Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 80
Capítulo 79 – deixe-me entrar.




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–Eu não sei se devia fazer isso.

–Qual é. Por causa do seu namorado?

–Na verdade é... sei lá.

–Você quem sabe. Mas não teria vindo até aqui se não quisesse, né?

Estavam os dois, Flavius e Raique, no banheiro da escola.

–É... eu queria... quero... sei lá. Mas agora que estou aqui me deu medo. E se pegam a gente?

–Relaxa, não vai acontecer nada.

–Você não tem como garantir isso.

–É, não tenho, mas posso garantir que você vai curtir muito... – disse antes de beijar sua boca.

...

Natasha estava deitada no chão do apartamento com os braços abertos. Tinha colocado o restaurante a venda. Agora era oficial, ela ia voltar a viver com seus amigos. Parecia um passo arriscado, mas eles tinham dinheiro para sobreviver por um tempo, e, com a experiência que ela tinha, não ia demorar a conseguir um emprego:

–Fazia tempo que eu não tomava uma decisão assim, de sopetão.

Flavius, que estava sentado na varanda, disse:

–É, eu também. Parece que o espírito aventureiro do Fip voltou a me pertencer.

–Eu não posso dizer nada. – disse Michel – Não estou arriscando nada. Vou continuar no mesmo trabalho, na mesma casa, fazendo as mesmas coisas.

–Só se você quiser. – disse Natasha.

–Como assim?

–Por que não nos mudamos todos para outro lugar? Sei lá, a gente vende os apartamentos e com o dinheiro compra outro em algum lugar. Talvez no litoral. O mar é tão lindo... A gente montava uma pousada, eu cuidava do restaurante, o Flavius administrava e você continuava com o teatro, sei lá.

–Wow. Essa ideia é bem nova. – disse Michel – O que acha Flavius?

–Acho que seria bom, recomeçar, sem o rabo preso com o passado. Essa casa, essa cidade, tudo isso cheira ao Fip. Não é que eu queira apagar ele da minha memória, mas me sentiria mais confortável em recomeçar uma vida sem a sombra dele sobre nós.

–Isso é meio difícil de ouvir.

–Mas é verdade. – retrucou Natasha – Viver emersos na memória do Chico não vai fazer bem pra vocês. Cedo ou tarde vão começar a sentir que o estão traindo. Pensem bem nessa minha proposta. Assim que toda essa história das entrevistas e do livro acabar podemos começar a buscar um lugar novo para todos nós.

–Vou pensar nisso... de verdade. – disse Michel.

–Eu gosto da ideia. Já vou me mudar mesmo. Não faz muita diferença.

–Legal. – disse Natasha com um sorriso no rosto – Esse ano vamos fazer mutias coisas diferentes. Vamos a Buenos Aires juntos, vamos morar na beira do mar. Parece uma vida legal.

–Vai ser bom! – disse Michel.

–Eu espero mesmo que seja – respondeu Flavius voltando sua atenção para a vista do apartamento.

Talvez todas essas mudanças trouxessem de volta aquela coisa que ele havia perdido. Aquele sublime gosto de vitória que a vida tinha. O ar de novidade juvenil que os olhos adolescentes lançam ao mundo. Novos amigos, novos olhares. Talvez ele precisasse mesmo disso. Mas pensar em Felipe sozinho em Buenos Aires ainda lhe trazia certo desconforto. Eles não viviam mal. Eram felizes a seu modo. E Flavius sabia que devia um pouco de consideração ao rapaz... Mas, por outro lado, estar com Michel e Natasha o fazia se sentir vivo.

Via-se sorrindo sozinho no meio da noite como um bobo. Mordendo os lábios pra conter a exitação. Há quantos anos não sentia esse fogo? Pensando bem, a vida monótona e cheia de regras que ele e Felipe viviam juntos o estava matando devagar. Uma morte lenta da alma que ele não desejava a ninguém. Talvez isso fizesse bem ao Felipe também. Mover-se um pouco da sua vida pacata, tirar a poeira... talvez.

Mas a verdade é que tinha medo de fraquejar. Voltar atrás e se acomodar ao velho jogo de vícios e respostas certas. Lançar-se diante do desconhecido exigia certo esforço. Esforço esse que só estaria disposto a fazer com Michel e Natasha. Por isso seria tão importante leva-los a Buenos Aires. Para que, ao voltar aquela cidade que tanto amava, não se sentisse tentado a ficar. Talvez precisasse aprender a amá-la junto com seus amores. Assim a cidade ganharia um novo gosto.

...

Rebeca viu pela janela os meninos chegando. Pierre estava terminando de colocar a pizza no forno. Era engraçado como essas entrevistas ganhavam ares cada vez mais íntimos. Parecia não restar qualquer vestígio de formalidade entre eles. O que lhe soava muito bem:

–Chegaram.

–Bem na hora. A pizza vai ficar pronta em alguns minutos.

–Falta pouco para terminarmos a leitura do diário. O que acha que virá depois?

–Como assim?

–Acha que voltaremos a nos ver? Todos nós?

Pierre congelou como que pego de surpresa, aparentemente não havia pensado nisso antes:

–Oh... isso... é... não sei.

