Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 86
Capítulo 85 – Sangue na parede.




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“Depois de seis meses esperando que ele batesse na minha porta eu finalmente me deparo com o fato de que Manuel tinha razão: Flavius não vai voltar. Ele simplesmente desapareceu. Não vive mais com a tia em Alvinópolis nem voltou para a capital. A tia disse que ele foi morar com um outro parente e que não queria que eu soubesse onde é. Ele não responde meus e-mails e, aparentemente mudou de telefone. Nem Michel, nem Natasha sabem onde ele está. De todos os modos que eu pensei que isso terminaria essa é a mais dolorosa de todas... um término frio, sem despedida. Ele simplesmente desapareceu, sem uma conversa final, sem colocar os pontos nos is. Sem ao menos me dar a chance de, sei lá, tentar entender, explicar, falar. Eu sei onde errei em muitos aspectos, sei onde erramos. Mas eu não esperava que fosse assim... tanta coisa que eu queria dizer... como eu posso seguir em frente assim?

Tenho vivido meus dias com todas essas coisas não ditas engasgadas dentro de mim. Como um caroço que cresce na minha garganta e me impede de respirar. Manuel tem me ajudado, pelo menos, a transformar todo esse engasgo em arte. Toda essa raiva em movimento, toda essa frustração em dança. Olho todos os dias para os restos do seu sangue na parede e fico pensando em como as coisas poderiam ter sido... se fossemos diferentes, se fossemos melhores. A verdade é que sempre nos acreditamos pessoas muito melhores do que somos; mais humanas, mais compreensivas, menos violentas. Mas a verdade é que quando as coisas acontecem e nós reagimos por impulso acabamos mostrando ao mundo (e a nós mesmos) quem somos. Nossos ímpetos, nossas verdades, e isso nem sempre é bonito. Eu tenho me apercebido que sou muito mais parecido com meu pai do que gostaria; tão mesquinho, tão agressivo, tão raivoso... eu achava que essa raiva iria passar, que esse ódio entranhado nas minhas vísceras iria se sublimar e se transformar em felicidade. A gente sempre acredita que as merdas dentro da gente magicamente vão se transformar em feilicidade... num futuro próximo... “quando eu receber a herança”, “quando eu me mudar pra Alvinópois”, “quando eu entrar pro corpo de baile”, “no próximo espetáculo”... só que essa felicidade ela nunca vem. Essa transformação mágica das nossas dores pra alegria ela nunca acontece.

Acho que no fundo tudo se trata de aceitar. Aceitar que somos doentes vivendo como podemos numa vida que não escolhemos. E nisso a gente dá o que tem. Dá o que consegue. A gente administra nossas dores como pode... se é que pode. E assim vamos seguindo, recebendo um pouquinho de felicidade de vez em quando... ou passando por ela sem sequer se aperceber. Como eu fiz com Flavius.

Eu estava feliz.

Lembro-me de nós, dançando desajeitadamente em Alvinópolis, sorrindo e cuidando juntos do jardim. Lembro da gente zoando o apartamento do Felipe e o jeitinho almofadinha dele. A carinha dele me contando que tinha feito amigos no colégio ou que tinha conseguido um emprego. A felicidade estava ali, sabe? Mas o que acontece é que as dores também. Isso é algo que ninguém nunca te ensina... tipo, nos romances e nos filmes... que o “felizes pra sempre” não vem junto com uma cura. As dores continuam ali, cutucando a gente. Distraindo a gente. A gente é feliz, mas continua todo quebrado. Acho que no fundo a vida é isso, estar feliz e quebrado ao mesmo tempo.

Eu olho pra mancha de sangue na parede, parecem pétalas de sangue... eu penso no Flavius, no quanto ele próprio era quebrado. Na sua tentativa desesperada de escapar disso. Eu fui insensível com ele, eu fui insensível comigo mesmo. Eu falhei. E essa é uma parte quebrada de mim que vou ter que carregar comigo para sempre. Mais uma.... é... talvez a vida seja isso: acumular essas merdas. E ai a gente vai vivendo, como consegue, como dá.... Eu olho pra mancha na parede e penso se um dia eu e Flavius poderemos nos reencontrar...”


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