Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 52
Capítulo 50 – Finalmente, a apresentação.




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                O palco, que magia ilustre habita esse lugar! Penso em quando eu tiver a honra de subir em um! Estar debaixo dessas luzes, fazendo algo em que acredito, encantando uma plateia ávida por um momento mágico que as vacine da sensação ordinária de ser alguém! Fip é o próximo a entrar no palco, estou nervoso por ele! Flavius e Natasha estão ao meu lado, Felipe decidiu se sentar mais à frente. Aperto minhas mãos... como será estar do outro lado das cortinas?

...

Não importa quantas vezes eu suba em um palco, quão bem ensaiado eu esteja ou quanto eu precise disso para viver pleno e feliz! Todas às vezes minutos antes de entrar em cena, eu me arrependo profundamente de ter inventado de fazer isso!  Nesse momento, encarando o iminente momento de entrar em cena, surpreendo-me pensando em desaparecer! Sumir sem deixar vestígios e fugir para sempre! Tomado por um pânico absurdamente relevante e igualmente gostoso eu encaro o palco das coxias. Em breve estarei lá fazendo o que sei fazer de melhor. Minhas pernas pararão de tremer e eu não vou me lembrar de nada disso que está acontecendo agora.  Mas, até que isso aconteça, até que eu suba no palco, serei obrigado a lidar com esse calafrio, essas mãos trêmulas... o medo de encarar o escuro... o fracasso.

...

Luz. A brilhante sensação de espera-lo entrar em cena. Meu coração palpitava, Fip seria o próximo! Agora no palco uma dupla de bailarinas faz uma apresentação que me aborrece. Fip brigaria se me ouvisse falar isso, mas a verdade é que me custa assistir a tudo isso. Não é que eu não goste de dança, mas assistir a tantas seguidas, tão diferentes... algumas tão maçantes... mal vejo a hora de tudo terminar! Claro que espero ansioso por ver o Fip dançar! Mas depois dele ainda serão mais oito danças. Respiro fundo e tento não pensar no assunto. Procuro o Felipe na multidão, ele se afastou de nós. Desconfio que o pai do Fip está aqui...

...

Artur não quis vir. Disse que tinha uma festa da faculdade. Pediu para que eu fosse com ele, mas eu não podia deixar o Chico na mão em um dia tão especial! Mas combinamos que logo depois da apresentação eu iria para lá. Faz tanto tempo que não vou a uma festa de verdade! Tipo com gente desconhecida e tal.  Prometi levar o Michel, ele tá todo de mimimi porque é uma festa hetero e blablabla. É engraçado como perdemos totalmente o interesse numa festa quando não rola chance de pegar ninguém... enfim. Eu prometi que não deixaria ele sozinho... o que pode ser difícil... Como é chato dividir atenção entre namorados e amigos! Chamei o Artur de namorado? É... talvez a essa altura do campeonato não dê para evitar.

...

-Ei! Francisco? – disse o garoto segurando Fip pelo ombro – É você?

Fip olhou para trás de sobressalto e soltou um sorriso frouxo:

-Manuel? É você? – abraçaram-se demoradamente– Pensei que estivesse na Europa! Que saudaaaade de você!

-Eu estava, mas voltei faz uns dois meses, as coisas estavam difíceis por lá.

-Que bom que voltou. – disse encarando-o hipnotizado, em um daqueles momentos em que você não percebia o quanto estava com saudades de alguém até essa pessoa aparecer na sua frente.

A plateia aplaudiu o final do número, Fip olhou instintivamente para o palco:

-E..eu sou o próximo. – disse sem jeito.

-Sério?! Eu sou o último! Vai lá! Merda pra você! Vou ficar daqui assistindo.

-Você vai se apresentar também? Droga! Acabo de perder todas as chances de vencer esse concurso!

-Ahahaha! É melhor tentar dar o melhor de si naquele palco porque eu o farei.

-Desgraçado, você sabe como me instigar. Assista sua derrota. – sorriu e correu até a coxia.

