendo juz a todas qualidades mencionadas por sua antiga professora. Não poderia comparecer em seu aniversário, mas agora tinha a chance de deixá-la orgulhosa.  

— Bom — começou ele, evitando ouvir mais uma discussão entre os dois amigos ou outra informação reconfortante de Elizabeth. —, acho que é melhor eu me apressar.  

— Mas acabamos de chegar. Não vai comer nada? — perguntou Duncan. 

— Digamos que fiquei sem fome ao ouvir nossa querida Srta. Bagshaw.  

Elizabeth o olhou, satisfeita. 

— Vai me agradecer depois, Blythe.  

Duncan revirou os olhos com o comentário e moveu os lábios sem que saísse voz, apenas imitando Elizabeth, mas a garota não percebeu. Gilbert reprimiu o riso e acenou para os dois, dando-lhes as costas logo em seguida. 

Provavelmente estava a caminho de um dos encontros mais importantes de sua vida. 

 

 

Anne fechou sua pulseira ao redor do pulso, lembrando-se com carinho do momento em que Matthew a presenteara. Era difícil acreditar em como sua vida havia mudado desde aquele dia de primavera. Teria duvidado se há alguns meses alguém contasse tudo que viveria agora. As peças de seu quebra cabeça estavam encaixadas, seus sonhos já eram realidade e mais uma vez sentia que estava exatamente onde deveria estar. Olhando para trás, realmente entendia “que só alcançavam as maiores alturas aqueles que mergulhavam nas profundezas. Não há alegria sem tristeza”*.  

Quem diria que Anne Shirley-Cuthbert — que por tanto tempo fora desprezada, silenciada e considerada fora dos padrões de beleza e personalidade — , teria Gilbert Blythe como real pretendente. Apenas ela poderia dizer o quão difícil foi aceitar que suas diferenças a faziam ser quem era, e que seu valor jamais deveria ser medido pela cor de seu cabelo ou sardas no rosto. Na verdade, com toda sua maturidade, Anne aprendeu que só ela poderia determinar seu valor. 

Apesar disso, as vezes ainda era difícil acreditar que era digna de desfrutar daquela realidade. Quando a jornada é pontuada por desventuras e injustiças em excesso, cicatrizes profundas são formadas, e por vezes essas feridas se abrem. O futuro mostrava-se brilhante, mas nada seria capaz de apagar o passado. Ela precisaria ter cuidado com as línguas ferinas e mentes maldosas que encontraria pelo caminho.  

“Você não pode falar com Gilbert Bythe. Você nem mesmo pode olhar para ele”.  

Anne fechou os olhos por alguns segundos, a voz de Josy Pie ainda ressoava nitidamente em sua cabeça. Aquela era uma memória dolorosa para Anne de tantas maneiras, que ela tinha vontade de fingir que não existia. Estava tão desesperada para ser aceita entre as garotas, que preferiu perder uma das única amizades reais que poderia ter feito na época. Precisou de tempo para perceber que Gilbert jamais a desprezaria como tantos fizeram, e talvez de algum tempo a mais para enxergar que não o odiava. As coisas poderiam ter sido tão diferentes, e parte da culpa era dela. Anne se arrependia e aquele sentimento a perturbava assim como uma pedrinha no sapato machuca os pés. .  

Tudo que mais desejava era poder revelar aqueles pensamentos a Gilbert. Ele precisava saber que ela se arrependia, que gostaria de ter feito tudo diferente. Mas não iria escrever. Haviam prometido conversar sobre o passado só quando se encontrassem novamente. E não seria naquele final de semana, para sua tristeza. Ela bem sabia que Gilbert também tinha uma bolsa estudantil e poucos recursos para viajar sempre que desejasse. Os dois tinham planos para se ver em breve, como sempre escreviam ao final das cartas. Mas Anne já começava achar que esse breve  seria apenas no Natal. 

— Sem lamentações, mocinha — murmurou para si mesma e decidida, desceu as escadas rumo a sala de estar. 

 

Morar em uma pensão com mais cinco garotas significava manhãs agitadas e barulhentas, cheias de conversas, risadas e uma governanta que parecia querer arrancar os cabelos da própria cabeça.  

De um canto da sala, Diana Barry ria enquanto tocava uma música animada no piano. Jane Andrews estava de pé ao lado dela, cantando em meio a risadas, mas num tom supreendentemente afinado. Ruby Gillis conversava alto com Tillie Boulter gesticulava com a mão esquerda e segurava uma xícara de chá com a direita, quem olhasse a cena com certeza acharia que a garota derrubaria líquido quente sobre o vestido. Josie Pye variava entre tentar conversar ou pedir para Jane parar de cantar, pois seus tímpanos estavam “explodindo”. 

