Oitava Fileira: Spin-offs escrita por Nanda Vladstav


Capítulo 1
Wheelbreaker


Notas iniciais do capítulo

One-shot que acontece no meio do último capítulo de Oitava Fileira.



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Cássio não parecia desconfortável com o silêncio. Nem sabia há quanto tempo estavam lá, sentados na varanda, o ciborgue fazendo companhia enquanto ele lidava com a culpa e a vergonha mais uma vez.

Não precisava olhar pra ver os resultados do seu descontrole: o pescoço doía da imobilização que levara, e os ferimentos no ombro do Cas ainda cheiravam a sangue e álcool. O javali continuava sarando tão depressa que era quase um milagre, mas não era desculpa. Ele ainda sentia dor normalmente, e o Mauro queria cavar um buraco e não sair de lá nunca mais.

Tinha se transformado num urso pardo dormindo. De novo. Acordara urrando e destruindo o quarto, tentando lutar contra os pesadelos. Dessa vez, destruíra a cama, seu último pijama e o ombro esquerdo do Cássio, agora enrolado numa tipoia.

Conseguira confessar que tinha pesadelos, não o quanto o desesperavam noite após noite. Não que em todos eles, assistia o homem ao seu lado — que às vezes tinha um rosto de metal, às vezes um topete, e mesmo em alguns sonhos um rosto oriental muito mais velho — Morrendo de novo. E de novo. E outra vez, até acordar.

Depois simplesmente não conseguia relaxar até ter certeza que o imbecil de lata estava bem, e era ouvindo os barulhos que ele fazia ao dormir que conseguia fechar os olhos novamente. 

Pra começar tudo outra vez. Então acabava se transformando e dormindo a seus pés, ouvindo seu respirar e garantindo que nada poderia atingi-lo sem passar por Mauro antes. Exatamente como o cachorro idiota que era.

Agora — como se as coisas precisassem piorar — Seu inconsciente estava reagindo ao estresse, se transformando em algo menos frágil pra se proteger. Graças a isso, agora ele e o ciborgue idiota dormiram num colchão arrebentado e numa cama em ruínas outra vez.

Pediu desculpas e prometeu fazer mais alguma coisa a respeito pela centésima vez aquela semana, e o idiota simplesmente o carregou e abraçou e falou bobagens até ele conseguir dormir. Cássio não iria embora, sabia disso. Ficaria e o ajudaria, e já não sentia nenhuma gota de raiva pela bola de pelos instável e com sérios problemas mentais ao seu lado.

E, por todas as coisas sagradas do mundo, isso era o pior de tudo.

“Como você consegue, Cas?” pensou, deprimido.

O ciborgue virou pra ele, sem entender. Foi ainda mais difícil tentar explicar “Todas as vezes que você precisou eu fiquei feliz em ajudar. Feliz pra cacete com o quanto confiava em mim, mas caralho, você fazia parecer fácil.

Era assustador precisar tanto de ajuda. Num mundo que não perdoava a fraqueza, não conseguir sozinho era pior que apavorante. Mesmo que agora dependesse do Cássio — e não havia ninguém em quem confiasse mais na sua vida inteira — necessitar de outra pessoa pra conseguir controlar sua mente, ou simplesmente dormir era... Medonho. Tenebroso. Humilhante.

Não conseguiria imaginar como foram todos aqueles anos pro Cas, desde o ataque do Garm até aqueles filhos da puta com o lança-granadas, em que precisava do Mauro pra fazer algumas coisas básicas. Não fazia ideia como o Luca fora capaz de esperá-los, dia após dia, sem ficar louco.

Quando aquele javali imbecil deixou de lado que eles estavam lutando como animais minutos antes e que pareciam repetir os mesmos padrões outra e outra vez...

Não. Eles não estavam repetindo. Mauro estava. Cássio direcionou a raiva, ignorou seu drama e lhe deu exatamente o que precisava. A porra de abrigo necessária pra dormir mais de uma hora inteira sem gritar como um porco moribundo, e o espaço que precisava pra entender a cagada que continuava fazendo com a própria vida.