Manuel cruzou os braços e ficou a observar o rapaz. Era quatro ou cinco anos mais velho que Fip e sempre o viu com um olhar paterno. Regozijava em vê-lo evoluir! Conhecia suas dificuldades familiares (e talvez por isso se identificasse) e sempre torceu muito em vê-lo seguir dignamente o caminho da dança. Sabia que Fip, quando mais novo, havia nutrido por ele uma paixão platônica, dessas de adolescente. Paixão que ele julgava natural; era mais velho, mais experiente, já tinha uma carreira consolidada... era mais admiração artística que paixão... normal que se confunda essas coisas em certa fase da vida. Por isso sempre se esforçou em não deixar que nada acontecesse entre os dois (fato que ferira o orgulho de Fip). Sorriu ao se lembrar disso enquanto olhava para aquele garotinho que agora esboçava traços de homem. Esperando para ver como estava se virando como artista... o quanto havia evoluído...

...

-Rhapsodie de Saint Preux ?

-Sim, meu tio. – respondeu Felipe.

-Francisco sempre idolatrou Saint Preux. Era o compositor favorito de Bianca. Quando ela partiu deixou para trás apenas dois discos dele e um perfume barato. Francis ouvia os discos repetidamente, era intolerável. Esse foi motivo de muitas de nossas brigas.

-Como na briga em que ele arrancou seu olho, meu tio?

O homem o encarou com firmeza:

-Esse não é um assunto seu moleque!

Felipe engoliu em seco, morria de medo do tio e odiava vê-lo irritado:

-Eu... devo contar ao Francis que esteve aqui?

-Cale a boca! Quero assistir o meu filho!

...

Ao primeiro movimento, na primeira respiração, Fip já parecia totalmente tragado pela música. Essa sempre foi sua melhor qualidade, pensou Manuel, sua capacidade de transmitir emoção. Tecnicamente havia muitos bailarinos superiores a ele nesse camarim, mas todos dançavam com cara de nada, executando os movimentos cruamente, como se significassem coisa alguma. Fip não, qualquer mero movimento ganhava em suas mãos uma cor divina, uma alma!

A música era fluída, leve, a dança seguia igual, sem grandes movimentos ou saltos exibicionistas (como era a tendência geral de bailarinos jovens), nada de relevés desnecessários, piruetas exageradas nem movimentos descabidos. Tudo parecia colocado ali por mãos divinas, na medida exata para transmitir a emoção necessária.  Fip não era apenas um bailarino, era um artista plástico que usava seu corpo para desenhar as musicas que ouvia.

Provavelmente não venceria o festival. O júri era, no geral, muito quadrado e tecnicista para priorizar uma boa interpretação a um exibicionismo técnico. Mas com certeza deixaria em toda a plateia uma marca única... seria o mais comentado da noite.

...

Mesmo tendo visto o ensaio tantas vezes, nada podia superar a emoção de vê-lo no palco. Quando a música começou e eu vi sua expressão tão diferente do habitual, eu senti vontade de chorar. Estava ali, em seus movimentos, o abandono, a tristeza, o medo de ficar só. A sua fragilidade tão bem escondida no dia a dia estava ali, escancarada para qualquer um ver. E eu podia ver claramente. Fip não era um filhinho de papai como eu tinha pensado ontem, ele era uma das pessoas mais sensíveis que eu já conheci. E isso, ser sensível, é uma coisa muito difícil, obriga-nos a vestir mascaras, cometer grosserias, provocar tragédias.

Essa dança era não só um pedido de socorro, mas uma grande lamentação, pela vida, pelos sonhos perdidos, pela dor. Não sei se é porque eu o conheço, mas senti entre a sua apresentação e a dos outros uma diferença gritante! Era emocionante, tinha sentimento, alma! Senti um comichão me subir pela barriga, certa paixão. Certeza de que gostaria de passar com ele todos os dias da minha vida! Era ele o homem por quem eu deveria ter me apaixonado!

Ao pensar isso olhei para Michel de relance, como que por instinto. Não é que Michel fosse inferior a Fip, mas não dava para competir com isso! Com essa fragilidade destruidora! Essa sensibilidade que as vezes era capaz de matar...

...

