A Contenda Divina escrita por Annonnimous J


Capítulo 23
Entre lâminas e ilusões




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Shura sente o arrependimento lhe percorrer enquanto aterrissa com a nuca logo ao lado de seu adversário desconhecido, que rola para longe mesmo aturdido pelo ataque inesperado. O semideus, ainda sentindo seu corpo dormente, se levanta da maneira mais rápida possível, rolando sobre o tronco e forçando suas coxas doloridas a sustentar seu corpo.

Como se percebesse a presença do outro, Shura se coloca em posição de combate diante dele, que agora o encarava com olhos assassinos.

— Então, você é o lixo que fazia tanto barulho por aqui – diz o homem baixo e de pele retinta, com duas espadas douradas despontando do tronco malhado e nu, coberto apenas por arabescos e redemoinhos de uma tinta escura que parecia engolir a luz ao seu redor. Um brilho diferente faz Shura abaixar a visão para a mão direita do homem, que brilhava em um tom metálico em algumas partes e de couro em outras. Percebendo os movimentos dos olhos e imaginando as sobrancelhas arqueando sob a máscara, o homem ri e fecha o punho de metal.

Vagarosamente, os dois semideuses começam a se movimentar, formando um círculo ao redor das árvores que os separavam, se estudando. A poucos metros dali um silêncio repentino preocupa o semideus de vestes vermelhas, dividindo sua atenção. O outro homem, por sua vez, parecia totalmente concentrado, mas não se dava ao trabalho de tocar suas armas, apenas deixando seus braços casualmente largados ao lado do corpo, como que para tirar a tensão de seu adversário. Sua máscara parecia a mescla de um animal marinho e um homem, mas Shura não conseguia o identificar.

— Diga, Shura – o homem vocifera, sua voz abafada ainda alta – ainda anda com a humana?

Shura sente seu corpo se esquentar e rugir de dor em resposta.

— Não seja ridículo, seja-lá-quem-for, – responde o semideus, invocando seus discos que começam a rodar e zunir – sabe bem das regras.

— Sobre humanos não passarem da barreira, ou... sobre vocês estarem ligados?

A voz, por um segundo, soou atrás de Shura, o suficiente para ele perceber que seu adversário não estava mais lá. O golpe veio na vertical, a lâmina dourada e sinuosa cortou o espaço entre os dois em direção ao pescoço de Shura, mas com um giro preciso do tronco, o disco de metal parou o movimento e o som de metal se chocando preencheu o local quando o ataque foi aparado com inesperada destreza.

— Muito bom – elogiou o inimigo com um passo para trás – vejo que ainda consegue lutar.

— Mais do que imagina – rosnou Shura entre os dentes, sem saber ainda se de ira ou da dor no corpo que irradiava. Ou pelo medo do que o homem falou, ele precisava saber se mais alguém sabia sobre Mariah.

***

O espaço novamente mudou ao redor das duas mulheres. De mãos dadas dessa vez, para que não se separassem na travessia entre a realidade e a ilusão, Eyria projetou uma paisagem diferente e frio cortante atingiu cada centímetro da pele exposta de Mariah, a fazendo se encolher instintivamente.

— Desculpe pirralha, – sussurrou Eyria percebendo o movimento e o leve tremor da garota – a minha ilusão é muito boa.

Tentando afastar a presunção da mulher com um leve sorriso, Mariah olha para o lugar onde se encontram e percebe que não estavam mais na floresta, mas rodeadas por uma neve espessa até a altura dos calcanhares. A sua frente, provavelmente separando elas de Huo, um casebre de madeira e palha parecia sofrer tanto quanto as duas sob o frio congelante. Mais deles pareciam as flanquear de uma forma desordenada e da maioria deles pequenas colunas de fumaça saíam, elas pareciam estar em uma aldeia habitada em algum lugar inóspito e frio, muito frio.

— Onde estamos? – Pergunta a garota, resistindo à vontade de se aninhar na mulher que espreitava na esquina de um dos chalés.

— Estamos – Eyria puxa a garota com a mão, indicando com o queixo assim que sua cabeça desponta da quina do chalé – na mente dela.

Mais à frente, na clareira rodeada pelas cabanas, uma garota brincava de cócoras com algumas crianças, em meio a sorrisos e provocações com pequenas bolas de neve. Mariah não conseguia entender o que falavam, já que além de parecer ser mandarim, era um mandarim arcaico, quase gutural, mas sem dúvidas elas pareciam felizes. Mais pessoas faziam coisas variadas ao redor das crianças: cortavam carne, atiçavam suas fogueiras, afastavam a neve que se acumulava nos telhados precários e entalhavam algo.