(Além de não dar os merecidos tapas por ser um cachorro dramático incapaz de lidar com os próprios problemas)

E ainda não conseguia ficar confortável dependendo do estúpido javali metálico, o amigo mais leal e confiável que já tivera na vida. Puta que pariu, Mauro era o animal mais imbecil da história dos imbecis.

— Eu... não sei como fazer isso — admitiu numa voz derrotada.

— Sei disso. Você é um bosta cuidando de si mesmo. Não precisava me mostrar tudo aquilo.

Espera, ele estava mostrando?

— Ou acabei de virar psíquico — bufou, irônico. — Mauro, você me pediu ajuda. E ainda está assim.

Ele falava como se pedir ajuda fosse grande coisa.— Assim como? 

Olhou pra si. Tinha assumido a forma de um cãozinho Shiba, nos braços do Cas, e por algumas horas gloriosas dormiu sem sonhar, até o hábito acordá-lo com os pássaros pela manhã.

— Você nunca se transformou em algo tão pequeno. E não lembro de você pedir ajuda a qualquer um de nós antes.

— Sua memória é uma merda.

— Eu me lembraria disso, lobinho. Seria como esquecer aquela noite das estrelas cadentes, ou quando a Ma fez aquela carne assada pra gente, na casa dela. Ou quando o começo do inverno pegou a gente na Rússia, lembra?

Mauro quase sorriu, a língua de fora. — Acho que nunca senti tanto frio. E eu era um urso polar.

— Eu pensei que minha prótese fosse quebrar. E depois que eu iria precisar de outra, porque meu pé simplesmente iria ficar preto e cair. — Roncou uma risada curta.

— O fato é que você me conhece. Sabe tudo de ruim que já fiz, minhas merdas, minha raiva. E eu conheço você, lobinho burro. Você não pedia ajuda. Você não se transformava em nada mais frágil que um rottweiler com esteroides. E olha agora, um cãozinho quase do tamanho de um coelho.

— Não exagera, Cas.

— Você também está mudando, Mau. Bem devagar. Tenha um pouco da paciência que gasta comigo com você mesmo, ok?

— Eu...Vou tentar.

Cássio respondeu com um sorriso tranquilo cada vez mais comum. Poderia se acostumar com aquilo.

O que não se acostumaria nunca era com ele o carregando pra lá e pra cá como uma bolsa. Desviou-se uma ou duas vezes, e como podia ser tão complicado não ser pego por um cara cego com uma mão só?

— Ok, ok, vamos entrar, mas para com essa merda! Não sou uma porra de cachorrinho de madame, e só vou ser carregado se não puder andar ou morto, entendeu?

— Entendido, Hachiko.

— Hachiko era um Akita, sua anta.

— Tudo bem, mini-Hachiko.

Argh! Você é impossível!

Não estava tudo bem. Não estaria, por um longo tempo. Podia ouvir a insegurança na voz do lobo, ele não fingia mais como antes. Mauro se acostumara com todo o peso do mundo nas costas, e não sabia que podia largar, ou como fazê-lo. Puta merda, aquele lobo tinha muita força pra sobreviver a tudo aquilo inteiro. Só não sabia disso ainda.

Quando o Mau mudava de forma, ele parecia tão mais relaxado, mais... não sabia explicar. Era como se não fosse apenas o exterior mudando, mas como se ele assumisse as melhores características do animal que imitava. E aquela forma… tão pequena, tão vulnerável, se aninhando ao seu lado, arisco e confiante como…

Ah. Por que esperava por palavras de um animal? Se tudo que precisava saber estava ali, na menor forma que já o vira assumir, o focinho roçando na barba. 

“Mau?”

Tarde demais. Ele estava dormindo. 

FIM


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Notas finais do capítulo

* Akita e Shiba são duas raças de cães japoneses. Hachiko ficou muito famoso no filme "Sempre ao seu lado". O Shiba tem uma aparência semelhante, mas muito menor. Parece mesmo um "mini-Hachiko", rs.

A todos que leram, mais uma vez obrigada, e espero vê-los semana que vem.



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