Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 51
Capítulo 49 – A Capital e suas ilusões.




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—Até que enfim chegaram!   - disse Michel quando Fip abriu a porta do apartamento – Vim correndo assim que soube! Que saudade de vocês!

   Natasha foi a primeira a pular nos braços do amigo:

—Seu putinho desgraçado! Que saudade de você!!!

—Também estava com saudade de você Natasha! De todos vocês! Fiiip, como você está?

—Nervosíssimo! – disse tremendo as mãos de propósito – Faltam dois dias para a apresentação!

—Siim. – disse abraçando o amigo – Mal vejo a hora de te ver no palco! Dei um pulo na abertura do festival ontem, tem muita gente boa lá! Vocês vão assistir hoje?

—Claro! – disse Fip  – Quero ver com quem estou competindo.

—Artur! Como vai? – apertou a mão do rapaz.

—Bem, e você?

—Ótimo!

Felipe entrou na cozinha (queria preparar o jantar):

—Vejo que cuidou muito bem do meu apartamento. Pena que insiste em morar em outro lugar!

—Feliiiipeee. – abraçou o menino – Que bom que está bem! Como está a perna? Sem problemas?

—Novinha em folha!

—Que bom! Fico feliz... e Flavius? Não veio?

Fip e Natasha se entreolharam:

—Veio sim. – disse Fip – Ele foi lá embaixo comprar sei lá o que. Já deve estar chegando.

—Ah sim, menos mal. – soltou um sorriso – Que bom ver vocês aqui! Mal posso acreditar que vocês finalmente chegaram! Desde que Natasha me disse que viriam que eu estou contando os dias!

—E como andam as coisas por aqui? – perguntou Natasha.

—Um tanto difíceis, mas compensa. – fez um olhar para a amiga como que pedindo uma explicação para a presença do Artur. Natasha soltou um sorriso bobo.

—Vem cá. – ela disse – Tenho algo pra te mostrar!

Puxou o amigo pela mão até o quarto:

—Eu não tinha te dito que ele terminou com a namorada? – cochichou depois de fechar a porta.

—Sim! E aí?

—Aí que ele ficou lá em Alvinópolis até hoje, pra vir com a gente.

—Só isso? Vocês não tem ficado?

—Sim, sim! Ele quer que eu me mude pra cá!

—Então vocês estão namorando?

—Não sei se estamos namoraaaaando, mas tá rolando um clima legal.

—Sei... mas e aí? Você vem? Morar aqui?

—Não sei. Não tenho emprego, nem quero trabalhar. Gosto da vida de beber, jogar vídeo game e comer de graça que eu tenho na casa do Chico. Além do mais não quero depender do Artur, nem morar com ele.

—Você pode morar comigo!

—Tá doidão? Você disse que seu apartamento é minúsculo!

—Ele é, mas se a gente dividir as despesas podemos alugar um lugar maior.

—Tem dessa. Sei lá, estou pensando... calma.

—Tomara que você venha!

—E você? Como andam os rolos?

—Ah. – disse num tom desanimado – Sei lá.

—Ué, e o menino lá? Como era o nome dele?

—Igor.

—Isso! Vocês não estão mais juntos?

—Ah, no fim das contas descobri que ele é um chato. Muito galinha, ego enorme. Uma necessidade de se auto afirmar demais. Cansei.

—Ué, você tá falando do Chico ou do Igor? Ahahahahhaha.

—Ahahahaha. Não, o Igor é diferente. Fip tem alguma coisa charmosa no ego dele. Não parece tão ensaiado e forçado... não sei dizer. Cansei dele. Não quero nem ver perto.

—Vish. Isso tá com cara de que aconteceu alguma coisa que você não tá querendo contar.

—É... ele ficou com um amigo meu. Numa festa que não me convidaram.

—Bem vindo à capital, meu amigo.

—Pois é... – deu de ombros e suspirou fundo – Fiquei meio chateado na época, mas já passou.

—Passou mesmo?

