A Contenda Divina escrita por Annonnimous J


Capítulo 12
Eyria, a Abençoada por Éris




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Shura falhava o passo sob o peso de Mariah que sustentava a duras penas. Nesse momento, ele usava toda sua força para curar os múltiplos ferimentos que tinha no corpo depois de ter sido quase esmagado por Ganância. Pelo que tinha contado, tinha quebrado algumas costelas, o pulso e sua carne tinha sido dilacerada em vários lugares.

Enquanto andavam, com certa dificuldade, Eyria via de soslaio a fumaça que saía de por debaixo da roupa do homem, vinda da cura acelerada dos semideuses. A vantagem desse poder era óbvia, a desvantagem é que necessitava de muita concentração e esgotava quem o usasse, o que tornava o poder ineficaz em uma batalha. Sobre seus ombros, ela via a menina desacordada, seus lábios retomaram um pouco da cor, mas ela ainda estava pálida e necessitava de alguns cuidados extras antes que pudesse continuar sua jornada.

“Droga!” Pensava a semideusa “maldito momento em que decidi parar e observar a luta”.

Eyria fitava o pôr do sol que entrava pelas frestas das árvores com certa preocupação no olhar. Mais um dia se passava e ela ainda não chegara ao seu destino final. Como se isso por si só não fosse o bastante, com ela agora iam um semideus em frangalhos que se parecia tão perdido como ela e uma humana que de alguma maneira passou pelo domo que separava esse mundo do plano terreno. O que intrigava mais ainda a mulher, entretanto, era o motivo pelo qual eles estavam lutando juntos.

Mas mais que isso, ela se lembrava de como ele estava prestes a usar o seu trunfo, que seja lá qual for, parecia terrivelmente destrutivo, na verdade, o mais estranho para ela, era que durante todo o tempo em que ela observara a luta entre os dois, ela percebeu que ele parecia hesitar em se utilizar de seu poder, mesmo tendo clara desvantagem. Seria ele um amaldiçoado? Ou era apenas um descuido por achar que Ganância, ou seja lá qual for o nome do rapaz, fosse um semideus fraco? As perguntas se acumulavam em sua cabeça, mas as respostas pareciam distantes.

Shura, por sua vez, cuidava de observar Mariah, seus ombros ficam tensos quando seus olhos descem pelo tronco da garota e param sobre o curativo improvisado de ervas e bandagens de pano que a mulher fizera para estancar a hemorragia. Em sua cabeça, passava o filme do exato momento em que a flecha dourada de Ganância o ignora completamente e ruma para a exata árvore em que Mariah se escondia, depois disso, o grito aterrorizante de dor e medo que irrompeu na floresta, enchendo o ar ao redor de Shura com um gosto amargo e um peso que o paralisava, não era uma sensação desconhecida para ele, mas já havia se esquecido de como era.

Junto com essa cena macabra, vinha também outras milhares, cada uma dotada de uma diferença mínima, como visões de universos paralelos vistas simultaneamente. Em uma ele deduzia de antemão que as setas não eram todas pra ele e se colocava entre a árvore e Ganância, em mais uma ele arremessa o seu disco e desvia a flecha de curso, em outra ele se coloca na frente e é atingido por todas as flechas do garoto, e em todas as visões possíveis a única coisa que não acontecia era o que já havia acontecido com Mariah. Pensando nisso tudo Shura sente seu peito pesado e um nó se formar em sua garganta, a culpa o fazia ficar pior que os ferimentos.

Depois de andarem por um tempo, Eyria anuncia que tinha encontrado uma pequena caverna. Depois de um rápido reconhecimento da caverna e dos arredores, eles se instalam, Mariah, ainda desacordada, foi colocada no chão enrolada no casaco de Shura que a essa altura parecia um queijo suíço, porém o homem sequer sente pesar sobre isso, ele apenas tinha olhos para o ferimento de sua protegida e para o sentimento de fracasso que sentia.

Arrumando um punhado de madeira, ele improvisa com as faíscas do atrito de suas próprias lâminas uma pequena fogueira, capaz de aquecer a garota enquanto ele busca mais gravetos para alimentá-la.