–É... eu também gostaria que não perdessemos contato. Não sei, tudo isso meio que nos tornou íntimos, me vendeu a sensação de que eramos amigos. Mas agora que está acabando fico me perguntando se temos substância para continuar.

–Sabe, estou meio acostumado a isso. Toda entrevista exige um nível de intimidade que se esvai.

–Mas nunca se manteve tanto tempo em contato com um entrevistado.

–Não, nunca... quer dizer, teve aquele documentário que fiz sobre moradores de rua... ficamos bem um mês junto com o pessoal.

–E você ainda pensa neles?

–As vezes. Um dia ou outro.

–Será que no fim Flavius, Michel e Natasha se resumirão a isso? Um “às vezes” – desenhou as aspas com os dedos – “dia ou outro”?

–Olha, sinceramente, eu penso que sim.

–E isso não te incomoda?

–Um pouco.

–Um pouco? Talvez eu seja mesmo muito sensível!

–Você é. Mas isso não é um problema. É algo de lindo que tem em você. Preserve.

–Você faz parecer mesquinho.

–Mas não é.

A campainha soou rompendo o diálogo:

–Deixa que eu abro. – ela disse.

...

“Abri os olhos e fiquei a mirar o teto. Flavius dormia ao meu lado. Notei algumas manchas no seu pescoço. ‘Alergia a alguma coisa’ ele disse desconcertado. Mas Flavius mente muito mal. Ele se pegou com alguém. A principio tive de conter a raiva, engolir o ódio e não lhe meter uma bifa na cara. Mas logo em seguida pensei no meu pai e no quanto não quero ser uma versão viada dele.

Afinal, que direito tenho eu de me zangar? Logo eu? Bem, não sendo com Michel fico satisfeito. Não pode ter sido com Michel. Não faz o feitio deles. Mas se não foi ele, quem foi? Onde foi? Algum idiotinha da escola? Quem? Por que? Para se vingar de mim? Para se sentir desejado? Estaria se apaixonando? Será bonito o rapaz? Que encantos tem que chamaram assim tanto sua atenção? Por que ele e não eu?

Ora Fip, você está ficando neurótico. Talvez seja mesmo a tal alergia que ele diz! Afinal porque Flavius mentiria? Talvez o mentiroso seja você, por isso toma todos como iguais. Que mania essa de tratar a todos como se fossem cínicos dissimulados como você é:

–Flavius. – disse em voz alta.

Estava dormindo, não me respondeu. Dormia como um garoto de cinco anos. Indefeso, sem escudos. Que estaríamos fazendo um com outro? Vivemos quase como dois estranhos sob o mesmo teto. Mal nos vemos, mal nos falamos. Eu sempre absorvido pelos ensaios, ele em seu mundo, andando pra lá e pra cá. Nossos olhares já não conversam. Quando foi a ultima vez que nos beijamos? Não esse tocar frio de lábios, ato mecânico, informal. Beijar com desejo, fogo de paixão, vontade de se desnudar. Quando foi?

Toco sua mão, está fria. Sinto uma súbita vontade de amá-lo. Fazer loucuras, correr com ele pelas ruas, mãos dadas, rindo como dois loucos, ignorando todo o mundo a nossa volta. Numa bolha de felicidade onde só existem nós dois. Desejo acordá-lo e dizer coisas bonitas. Mas que tenho a dizer? Tudo já lhe foi dito. Todos romantismos, todos amores. Nada há para ser revelado. Então dizer o que?

O amor deve ser demonstrado dia a dia. Mas que difícil isso é. Cada dia passa como um furacão: ensaios, contas, planos, cansaços. Tanto a ser feito, horários desencontrados. Chega a noite e a exaustão sobre o corpo pesa. Não restam energias para os sorrisos, as longas conversas, os dedos entrelaçados. A vida parecia mais simples em Alvinópolis. Mais simples de amar.

Seria isso? Viver meus sonhos exigiria de mim a solidão? Eu conseguiria sinceramente manter o amor de Flavius, dia a dia, enquanto busco a dança como quero? Como se ela me absorve por completo? Se só penso em ensaios, aperfeiçoamentos técnicos, conceito do espetáculo. Jornais, tv, entrevistas. Começo a sentir o sabor do reconhecimento. Cada espetáculo mais cheio. Começam a conhecer-me nas ruas. Sinto o empasse. Tudo isso há de exigir-me ainda mais concentração, esforço, tempo dedicado. E Flavius aqui, ao meu lado, cada vez mais invisível.

Por que não posso ter aos dois? Lado a lado caminhando? Por que não tenho energia para ama-los juntos? Viro-me para ele, olho seu rosto, gostaria de leva-lo para jantar, mas quando? Certamente só teria tempo no sábado. Mas ele disse que iria a Alvinópolis visitar a tia. Chamou-me, mas não posso, tenho ensaios. Meu corpo dói, exausto, nem sexo penso em fazer. E ele a se divertir com outros rapazes... quem serão? Estaria ele se sentindo sozinho? Estou a abandoná-lo?

–Flavinho.

Ele resmunga algo como resposta, provavelmente ainda dorme. Vira-se para o outro lado, puxa a coberta. Eu o abraço e tento dormir. Um abraço sem abraços, frio e mecânico, como os beijos que trocamos de manhã. Uma noite fria, solitária. É triste estar sozinho ao lado de alguém...”


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