—Mais ou menos. Ando me sentindo meio sozinho. O povo aqui não é amigo de verdade. Sinto falta de vocês. Mas me conta, e Flavius? Tá bem?

—As vezes tá, as vezes não tá. Você sabe como é. Ele e o Chico  se estranham, ai depois ficam de boa... aquela novela de sempre.

—E como estão agora?

—Parece que estão bem. Quer dizer, tava tudo bem até a gente chegar. Ai do nada ele disse que ia lá embaixo e saiu sem falar mais nada. Sei lá. Mas eu não tiro a razão dele não. O Chico tá um saco! Tá nervoso com a apresentação acaba soltando faísca pra todo lado. E o Flavius é quem aguenta mais. Enfim, problema deles, né?

—Bem, acho que é. Na verdade eu acho que eles estão até resistindo muito tempo juntos. Confesso que pensei que não duraria um mês.

—Pensou ou torceu?

—Que isso Natasha. Pensei só.

—Ok... Bem, vamos voltar pra sala? O Artur fica meio constrangido de ficar sozinho no meio do povo. Eles não se conhecem direito e você sabe como é...

—Hmmm tá toda preocupadinha com o bem estar do bofinho. Que gracinha!

—Para! Não custa tomar uns cuidados...

...

   Os últimos dias tinham sido um stress, Fip ensaiando como um louco, tendo crises de humor a cada cinco minutos. Às vezes interrompia os ensaios dizendo que ia desistir de tudo, dava murros nas próprias pernas, dizia que estava tudo uma porcaria! Depois ele chorava, bebia água e me pedia para ver mais uma vez. Então eu assistia ao ensaio, ele me perguntava, pedia para ser sincero dessa vez, se estava muito ruim. Eu dizia que não e ele ficava uma pilha de nervos. Dizia que eu tinha que ser sincero. Que eu podia dizer a verdade! Eu dizia que estava sendo sincero e ele começava tudo de novo. Foi uma verdadeira prova de fogo!

Espero, muito sinceramente, que esse stress todo seja só porque faz tempo que ele não dança. Penso que não suportaria se ele agisse assim em todas as apresentações. Deus me livre e guarde... Enfim. Durante a viagem achei tudo mais tranquilo, porque ele decidiu implicar com o Felipe e me deixou um pouco em paz. Sua presença vem me sufocando e às vezes preciso inventar desculpas para ficar um pouco sozinho.... Como agora.

A última vez que vim para a capital foi quando cortei os pulsos... não tive tempo para aproveitar a cidade. Gosto muito daqui. As ruas cheias de gente, os prédios altos, as bancas de revista na esquina. Muros pichados, pessoas bonitas, bem vestidas. Ninguém olha pra você quando você passa! Ninguém sabe da sua vida. É libertador. É um lugar onde ficaria feliz em ser engraxate, balconista ou qualquer uma dessas coisas que insistem em dizer na escola (com o objetivo manipulador de te impulsionar aos estudos e te obrigar a ser “útil e bem sucedido”) que é degradante. Mas que de degradante não tem nada... degradante é ser infeliz. É estar vivo... o resto é necessário.

Engraçado, mas sempre me imaginei com um desses empregos que te tornam invisível. O balconista, o atendente,  o cobrador de ônibus... essas pessoas que nos acostumamos a não ver como pessoas. Fip briga comigo quando digo isso, diz que eu mereço coisa melhor. Mas o que pode ser melhor do que aquilo que queremos? Ele fala como se escolher um desses trabalhos me tornasse uma espécie inferior de ser humano... um ninguém. Mas ora... e Michel não é bilheteiro no teatro? E com isso não consegue todo o respeito de que precisa? “Mas é uma situação temporária....ele tem planos ! Quer ser ator. Está se sujeitando a isso para alcançar o que deseja...”...  Uma ova!

