A Contenda Divina escrita por Annonnimous J


Capítulo 8
Via Láctea




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Mariah ia pisando duro enquanto seguia Shura, eles estavam nesse impasse silencioso desde que terminaram a luta contra Ártemis já a boas horas atrás. Shura ensaiara mentalmente várias aproximações para quebrar o gelo com a garota, mas nenhuma delas parecia se encaixar com a situação, se mantendo assim calado a maior parte do tempo.

A garota, por outro lado, apesar de também calada se mantinha pensativa em tudo que havia acontecendo, estava sem dúvidas magoada com Shura e também se sentia traída por ele mesmo entendendo que ele tinha razão em tentar colocar aquela abordagem, mas além de ter sido usada como isca, o que irritava a garota profundamente foi sua falta de ação contra sua inimiga. Por horas na noite passada passara ensaiando a coragem para atacar inimigos de incontáveis maneiras diferentes, com e sem a ajuda do homem, com e sem a adaga em suas mãos, até replicara em sua mente finalizações furtivas de games que jogava substituindo o personagem principal por ela mesma, mas no fim das contas de nada isso adiantou, quando o perigo finalmente se fez presente para a garota, ela simplesmente se acovardou, sendo incapaz sequer de segurar corretamente sua adaga que tremulava como a cauda de um peixe.

Mariah olhava para suas mãos agora arranhadas por se esgueirar na relva, mas na verdade ela olhava através delas, olhava uma grande cortina pesada com sombras projetadas vindas do outro lado. Por elas, ela via seu futuro nebuloso e incerto passando diante dos seus olhos e mudando antes que ela pudesse assimilar qualquer coisa das sombras que dançavam diante de si, tudo que ela podia pensar é que se deixasse que o medo a tomasse uma próxima vez, talvez não viva para contar a história.

 As horas passaram silenciosas enquanto os dois se esgueiravam. Quando finalmente chegaram à clareira que o homem mencionara, o céu passava de seu tom alaranjado para uma cor escura e azulada, salpicada por pequenos pontos brancos espalhados graciosamente por todo o manto da noite até que onde as árvores permitiam ver.

— Melhor passarmos a noite aqui – diz Shura, não esperando que a garota respondesse.

— Tem razão – ela diz quase que em um sussurro.

— Aquele parece um bom lugar – o homem aponta e Mariah segue com o olhar seu indicador em riste.

Shura apontava para uma árvore enorme que tombara sobre as outras e fora sustentada por uma rocha que se erguia dor chão, na base do tronco que parecia arrancado pela força do vento se fizera um protótipo de caverna com as raízes apontando para o centro da clareira e um grande buraco de decomposição indo árvore a dentro, mesmo assim ela mantinha folhas verdes e uma forma formosa. Em silêncio, eles andam ao largo da clareira até se encontrarem com a árvore depois de uns bons minutos, nada parecia os seguir ou se espreitar.

— Vai nos servir bem assim que pegarmos umas lenhas para a fogueira – diz Shura assim que chegam enquanto vasculha o buraco a procura de algum sinal de vida, Mariah observa que ele não tinha tanta dificuldade de ver na escuridão.

— Eu posso ajudar a pegar – diz Mariah, mas o tom de voz a entrega.

— Tudo bem – responde o semideus com os ombros um pouco rijos – eu vou pregar alguns galhos e cascas dessa mesma árvore, você pode descansar.

A jovem dá de ombros e se senta com as costas apoiadas em uma das grossas raízes expostas e olha para o lado oposto de Shura, que hesita por um instante e depois resolve continuar sua missão, sumindo por detrás do tronco. Mariah o observa sumir e solta um suspiro aliviado, apesar de não odiar o homem por completo, ela queria um pouco de tempo para si, precisava digerir aquela situação, mas sua cabeça girava tão rápido quanto os discos de Shura neste momento.

Com a pouca iluminação natural que ainda restava, a garota pôde observar a clareira em que estavam: ela parecia ter pouco mais de trinta metros de diâmetro e um formato mais ou menos circular quase totalmente coberta por árvores tão grandes quanto a que ela usava de abrigo nesse momento, seu solo era em sua maioria exposto apesar de dividir espaço com musgos e uma espécie de grama que avançava desordenadamente, pela copa das árvores dava para ter uma boa visão do céu estrelado sem as luzes da cidade, a via láctea cruzava o céu de forma graciosa, sustentando seus milhões de estrelas aparentemente próximos e criando uma linha linda no céu. Antigamente quando olhava para ela no colo do seu pai, ele contava a história sobre sua criação, em que Hércules era posto para se alimentar nos seios de Hera e quando essa acordava, o tirando com truculência de seus seios, fazia o leite jorrar pelos céus e assim criava o rastro que vemos. Naquela época ela achava essa história boba e absurda, mas agora que via com seus próprios olhos que alguns desses deuses são reais, ela não podia mais se dar ao luxo de duvidar de nada.