Anne riu com a cena e estava prestes a se juntar a Jane, quando a governanta entrou na sala. As meninas pararam imediatamente com a música e a conversa alta sem que a mulher precisasse dizer algo. Ela tinha um olhar constante de censura que de acordo com Tillie, era assustador a ponto de fazer os mortos tremerem no túmulo.  

— Comportem-se — rosnou ela. — Quantas vezes preciso lembrá-las de que não são crianças mais? Jane, você não canta. E Diana, é isso que andam te ensinando no Quenn’s? — as duas garotas se entreolharam e Anne pôde ver Jane colocar a mão na boca, reprimindo o riso. — Ruby, você vai quebrar essa xícara — e como se estivesse procurando mais alguma coisa para criticar, ela encontrou o olhar de Anne ao pé da escada. — Anne Shirley, quem arrumou seu cabelo? Terminem o café da manhã. Em silêncio.  

E saiu da sala, o vestido farfalhando enquanto andava. Jane esperou alguns segundos até começar a imitá-la, as meninas caíram na gargalhada.  Anne levou as mãos nos cabelos, tentando achar algum defeito em seu coque. 

— Tem algo de errado com meus cabelos? 

Bom, não estavam ruins, mas Anne ainda não tinha se tornado habilidosa o suficiente para acertar os penteados todos os dias. E sinceramente, aquilo já estava ficando cansativo. Sentia falta de suas tranças. 

— Não tem nada errado. — falou Diana, gentilmente. —  Só deixe-me acertar uma coisa.  

As meninas sentaram-se a mesa e voltaram a conversar assuntos triviais. Diana soltou os cabelos de Anne e passou os dedos entre as mechas, tornando a prende-los novamente. 

— Está pronta para ver a tia Jo? — perguntou Diana apenas para Anne poder ouvir. As duas iriam visitar Cole e tia Josephine aquela manhã, uma vez que ambas só tinham aulas na parte da tardes às quintas feiras. 

— Ansiosa. — respondeu ela com um sorriso. 

— ... quem vocês acham que irá na festa da Srta. Stacy no sábado? — perguntou Tillie, e Anne e Diana passaram a prestar atenção na conversa das quatro meninas. 

— Certamente o Moody estará — falou Josie de maneira sugestiva para Ruby, que corou imediatamente.  

— Prissy estará lá também — contou Jane. 

Josie revirou os olhos. 

— Estamos falando de pretendentes, Jane. — falou ela, como se fosse totalmente óbvio.  

— Não seja tola, Josie. Sabe que os únicos convidados são a classe mais sábia de Avonlea — falou Jane usando um tom engraçado para se referir aos senhores e senhoras da cidade —, nossas adoradas famílias e os meninos bobos que já conhecemos. 

— Nem todos são bobos — disse Josie. — Temos Gilbert Blythe... 

— Que está a milhas de distância. — interrompeu Jane. 

— Mas ele sabe da festa, certo? — quis saber Tillie. 

Diana ainda estava de pé ao lado de Anne, e apertou seu ombro. A verdade era que poucas pessoas sabiam sobre ela e Gilbert. Diana, Marilla, Matthew e... Sr. Barry? Muito provavelmente sim, uma vez que ele deve ter visto os dois se despedindo quando levou Diana a pensão.  

E havia Bash. Gilbert com certeza contara a ele em suas cartas, Anne simplesmente soube depois de uma visita algumas semanas atrás, na qual Bash fez uma dancinha bastante engraçada ao vê-la. E em seguida, disse que estava imensamente feliz pelos dois, completando com um “eu sempre soube”. Anne não se lembrava da última vez que corara tanto. 

Em relação as meninas, ela estava esperando o momento certo, só não sabia quando seria. Ruby parecia não gostar mais de Gilbert há algum tempo, mas Anne ainda tinha o receio de que ao contar, sentimentos antigos por ele viessem a tona. Era apaixonada por Gilbert, mas não suportava a ideia de magoar uma garota tão sensível quanto Ruby. Diana insistia que ela  deveria contar logo, até porque acabariam descobrindo mais cedo ou mais tarde.  

— Charlie deve ter contado a ele — deduziu Josie. — Então Anne deve saber algo sobre isso. 

As quatro cabeças  viraram-se para ela.  

— Eu não sei nada sobre isso — falou Anne rápido demais, ligeiramente irritada pela curiosidade de Josie e o fato dela continuar com comentários inconvenientes sobre ela e Charlie. 

— Acho que ela sabe sim — corrigiu Jane, abrindo um sorrisinho malicioso no canto do rosto. — Semana passada eu chequei a correspondência e adivinhem só. Havia uma carta de Gilbert para ela. 

Anne arregalou os olhos e olhou para Diana, como se pedissem por socorro.  