Desprezo essa visão de mundo em que só é digno quem se destaca, quem é visto... aquele que faz o que ninguém é capaz de fazer. Ridículo! O que as pessoas querem de verdade é trabalhar pouco e ganhar muito. Para se sentirem espertas, melhores que os outros! Isso todos acham digno: “Fulano passou num concurso, ganha cinco mil por mês e só trabalha meio período. Porque estudou mimimi...”. E agora rouba dinheiro de quem trabalha de verdade. Ganha injustamente por um trabalho que não faz e ainda se sente no direito de olhar feio para aqueles que morrem de tanto trabalhar e mal ganham para se sustentar. Não acho isso digno, não acho certo. Nunca quis esse tipo de vida para mim.

Fip, claro, não concorda. Sempre brigamos quando conversamos a respeito... aliás, quando é que não brigamos? Mas o que esperar dele? É um riquinho, um playboy, filhinho de papai. Ganhou tudo que tem. Nunca teve que se esforçar pra nada e agora fica em pânico por causa de uma apresentação de dança. Um bailarino, entre milhares deles, dentro de um festival. Não me parece muito mais significativo que um balconista qualquer. Uma pessoa que só vai ser conhecida e reconhecida por quem é da área. Por quem já o conhece. De que lhe adianta receber um troféu dizendo que ele foi o melhor do festival? Isso não o torna melhor de verdade, é só um símbolo, uma convenção... nenhum valor é real a não ser o que carregamos dentro de nós.

Ele está agindo como se sua vida dependesse disso, mas não! Mas Fip tem a vida ganha! Tem dinheiro para se sustentar, uma casa, comida! Ele não precisa do reconhecimento como bailarino para conseguir uma boa oportunidade, um emprego, um espaço em um grupo! Ele precisa disso para o próprio ego! Fip pode comprar o reconhecimento que quer, não precisa roubá-lo de quem precisa de verdade! Acho tudo isso um tanto egoísta... talvez até mesquinho.

Gosto de respirar o ar desse lugar! Gosto de andar por essas ruas. Faz-me sentir vivo, faz-me perceber quanta vida estou perdendo em Alvinópolis. Lá é como se eu estivesse estacionado no tempo, condenado a viver preso a uma teia social que tende a me levar gradativamente ao desespero. O olhar maldoso das pessoas, os comentários mesquinhos, as más lembranças, toda gente que eu sei que não gosta de mim. Tudo isso me sufoca, meu passado, a vida que tive até hoje. Tudo parece um borrão mal vivido, chance desperdiçada.... uma injustiça poética. É engraçado quando temos a sensação de fracasso enraizada em nossas almas sem ter, no entanto, motivos concretos para isso. Faz-nos parecer paspalhos por reclamar de uma situação cômoda... nunca me faltou um teto, um prato de comida.... mas me faltou felicidade, amigos, vivência social... Faltou abraços, olhares quentes, sorrisos... todo aquele conjunto de boas lembranças que guardamos no peito para nos reconfortar em tempos ruins...

Penso em todos os amigos que quase tive. Aqueles rostos amigáveis e bonitos que um dia prometeram fazer parte de mim, mas que, por alguma razão, fugiram inexplicavelmente depois de um tempo de convivência. Desapareceram com a amizade que prometeram sem deixar rastros, forçando um estranhamento, um distanciamento que não parecia natural. Tornando-se estranhos, evitando conversas, fugindo como se eu lhes fosse fazer mal. Nunca entendi o que os impulsionava a fazer isso... o que há em mim de tão asqueroso para que fujam dessa maneira? Jamais saberei, pois os cretinos insistem em partir sem deixar respostas. Aproximam-se oferecendo uma mão para nos retirar do vago e quase infeliz (mas confortável) mundo de nossa solidão. Apresentam-nos as maravilhas exuberantes de uma promessa de amizade, um universo onde peculiaridades podem ser divididas, onde haja entendimento e dúvidas em comum e uma pulsante sensação de estar vivo nos preenche o respirar. E depois partem, sumariamente, deixando-nos para trás, sem saber o porquê...