Com um pouco de esforço, Mariah reconhece Huo no meio das crianças, ela era a mais baixa entre elas e parecia ser a única garota no pequeno círculo, estava jovial e feliz, como qualquer criança pequena, mas tinha os mesmos olhos negros e as mesmas feições, porém com muito menos músculos.

— Escute bem Mariah, vamos ter apenas uma chance a partir de agora e eu... – Eyria para por um segundo, o gato em sua feição ondula cores entre verde e vermelho – preciso de sua ajuda.

Mariah, ainda saindo de sua contemplação interior de tentar adivinhar em que momento Huo se transformou de uma criança fofa e feliz para uma assassina brutal, passa a prestar atenção na mulher.

— Essa memória é o momento exato em que algo traumático acontece para ela. – Explica a semideusa em um sussurro quente sobre a cabeça da garota, que sem perceber se colocara contra o corpo da mulher assim que ela a chamara – Não há tempo de explicar como isso funciona, mas apenas saiba que eu sinto isso em meu oponente e meu poder consegue recriar tudo de dentro dela, por mais escondido que a memória esteja.

— Nossa... – A garota deixa escapar, como o vapor de sua respiração.

— Eu sei, eu sou incrível, mas o ponto é que isso gasta minhas forças e depois de ser usada como pano de chão, sinto ela começar a se esvair. Então eu vou precisar de toda a ajuda possível.

Mariah se vira para ela com um olhar de quem sente ao mesmo tempo expectativa, medo e surpresa. Como se entendesse isso, Eyria ri baixo, fazendo o gato em sua máscara brilhar e sorrir de maneira divertida.

— Não precisa me olhar assim, sua babá não está aqui, então não espere que eu vá tomar o papel, odeio crianças.

Mariah sente uma alegria diferente a tomar, como se ela finalmente tivesse um objetivo sólido, desde que entrara ali.

— Vê a garota no centro da vila? – Continua a semideusa.

— Ela é Huo criança – atalha Mariah, fazendo uma interjeição de surpresa sair de Eyria.

— Que observadora – ironiza a mulher – a própria. Eu não sei como, quando, ou de que maneira, mas esse é o dia em que ela morre.

Um calafrio percorre Mariah quando ela escuta a última palavra e dessa vez, não era do vento ou do frio.

— Mas ela era muito mais velha, como...

— Eu não sei Mariah.

— Isso é...

— Impossível? – Completa a semideusa, em um tom contemplativo – Eu sei, eu também achei, mas a minha magia é muito antiga, ela não erra, se estamos aqui, é porque ela morre hoje, de alguma forma.

Mariah sentiu novamente o calafrio, a criança que brincava não podia ser Huo, mas ela confiava na mulher de alguma maneira, tinha de confiar. A garota assente, como que para mostrar que prestava atenção, e então Eyria continua.

— Tudo que a gente precisa fazer, é esperar o momento certo e atacar ela sem que ela possa se defender, ela pensa que ainda está nessa memória, não se lembra de nada desse plano superior ou o que acontece no momento seguinte, como se ela o vivesse pela primeira vez.

Um ataque no momento mais vulnerável dentro da mente do oponente, era tão genial quanto cruel.

— Como nós... saberemos o momento certo de atacar? – Pondera a garota, que sente o peito da mulher se tensionar.

— Não sabemos, precisamos contar com a sorte.

Ótimo.

— E ela não vai nos reconhecer?

— Olhe para si.

— Hm? – Pergunta Mariah com uma sobrancelha levantada.

— Olhe para si garota, no sentido literal.

Ainda confusa, Mariah olha para baixo e de onde estava de cócoras, uma roupa quase bege de pele rudimentar cobria seu corpo até os calcanhares. Os pés eram cobertos de uma bota de couro bem amarrada e firme. De sua cabeça, cabelos longos e negros caiam em cascata ao redor de seu rosto e mesmo sem um espelho ali para confirmar, Mariah sabia que não parecia com ela mesma.

— Mas e você? – Pergunta a garota, vendo que Eyria ainda se parecia com Eyria, pelo menos uma versão mais sofrida.

— Bom, aí que vem o plano, eu vou tomar a forma do que for atacar ela, para que ela não perceba que é uma ilusão.

Genial e cruel.