Enquanto observa tudo ao seu redor, Mariah deixa seus pensamentos fluírem com liberdade, mas como temia, muitos deles traziam lembranças ternas de seus pais, amigos, de sua vida no plano humano e aquilo apunhala seu coração mais forte do que qualquer flecha de Ártemis poderia ter feito. Inevitavelmente, as bochechas da garota se tornam úmidas, seus olhos marejados se fecham e ela se encolhe o máximo que pode, escondendo o rosto nos braços apoiados nos joelhos, seu choro é mudo, apenas os soluços são minimamente audíveis, era como se a tristeza que sentia tivesse feito um buraco tão profundo ao seu redor que suas lamúrias não eram capazes de vencê-lo.

Ela fica assim por algum tempo, Shura que acabara de voltar com os braços rodeando um punhado de madeira seca e um pequeno coelho já sem a pele decide apenas observar a garota finalmente desabar por completo, ele sabia que ela só estava aguentando tudo aquilo por sua vontade de voltar para casa, mas depois do que houve hoje a verdade teria vindo a tona. Sem outra alternativa então, ele retoma sua marcha e passa pela garota que se limita a levantar apenas um olho vermelho e marejado para o observar, o que demora pouco tempo, já que ela o esconde nos braços logo depois. Shura finge não ver nada e habilmente cria uma fogueira em formato de cabana um pouco mais a dentro do esconderijo improvisado, com as duas lâminas ele cria uma faísca forte o bastante para fazer as fibras da casca entrarem em combustão de primeira e em questão de segundos o pobre coelho estava cortado e sendo assado. Mariah por outro lado, se mantinha encolhida.

— Venha comer – chama Shura em voz baixa vendo o animal finalmente se tornar mais avermelhado – o coelho já deve estar quase pronto.

Mariah revela o rosto agora um pouco inchado e vermelho e seca as lágrimas que ainda teimavam em descer com as suas mangas antes de se juntar ao homem próximo à fogueira, o calor do fogo era aconchegante e por um instante a garota se sentiu confortável na medida do possível. Ela estende a mão e pega a coxa do animal que estava atravessada em um espeto fino, ela já tinha uma cor chamativa e apetitosa.

— Tá um pouco sem sal – ela diz sem animação, com a boca ainda cheia.

— Tem razão, mas se estiver muito ruim podemos procurar algo amanhã.

— Não, tudo bem – ela responde comendo outro pedaço da coxa, ela sopra a fumaça que se formava em sua boca logo depois de rasgar os músculos com os dentes – tá bom assim, obrigada.

— De nada – ele responde olhando para ela com um olhar de interrogação.

Ele mesmo pega um pedaço e leva até a boca, Mariah o observa de soslaio enquanto o lobo abocanha uma das outras coxas com uma mordida só. No fundo Shura esperava que ela comentasse algo sobre o lobo em sua máscara, mas seus comentários, se é que existiam, ficaram em sua cabeça.

O homem pigarreia, sem jeito.

— Eu sei que está brava comigo por eu não ter te avisado sobre meus planos, mas quero que saiba que foi algo necessário. – Shura fala com um tom que ele queria que fosse político, mas que acaba soando como arrogante.

— Você já disse isso. – Ela responde friamente enquanto alcança com a mão outra coxa e joga o pequeno osso e o graveto no interior do fogo ao mesmo tempo, que dança com o novo combustível.

— Mas você ainda não parece resolvida com isso – fala cruzando os braços.

— E eu deveria?

— Você está viva pelo menos, foi o melhor que eu pude fazer no momento.

Ela ri sarcasticamente, deixando o homem enfurecido e confuso.

— Shura, – ela para, como se escolhesse as palavras – se algo desse tipo acontecer de novo, você vai me contar?

— Não aja como se eu tivesse te deixado sem nenhuma ajuda, eu só ganhei tempo para nós dois.

— É, eu suponho que sim. De qualquer modo, obrigada pelo coelho, precisava comer alguma coisa.

— Mariah, eu...

Como se não escutasse, a garota se vira e se encolhe sobre uma casca da árvore que encontrara jogada. O semideus confuso com a súbita mudança de comportamento da jovem, a observa se aninhar de costas para ele e para a fogueira até parar de se mexer, o deixando rangendo os dentes em silêncio.

— Shura – ela o chama subitamente com uma voz levemente trêmula, então continua – poderia me ensinar a usar uma faca amanhã?

— Claro – ele responde sem saber se ela o ouviu ou não, pois vê seu corpo frágil estremecer um pouco e depois relaxar, mantendo um ritmo constante de respiração.

O homem se desvencilha de seu casaco, deixando seu tronco protegido do frio da noite apenas pela camiseta, e o coloca sobre a jovem, que parecia agradecer pelo calor extra se agarrando a uma das abas. Shura a observa por um tempo e depois fita as estrelas, onde uma estrela cadente caía, a observando traçar o céu, ele reflete sobre tudo escorado na árvore.

— Vai ser uma longa semana para ela – ele reflete em um ar sonhador e preocupado.


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