E como é infeliz voltar à caverna depois de ter conhecido os bosques... os frutos... É uma dolorida sensação de um faltar algo. Algo que não podemos preencher sozinhos. O fracasso. Dá-nos uma sensação de impotência isso de depender da boa vontade alheia para ter amigos. É como se dependêssemos da caridade dos outros, implorando para que nos olhem, que nos gostem... ser aceito, estar na roda, ser normal. Lembro-me de todos os que prometeram o paraíso e partiram antes da hora. Era sempre igual. Aproximavam-se dizendo que veneravam minha particular noção de mundo, diziam que eu era diferente dos demais, especial... mas bastava que conhecessem o sabor dos louros da vida social, bastava que fizessem outros amigos (geralmente aqueles que me olhavam torto e espalhavam boatos maldosos a meu respeito) para que se afastassem. E, dentro de pouco tempo, estavam me dirigindo a mesma maledicência... os mesmos comentários, a mesma crueldade... como se nunca tivéssemos dividido uma palavra, como se minha vida fosse invisível. 

E partiam sem me dizer uma palavra, um porque.... deixando-me a buscar sozinho pelas razoes do meu fracasso. Deixando ao meu senso critico o fardo de me apontar os defeitos. E como podemos ser cruéis conosco nessas situações! Indecisos sobre para que direção apontar, meus dedos acusadores decidiam atirar-se para todas as direções: meu cabelo que é esquisito, o corpo magro demais, o rosto assimétrico. A voz que não é bonita, o jeito de gesticular, as roupas que visto... onde está a resposta? Onde está a solução? Malditos os que passam por nossa vida erguendo duvidas para as quais não estão dispostos a oferecer respostas! Melhor que nunca tivessem existido! Essas pessoas são como catástrofes naturais, que passam para destruir tudo e nos mostrar como estava bem a vida antes deles. Partem deixando destroços que tempo algum poderá retirar. Enchem de entulho meu coração. Não sei por qual razão me lembrei de tudo isso agora. Parei diante de uma banca de revista, busquei alguns trocados no bolso ( minha tia tinha separado um dinheiro para que eu pudesse viajar. Não era muito, mas eu sabia que era mais do que ela poderia dar) para comprar uma revista qualquer. A revista não importava. O que queria era trocar uma palavra com o atendente. Qualquer coisa informal, existir para alguém, nem que fosse por um simples “obrigado”.

O homem de meia idade me sorriu, trocou meias palavras sobre o tempo, agradeceu pela compra. Por isso sempre desejei um desses empregos, ser uma dessas pessoas funcionais e quase invisíveis... eles são como pequenas ilhas de aconchego na multidão. Uma pequena resistência de humanidade no mundo civilizado... ninguém entenderia, apenas os solitários que dependem desses pequenos olhares, desses pequenos “obrigados” para se sentirem vivos, para saber que são alguém... Olho para o relógio. Talvez seja hora de voltar para casa. Meu peito dói. Sinto-me como um pássaro a voltar para a gaiola. Fingir, dissimular, rir das piadas, fingir estar à vontade. Evitar mostrar qualquer sinal de descontentamento para não ouvir um: “Ah, mas de novo com essa cara feia? Você nunca está bem! Mas como você é chato, nada está bom para você! Lá vem o Flavius se fazendo de coitadinho de novo!”... Estar em sociedade às vezes nos faz nos sentir mais sozinhos...

...

“-Aí está você! O que foi comprar? – perguntei quando ele entrou.

Flavius estava com um ar triste, alheio. Levantou com uma das mãos uma revista. Nem olhei a capa. Conhecia esse olhar. Ele estava na caverna! Uma raiva dilacerante me subia o peito quando ele ficava assim. É horrível quando alguém se tranca dentro de si e te deixa de fora, sem saber o que está acontecendo! Sem saber como agir!

—Seu amorzinho está aí. – eu disse – Lá na varanda. Está bonito, deu uma encorpada. Você vai gostar de ver.