Chico era uma fofura no palco! Eu gostava do jeito que ele dançava. Não tinha grandes surpresas porque eu já tinha visto tudo, mas ver assim no palco tinha sua diferença. Era engraçado ver ele dançando no palco, na frente de tanta gente. Eu sentia uma pontada de orgulho e ciúme. É como se toda essa gente não tivesse o direito de olhá-lo tão de perto, porque ele era meu amigo! Meu! Eles não iam entender essa dança como eu entendia! Era injusto que pudessem assistir!

Mas ao mesmo tempo era de dar orgulho! O meu amigo encantando tanta gente. Mostrando pra esse povo tão acostumado a não sentir nada que ainda existe um respingo de emoção no mundo... É estranho eu dizer isso... logo eu que sou sempre tão sarcástica, mas é verdade... a verdade pura e simples....

...

‘’-E então? O que achou? – perguntei quando sai do palco.

Manuel olhou para minha cara com aquele sorriso que eu nunca sabia se era safado, cínico ou amigável e disse:

-Bárbaro! Você foi bárbaro! Claro que tinha um releve aqui ou ali que podiam ser mais altos. Umas piruetas mal finalizadas, um ou dois saltos não tão bem executados... mas no contexto geral foi muito bom. Teve sentimento, e isso é o mais importante.

-Eu sei que me faltou ensaio, mas...

-Te faltou direção! Não ensaio. Direção.

-É... eu ensaiei sozinho e ...

-Esse foi o problema, se é que podemos chamar de problema, você só precisava de um bom diretor e tudo estaria resolvido.

-Está se oferecendo?

-Não estava, mas posso pensar no assunto.

Dei nele um abraço apertado enquanto dizia empolgado:

-Você é ótimo, Manuel! Senti tanta falta de você!

-Eu sei. Como estão as coisas na sua casa? Melhores?

-Ah eu sai da casa do meu pai! Estou morando sozinho – fiz um sinal de aspas no ar – em Alvinópolis.

-Alvinópolis? Onde é isso?

-É uma cidadezinha aqui perto. Herdei uma casa lá.

-Hmm, quer dizer que agora o senhorzinho é um herdeiro?

-Sim. Meu tio morreu aquele que tinha câncer, lembra? Ou você já estava na Europa? Acho que você já estava lá na época...

-Enfim. E seu pai? Como reagiu?

-Nem sei. Peguei minhas coisas e fui embora, nem avisei.

-Ah, Francisco...

-Fip.

-Que?

-Me chama de Fip.

-Desculpe, Fip. – ele enfatizou o Fip com um ar sarcástico – Enfim. Você foi muito bem. Gosto do caminho que você decidiu seguir.

-Pura influencia sua. Se eu não tivesse conhecido você seria um idiota que só se preocupa em levantar as pernas como a maioria aqui.

-Influencia minha o cacete. Milhares de pessoas me conheceram e só você pescou isso. O mérito é seu.

-Que seja. Eu sou muito grato por tudo que você me ensinou. Sinto falta daquelas tardes que passávamos conversando na academia. Não sei como você tinha paciência comigo...

-Nem eu.

Eu não sei por que, mas Manuel me fazia me sentir como uma criança de cinco anos pedindo colo. Era como se todas minhas fragilidades gritassem quando eu estava perto dele:

-Eu era um menino bem chato, né?

-Um tanto reclamão e egocêntrico... mas quem não é?

-Você.

-Você que pensa. Todos nós somos todo o tipo de gente que existe. A diferença é quem está do nosso lado. Com cada pessoa com quem convivemos escolhemos um tipo de gente para ser. Com você eu acabo sendo o tipo paizão, e você, por osmose, acabou virando um bebezão.

-Não é bem assim. – na verdade era sim – Eu estou bem crescidinho agora.

-Isso eu percebi.

-Acha que estou mais bonito?

-Ah... Fip? É Fip?

-É.

-Pare com isso! Seu tipinho galanteador pode funcionar com esses garotinhos perdidos... mas pra funcionar comigo vai ter que melhorar muito.

-É uma pena... mas tudo bem, eu estou namorando.