Em algumas palavras, Eyria deu outros detalhes do plano e ele consistia em uma simplicidade inquietante, mas inteligente. Mariah, vestida como uma camponesa, tomaria alguma posição distante de Eyria, para ajudar a observar como tudo ocorreria e no momento certo, caso necessário, ajudaria a semideusa no ataque. Mas primeiro, vinha a parte mais delicada, se distanciar de seu esconderijo seguro.

***

O semideus sentia seus músculos reclamando a cada ataque aparado habilmente pelo inimigo e a cada defesa forte o suficiente apenas para desviar a totalidade da força do golpe do adversário, sobrando para Shura escoriações leves e punhos doloridos. A quietude ainda o incomodava, mas seu foco já estava na batalha que se seguia há alguns minutos.

A princípio, os golpes eram escassos, apenas uma forma de estudar seu oponente, mas a medida em que o homem percebia o cansaço na postura de Shura, eles se tornavam mais brutais, forçando o semideus a desviá-los, já que não tinha forças para aparar todos e precisava do que tivesse para atacar.

— Acho que a batalha o cansou um pouco, semideus. – Rosna o desconhecido a meia distância, depois de um de seus golpes passar ao largo de Shura.

— E eu acho que você fala demais para um semideus sem nome – a frase era claramente uma maneira de reunir informações, mas como se não se importasse, o semideus responde desdenhoso.

— Me chamo Ivanov, o abençoado por Tyr. – Ao ouvir o nome do homem e do deus, Shura retesa o corpo quase imperceptivelmente, mas Ivanov percebe – Surpreso, camarada?

— É que é a primeira vez que eu vejo um viking sem barba.

A risada de escárnio soa alta e o homem se coloca ereto, como que esquecendo da batalha. Mas seu golpe vem como um raio.

Ivanov arremessa a espada quase que sem deixar que Shura desvie, enquanto isso percorre o caminho entre os dois em um salto e gira o braço esquerdo em um arco ascendente assim que aterrissa, obrigando o semideus a usar as duas mãos para desviar o ataque, expondo seu flanco o bastante para que Ivanov o soque com a mão metálica.

O som de metal se chocando contra pele e osso ecoa para dentro da cabeça de Shura enquanto o homem acerta sua têmpora e ele cambaleia para trás, aturdido. Em uma sucessão frenética de golpes, Ivanov alterna entre usar sua mão e a espada, enquanto Shura tenta, inutilmente, evitar pelo menos o fio da arma. O russo continua o atacando, girando a espada e golpeando com o punho nas aberturas de Shura, até que sangue começasse a manchar o metal rústico.

Com uma esquiva precisa, Shura desvia da espada a tempo de evitar que seu pescoço seja separado do corpo, mas seu queixo aterrissa no punho ascendente de Ivanov, que soca o oponente com tanta força que sua cabeça é projetada para trás e ele tem a certeza de ver um dente voando, sem saber se era da máscara ou do semideus.

Shura aterrissa de costas e rola ainda tonto até conseguir se apoiar em uma árvore, para tentar se levantar, mas Ivanov já o alcançara. Com um chute no estômago, Shura cai para frente, tentando recuperar a respiração.

— Esperava mais do homem que derrotou Ártemis. – Diz o russo, mas sem o sotaque óbvio.

— Como você sabe disso... desgraçado? – Sibila Shura entre os dentes, se colocando sobre os cotovelos.

— Ele ainda está vivo, que admirável – brinca o homem, antes de explicar – os boatos correm, ainda mais quando se pode sentir quando um semideus deixa de existir como fumaça.

Shura ainda tentava colocar a cabeça em ordem depois da surra que levara e para ele, essa precisão de dedução era impossível, pelo menos até agora.

— E – Ivanov continua, agora se afastando um pouco, como que para deixar que o adversário respirasse – encontrei seu pequeno campo de batalha um pouco depois de sua luta terminar, segui seus rastros e liguei uma coisa com a outra, observei você e a garota naquela noite na clareira e depois fui embora.

A respiração do semideus era pesada e os cortes ardiam em sua pele, junto com seu queixo, mas ele ainda conseguia se manter em pé.

— Como... por que não nos... atacou?

O russo solta uma risada baixa, quase contemplativa.

— Queria ver como se sairiam, mas tenho que admitir que não esperava que fossem durar tanto, nem que eu iria acabar com os dois, os primeiros a ter essa ligação, até onde eu sei.

— Até onde eu sei... não estou morto.

— Ainda – completa o homem.

Shura escuta algo se mover na mata, galhos se quebram, madeira range e um brilho lhe chama a atenção na visão periférica, mas ele demora muito para distinguir a lâmina, para se defender e a dor o atinge, junto com o calor do sangue.


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