Ele me soltou um olhar de ódio, daqueles que ele fazia geralmente antes de pular em cima de mim. Eu passei o braço por cima do seu pescoço e fui levando até a sacada. Abri a porta e disse:

—Tchã-rã! Aqui está ele! O grande Flavius! Aplausos senhoras e senhores ao jovem que leva duas horas para comprar uma revista! Diga senhor Flavius, por acaso os ares da capital confundiram o funcionamento de sua cabeça ou você estava a inventar uma desculpa para ficar longe de todos nós?

Ele passou o braço pela minha cintura e disse:

—Em verdade gosto mais da segunda opção, Senhor Francisco. (ele sabia que eu odiava ser chamado pelo primeiro nome) Mas as regras da boa etiqueta me obrigam a dizer que demorei a encontrar a revista que queria. Mesmo que ainda nem tenha observado dignamente sua capa!

Natasha, Michel, Felipe e Artur nos encaravam com uma expressão de paisagem enquanto eu e Flavius nos olhávamos com aquela cara de: estamos nos enfrentando, mas ainda numa competição amigável:

—Que interessante, meu senhor! Mas a pergunta que não quer calar é: se nos acompanhou até essa cidade sem estar convicto de que gostaria da nossa presença, por que o fez?

—Porque quero ver você tropeçar e se estrebuchar no chão no dia da sua apresentação.

Ele disse num xeque mate incontestável. Natasha soltou uma gargalhada daquelas indiscretas que só ela sabia fazer. Colocou uma das mãos no joelho do Artur e disse:

—Está vendo porque tenho medo de namorar? O dia em que eu e você chegarmos a esse ponto, por favor, avise pra mim cair fora!

Eu apertei a mão de Flavius e disse:

—Muito bem, essa você venceu cowboy.

—Obrigado, senhoras e senhores. Depois dessa vitória triunfante vou até a cozinha pegar algo para comer.

—Eu vou com você. – disse Felipe – Tem um sanduiche que eu deixei pra ti no forno, vou te mostrar onde está.

Eu me sentei no lugar em que Felipe estava. Natasha ficou me olhando:

—Se eu fosse você eu ia atrás.

—Por que? Por causa do Felipe? Aff Natasha, ele pode até estar interessado no Flavius, mas que dia que o Flavius vai se interessar por ele?

—Você quem sabe...

—E então, sobre o que estavam conversando?

—Sobre a capital. – disse Artur – Estamos tentando convencer essa cabeça dura a se mudar para cá. – apertou o nariz da Natasha.

Eu particularmente não estava acostumado a presenciar Natasha protagonizando essas cenas de amorzinho. Sempre tive dela uma visão tão firme, dura que é difícil aceitar que ela é uma humana carente de carinho como qualquer outro. Chegava a me incomodar. Natasha era o tipo de pessoa que me fazia ter esperanças de um dia ser imune a isso... mas hoje vejo que não. Somos todos iguais. Não sabia exatamente o que responder a essa provocação. Não gostava nada da ideia de me separar dela, mas como dizer que ela não deveria se mudar para cá se eu mesmo esboçava, vez ou outra, essa vontade? Mas para mim era complicado, eu tinha o Flavius, a casa. Querendo ou não eu gastei um bom dinheiro naquela casa, e não queria deixar ela pra trás assim. Além do mais me mudar daria um trabalho da porra. Arrumar frete, mandar desocupar um dos apartamentos que herdei do meu tio (pois estavam todos alugados)... e tinha também o meu pai... ele morava aqui. E não sei até onde ele me deixaria em paz se vivêssemos na mesma cidade:

—Eu acho uma perda de tempo! O que ela teria pra fazer aqui? – disse brincando – Alvinópolis é muito melhor. Lá tem a padaria do Donizete, tem o bar da Marlene... err... tem a igreja na praça. Não dá pra competir com isso!

—Ahahahaha! Verdade! – disse Michel – Quando me lembro disso quase volto para lá!

—Está vendo! Alvinópolis é a pequena amostra do paraíso na terra!

—Pra mim quase não faz diferença. – disse Natasha – Eu nunca saio de casa.