-E quando você não esteve?

-Mas dessa vez é serio!

-E quando não foi?

                -É sério! Eu estou realmente apaixonado dessa vez! É diferente!

                -Insisto... e quando não foi?

                -Você não está acreditando em mim, né?

                -Não. Eu já ouvi essa história uma porção de vezes. Mas que seja. Espero que seja feliz com seu novo namorado. E espero que ele não se importe que você saia galanteando qualquer um por aí.

                -Você não é qualquer um.

                -Ninguém é.

                Falávamos nos encarando como se estivéssemos em um duelo. Em verdade parecia mesmo com um. Sempre medimos forças, mas, para o meu azar, ele sempre ganhava!

                -Agora, se me permite, preciso me concentrar para a minha apresentação.

                -Estarei aqui assistindo.

                -Sei que sim.

                Ele saiu com aquele ar de superioridade que me irritava e me atraia profundamente. Senti meu coração palpitar e uma vontade imensa de largar tudo pra trás e sair correndo atrás dele! Mas me segurei, fui até o camarim, tirei a maquiagem e o figurino e caminhei até a plateia... Flavius, Michel e Natasha estavam me esperando!

                Sentia no peito uma sensação explosiva! Era como se uma descarga elétrica passasse por meu corpo. Tinha vontade de voltar ao palco e dançar por mais dez horas! Como pude me afastar disso por tanto tempo? O cheiro do camarim, as sapatilhas penduradas ao lado do espelho, as dores nos pés... tudo isso tinha um significado tão profundo e completo... era um universo tão sublime e perfeito... por que me separei dele?

                Uma menina (devia ter quase treze anos) olhava para mim com um olhar admirado, lembro-me de olhar assim para os bailarinos mais velhos! Hoje eu sou um deles! Engraçado, pensava que me sentiria mais pronto, mais preparado a essa altura da vida! Mas acho que esse é um sentimento que nunca teremos. Estar preparado... pronto... esse parece o sonho impossível da humanidade:

                -Você vai se apresentar hoje? – perguntei a ela.

                -Sim.

                -E o que você vai apresentar?

                -Jazz.

                -Jazz? Eu já dancei jazz, mais ou menos quando tinha a sua idade! Quem é sua professora? – não sei por que, sempre fazemos essa pergunta, mesmo quando não há a menor possibilidade de conhecermos quem é.

                -A Márcia.

                -E ela é boa?

                -É!

                Ela disse com uma convicção invejável. Sempre achamos que nossos professores são os melhores do mundo!

                -E você está nervosa?

                -Um pouco. – ela disse olhando para baixo – Você ainda fica nervoso?

                -Muito!

                -Eu não. Eu fico só um pouquinho!

                -É porque você já é uma grande profissional. – eu disse apertando o nariz dela e pegando minha mochila – Agora eu vou assistir o resto das apresentações com a minha família. A sua família está ai? Eles vieram ver você?

                -Minha mãe e meu pai.

                -Que legal! – meus parentes nunca me assistiram – Então faça uma apresentação bem bonita para eles, ok? Eu vou estar lá assistindo também!

                Ela fez um sinal afirmativo com a cabeça, eu sai. Era a primeira vez que eu não ficava no camarim até o fim das apresentações. A primeira vez que eu tinha quem encontrar na plateia... alguém com quem eu me importasse... uma família!

                -Fip? Onde o senhor pensa que vai?

                Era a Andressa, uma antiga parceiao de dança:

                -Estou indo até a plateia, assistir o resto das apresentações.

                -Ah, vai perder seu tempo vendo esse lixo? Eu só quero ver o Manuel.

                -É, eu também!

                -A galera tá reunida lá atrás do teatro, vem com a gente!

                -Claro! – estava com muitas saudades dessas conversas atrás do teatro, quando nos juntávamos para falar mal de todos os outros que não estavam ali! – Só vou avisar o pessoal e...

                -Vem logo, menino!

                Ela disse me puxando pelo braço. Não resisti! Aquilo tudo me fazia lembrar os melhores momentos da minha vida! Era como me sentir vivo de novo!”


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