Oitava Fileira: Spin-offs escrita por Nanda Vladstav


Capítulo 2
Humpty Dumpty: Parte um


Notas iniciais do capítulo

Como o título já anuncia, essa história é feita de muitos pedaços, e conta o que acontecia com algumas pessoas enquanto a história principal de Oitava Fileira se desenrolava.

Recomendo bastante ler Oitava Fileira antes, pra entender tudo que acontece antes e durante essa história. A primeira parte acontece após o capítulo 19: Fantasmas e Sombras, após a captura de Odin por Nero.



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— Não gosto do seu olhar. 

Odin fora arrastado, xingado e torturado por horas, e mantivera a postura. Era um filho da Lua, e não permitiria que Nero ou qualquer coisa lhe roubasse uma morte digna. 

Tinha um sorriso satisfeito, apesar da dor lancinante nas mãos — pelo menos, no que sobrara delas. Ele e Leviatã foram atacados pelo Povo das Sombras, e em pânico, o dragão o derrubara e fugira. Levi ficaria bem, assim que se acalmasse usaria da própria magia e voltaria pra casa. Com um pouco de sorte, Fred ficaria melhor (Ramona era uma curadora excepcional), e a raiva ajudaria Viviane a esquecê-lo mais depressa.

Nem dos dois idiotas sentia alguma raiva agora. Como, em nome de tudo que é mais sagrado, eles conseguiam permanecer vivos fazendo tanta burrice? Não aprenderam nada com ele? Nunca se devia subestimar um oponente, por menor, mais exausto ou humilhado que fosse. O único inimigo em que você pode confiar é o morto (e nem todos os tipos de mortos, fique claro)

Quando soube por Bóris, Nina e Leora que os dois imbecis deixaram um exército inteiro de pessoas armadas e ressentidas na sua retaguarda, entre eles o maníaco do Bianconero, soube que precisava interferir mais uma vez e tirar o aprendiz de demônio do rastro de Cássio e Mauro. 

Viviane foi contra. As coisas já não estavam bem desde aquele desastre com os Grimild, e ele insistir em sair daquela forma foi um último insulto para sua esposa. Discutiram, e depois de algumas palavras ferinas e quase gritar o que pensava sobre suas faculdades mentais, ela encerrara a discussão informando que se fosse embora, não deveria voltar. 

Damas da Luz e das Trevas, se vivesse mais um século ainda não esqueceria a expressão magoada de Viviane ao vê-lo partir. 

— Traga minha faca, tenente. Vou arrancar a arrogância desse filho duma porca. 

Fred e Marina o flagraram seguindo para o covil de Leviatã, e apesar de seus conselhos, decidiram ajudá-lo a diminuir a ameaça ao Cássio e Mauro. Então havia dias em que os três se desdobravam entre o cuidado com os gêmeos e atacar as tropas dos Filhos da Tormenta, num esquema de guerrilha que envolvia um uso exaustivo do lápis mágico, robôs improvisados e um terror constante causado por Tupã, seu melhor rifle, e pelo sopro de dragão de Leviatã. 

Também acionara cada contato seu naquele mundo, e apenas algumas horas antes lembrara ao covarde do Cyber a quem ele devia o portal para Tobor. O filho da puta genial seria útil tempo suficiente, pois mesmo ele levaria algumas horas para descobrir que Odin não poderia mais cumprir suas ameaças. 

Teria funcionado, insistia imerso na dor. Teria causado tantas baixas que não haveria uma tropa ou um general louco pra atacar aqueles dois, se não tivesse ocorrido a explosão. 

Não conseguia entender como o Fred lutava numa guerra e acabara acidentado daquela forma em casa. Graças às Damas, a oficina era longe da cabana, assim os pequenos ficaram apenas assustados. Tivesse ferido seus netos, seu filho nunca se perdoaria se… Quando acordasse, corrigiu-se. 

Suspirou quando viu o Nero girar a faca calmamente sobre uma tocha, até o metal avermelhar e estalar com o calor. Nunca entendeu a graça que alguns viam na tortura, mas mesmo ele fechou os olhos quando viu o brilho sinistro  e o sorriso ainda pior de Nero se aproximarem do seu rosto, além das mãos firmes que seguraram sua cabeça no lugar. 

— Não está tão confiante agora, não é? Não se preocupe, ainda vai piorar muito antes do fim, prometo. Pretendo me vingar de todos os soldados mortos essa noite antes de sair pra queimar seus chefes, aquele traidor do sangue e o mago vira-lata. 

A dor era intolerável, absoluta, muito além do que Luca pensava ser capaz de sentir. Cerrara os dentes com tanta força que podia sentir o sangue, com certeza quebrara alguns deles. 

— O que foi? Por que não está mais sorrindo? — Era clara demais a satisfação no aprendiz de demônio. Em seguida, mais ríspido — Queimem. Quero a caveira dele pra jogar aos pés do irmão de Lady Shih. 

Não podia envergonhar a si mesmo e Viviane no último momento, repetia, a consciência se desfazendo como espuma do mar. Só um pouco mais, não daria a Eduardo o prazer de ouvi-lo gemer.

Só um pouco mais, repetia e repetia. Tensionou-se involuntariamente ao aperto de mãos que o erguiam e prendiam num poste. Uma vez Mauro lhe explicou que quando a dor é severa demais, o cérebro para de funcionar muito antes de morrer. Lua crescente, que ele esteja certo, rezava, sentindo o cheiro nauseante do óleo jogado em cima dele.

Então veio a música, e soava como a voz de Ramona. Não esperava lembrar daquela tarde ali, no fundo do inferno, porém não gastaria energia questionando. 

E, por todas as Damas, se podia escolher ele escolheria pensar naquela tarde de outono, ao lado de Viviane e vendo a filha cantar feliz no meio da horta, a música mansa e tão simples: 

“Todo dia o sol levanta, e a gente canta o sol de todo dia.

Fim da tarde a terra cora, e a gente chora porque finda a tarde...”

O sol continuaria a nascer, o mundo a girar, todos ficariam bem. Luca e Odin — duas faces da mesma moeda — assim como Nero e seus homens, eram ecos de um mundo fadado a desaparecer quando a civilização retomasse seu lugar. 

“Quando a noite a lua man... A Lua... mansa... a...”

Estava inconsciente quando os gritos começaram, e se estivesse acordado, não se importaria com isso. Ou com os disparos, ou o pânico. Nem mesmo com o rosnado inconfundível de um dragão devastando o acampamento.

A fera gigantesca parou diante da pira, apenas os estalos do acampamento ardendo e os gemidos dos moribundos ao redor, e encarou o homem a seus pés, coberto de óleo. Uma fagulha, e ele incendiaria como uma pilha de gravetos. 

Então foi com muito cuidado que partiu as amarras com os dentes. Virou o corpo — não era maior em suas patas que um gato para um humano — e viu as mãos, os hematomas e o sangue escorrendo pelo rosto, como se desmaiado ele se permitisse chorar a própria miséria. O segurou entre as garras com uma delicadeza impossível e alçou voo.


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Notas finais do capítulo

"Humpty Dumpty sentou-se em um muro
Humpty Dumpty caiu no chão duro
E todos os cavalos e homens do rei
Não conseguiram juntá-lo outra vez"
(canção popular inglesa)

A música que se repete é uma das favoritas de Ramona: Canto do povo de um lugar, de Caetano Veloso. Recomendo.

A todos, muito obrigada e até o próximo capítulo.



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