—Essa gatinha manhosa. Preguiçoooosa. Vamos dar um jeito nisso quando você se mudar pra cá.

—SE eu  me mudar pra cá. – ela disse.

Eu comecei a sentir certo enjoo. Olhei para Michel e disse:

—E você? Onde está seu namoradinho?

—Que namoradinho?

—Sei lá. Você disse que tinha um.

—Disse nada.

Droga. Pensei que o encontraria namorando! Mas enfim, no fundo não faz diferença. Eu e Flavius estamos em um porto mais seguro agora. Não preciso me sentir ameaçado por qualquer presença de Michel. Mas, ainda assim, senti meu corpo vibrar, uma total ansiedade tomar conta de mim:

—Vou ensaiar. – disse me levantando – Afinal de contas faltam só dois dias!”

...

 

De noite fomos até o teatro. Espantou-me ver quantas pessoas Fip conhecia! Estava tão acostumado a vê-lo em Alvinópolis sozinho que nem tinha me dado conta disso. Fip é extremamente sociável, faz amizade aonde quer que vá. Até mesmo em Alvinópolis ele tem a simpatia de todas aquelas velhinhas fofoqueiras! Por que na capital haveria de ser diferente? Mas o fato é que perceber isso me deu certa insegurança. Ele tinha muitos amigos bonitos, bailarinos, corpos perfeitos, cabelinhos arrumados pelas mamães, roupas de marca, conversa metida a intelectual. Faziam comentários sagazes, maldosos, e os olhos de Fip brilhavam como se estivessem em chamas!

De repente ele se pareceu com todos aqueles mauricinhos da escola que eu odiava! Aqueles meninos populares que se usam de maldade para ascender socialmente. Foi um tanto incomodo, mas eu tentei deixar passar. Era a noite dele. Um dia de se lembrar quem ele realmente era:

—E como está a vida em... como é o nome da cidade?

—Alvinópolis.

—Ahahahahahahahahaha! E como é lá? Tem rede elétrica?

—Quase!

Fip ria da cidade com seus amigos da capital, como se fossemos todos macacos perdidos no meio da floresta. É verdade que nunca gostei de Alvinópolis, mas ver todos aqueles estranhos ridicularizando minha cidade me soou agressivo:

—E quem é esse? – disse um menino me olhando de cima para baixo – É um nativo de lá?

—Ahahahaha é. – disse Fip – O nome dele é...

—Sei me apresentar sozinho. – eu disse – Meu nome é Flavius.

—Flavio?

—FlaviUS.

—Aaahh, Fla-vi-uuuus. – disse o menino num tom de deboche. Fip soltou uma risadinha daquelas que damos não por achar graça, mas para nos enturmar.

—É, Flavius. Difícil demais para um garoto da capital pronunciar?

—Não. Só é incomum.

—Engraçado, pensei que as pessoas da capital fossem mais acostumadas a conviver com o exótico. Mas pelo visto são tão caipiras quanto qualquer outro.

—Ui. É afiada a língua desse nativo, hein Fip? – disse o menino – Mas também né? Pra ficar com você não podia ser diferente. – apertou a bochecha dele – Venha, vamos entrar! Já esteve em um teatro antes FlaviÚS?

—Depende. Tenho considerado essa conversa uma grande tragicomédia teatral.

—Ahahahahaha. Ele é ótimo. – disse apontando pra mim como se apontasse pra uma girafa no zoológico.

Entramos:

—Você podia se esforçar em ser um pouco mais simpático. – cochichou Fip no meu ouvido.

—Nem morto que eu vou abaixar minha cabeça pra esses pretenciosos engomadinhos.

Ele soltou uma gargalhada e passou o braço pelos meus ombros (me incomodou que ele fizesse aquilo em publico):

—Esse é o meu menino!

—Espero que você se saia muito bem nessa apresentação. Pra esfregar na cara desses filhos da puta que você é o melhor!

—Pode ter certeza que farei isso!

...


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