— Ora, Anne e Gilbert são amigos há anos. Ele provavelmente escreveu-lhe para ser educado e perguntar como estavam indo as coisas por aqui — mentiu Diana, gaguejando em algumas palavras. As meninas a olhavam, ainda meio decrescentes. — Ele também me escreveu. E Jane, você não deveria espionar a correspondência dos outros 

Anne voltou a respirar, aliviada. As meninas pareceram se convencer. Cartas para duas amigas, algum sentido devia fazer. 

— E então? — quis saber Josie. — Ele vai? 

— Ocupado. — respondeu Anne, rapidamente mais uma vez.  

— Por que quer tanto saber sobre Gilbert Blythe, Josie? — perguntou Jane, aparentemente ficando cansada da conversa. 

— Talvez porque seja o único garoto decente que sobrou por aqui. — respondeu ela. 

— Bom, se você ainda não notou, Gilbert não está mais aqui. E não se iluda, ele terminou o noivado com a adorável Winifred. E se ele fez isso, é porque jamais se contentaria com uma moça do interior. E está em Toronto, deve haver várias garotas interessantes e bonitas por lá. 

Jane Andrews e sua habilidade de calar Josie Pye a qualquer momento. Qualidade que era, na maioria das vezes, admirável. Mas foi o semblante de Anne que se apagou depois das palavras “não se iluda” e “garotas interessantes e bonitas por lá”. Não era a intenção de Jane, mas será que as palavras também encachariam para Anne? 

— Vocês deveriam se concentrar em outros assuntos que não incluam garotos — interrompeu Diana, observando o quanto Anne tinha ficado desconfortável com a conversa.  

— Já deveríamos estar prometidas a alguém nessa idade, Diana — lembrou Tillie. Sempre a mesma lembrança, sempre a mesma pressão. 

— Pretendo me formar antes de tudo. — declarou Diana e Anne olhou para a amiga, orgulhosa. Ela tentava na verdade acabar com a conversa, mas Anne sabia que Diana realmente pensava daquela forma. Tinha mudado absurdamente durante aqueles meses, tornando-se mais segura  e formando opiniões próprias. — Podemos ir agora, Anne? 

Anne se levantou de imediato, grata por poder fugir dali. Despediram-se rapidamente e saíram juntas da pensão. Ela conseguia sentir o olhar de Diana sobre si, estudando seus movimentos atentamente. Caminharam em silêncio por mais algum tempo, até Diana criar coragem para falar. 

— Foi o que Jane disse, não foi? Anne, sabes que ela se referia a Josie... 

— Eu se disso. Mas talvez ela esteja certa, Diana. Gilbert deve estar rodeado de moças interessantes e bonitas. E próximas dele agora... 

— Anne Shirley, não se atreva a começar. Gilbert Blythe desistiu de um casamento por você. Ele sempre teve sentimentos por você, sabes muito bem disso. Além disso, sabemos o quão decente ele é. Não seria capaz de ferir seus sentimentos e se fizer, eu mesma vou a Toronto dar-lhe uma lição.  

Anne não se lembrava da última vez que Diana usara aquele tom com ela, repreendendo-a e ao mesmo tempo tentando amenizar toda a situação. Ela nunca tinha visualizado a si mesma como uma garota insegura nesse sentido. Gilbert e Anne. Apenas soava certo, apenas sentia que ele era sim o parceiro de sua vida. Ela escolheu Gilbert para amar e confiar. Mas...  

— E será que eu também vou precisar mandar que pense em outras coisas além de garotos? — perguntou Diana, agora sorrindo. — Será que tenho que lembrá-la que têm importância por si só, independente de homens? Que mulheres são completas no momento em que entram nesse mundo? Quem disse isso? 

Ela. Ela , Anne Shirley-Cuthbert havia dito aquelas palavras.  

Escolhera a si mesma em primeiro lugar.  

 

Mas não significava que as coisas fossem ser fáceis. 

Teria um trágico romance no final de tudo? 

 

 

Remains to be seen. 


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Notas finais do capítulo

Mais uma vez, perdão pelos erros se houver. Obrigada aos que chegaram até aqui!

*O trechinho marcado eu tirei do episódio 10, da terceira temporada. A frase foi adaptada da Srta.Stacy.

Sei que o capítulo ficou absurdo de grande. Peço desculpas, mas não achei que ficaria bom dividir. Eis as observações: Nos capítulos anteriores, se os mais observadores perceberam, coloquei que o Gilbert fazia Pré-Medicina. Isso porque em vários países os alunos fazem alguns anos de pré-med antes da medicina. Masss eu pesquisei um pouco e aparentemente no início do século 20 não era assim que funcionava, pelo menos não na U of T. Então Gilbert está cursando Medicina.
E fun fact: A Elizabeth e o Duncan de fato existiram. Eles realmente cursaram Medicina na Universidade Toronto por volta de 1900.

Comentem pessoal. Faz toda diferença, acreditem.



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