Olhando por cima do ombro, ele vê Eyria agachada do lado de fora da caverna, próxima a uma pequena moita pegando algumas frutas de uma cor azul viva. A observando de longe, seu cabelo negro longo parecia brilhar na cor de sua máscara, contrastando com o brilho de suas vestes, que por si só já eram exuberantes ao mesmo tempo que simples e práticas. Antes que se desse conta, ele já estava a meio caminho da mulher, pensando em interrogá-la.

— Acho melhor ir ajudar a sua protegida, eu estou bem aqui, se é o que você veio perguntar. – diz ela sem se virar.

Shura fica aturdido por um instante com a resposta repentina e ríspida da mulher no momento em que se aproxima, mas cruzando os braços e passando o peso de uma perna para outra, claramente incomodado, ele resolve insistir em um contado verbal.

— Eu vim aqui para que possamos conversar um instante, tem um minuto? – Ele pergunta em tom decidido.

A mulher o olha de baixo para cima por detrás da máscara, sua expressão oculta e a demora para mastigar e cuspir as palavras a conferiam um ar misterioso.

— Entendo, então veio me agradecer? – diz ela em um tom morno continuando a catar as frutas em meio aos galhos retorcidos.

— Não, - Shura diz, em um tom entre o incomodado e o incisivo - quero discutir algumas coisas com você...

— E eu queria que você fosse mais grato, mas não podemos ter tudo que queremos, podemos?

Shura arregala os olhos e a sua mandíbula cai, desarmado pela resposta da mulher ao seu pedido, vendo isso, ela suspira e se levanta com graça e lentamente, limpando a terra dos joelhos e jogando as frutas em uma pequena bolsa que carregava consigo, assim que Eyria a fecha, a bolsa desaparece diante de Shura, que ainda era uma estátua, congelado em uma expressão perdida.

— Mas, – continua ela como se nada tivesse acontecido - me deixou curiosa, o que quer conversar comigo?

— Podemos conversar longe dela? – O rapaz balança a cabeça para Mariah.

— Sabe que ela está desmaiada, não é?

— Sim, é claro, é só que...

— E além do mais se aquele moleque voltar e ataca-la, antes de voltarmos ela já estaria morta.

— Tudo bem então, vamos fazer do seu jeito. – Diz Shura, perdendo paciência.

— Ótimo – ela continua – agora vamos nos sentar ali.

Eyria aponta para um pequeno tronco caído logo ao lado da caverna a meia distância dos dois, longe dos olhos de Mariah e perto o suficiente para intervir caso alguém aparecesse. Os dois caminham em silêncio até lá e se sentam, a mulher deixa seu corpo cair pesadamente sobre o tronco que range em reclamação, como que se estivesse insultada por isso, ela dá um leve soco nele antes de Shura se sentar. Ao contrário da mulher que parecia descontraída, o homem se senta duro e acuado, com as costas levemente curvadas para frente e os cotovelos fincados nas coxas, enquanto olha para frente.

— Podemos continuar. – Ela fala o observando.

— Certo, eu queria falar com você sobre a...

— Espere – ela diz, deixando o homem com uma expressão de interrogação.

— O que?

— Falta algo.

— Falta algo?

— Sim, antes de conversarmos, falta algo.

— Está brincando comigo, mulher? – Ele diz irritado

Eyria se levanta sem falar nada e ruma para a caverna, invocando a pequena bolsa em sua mão com chamas dançantes de um roxo que variava entre o claro e o escuro. Shura cerra os punhos com força o suficiente para os nós de suas mãos ficarem brancos e respira fundo.

— Obrigado por me salvar Eyria, te devo a minha vida.

Girando sobre os calcanhares, a semideusa se vira novamente para Shura, seu andar é triunfante enquanto ela se aproxima, a bolsa novamente some como da primeira vez e ela volta a se sentar ao lado do homem, que a observa com fogo nos olhos verdes brilhantes.

— Agora conversamos. – Eyria diz com um olhar espremido pelas bochechas sob a máscara, mesmo oculto, seu sorriso era de orelha a orelha. O que restou a Shura foi apenas suspirar pesada e profundamente para conter a sua ira interna.

— Bom, – ele começa – gostaria de saber por quê nos ajudou daquela maneira lá atrás.

— Ah – exclama Eyria – isso? Bom, estava esperando uma oportunidade para ver quem perderia e atacar o vencedor.

Os olhos do homem se arregalam em surpresa, como se esperando um ataque da mulher.

— Porém, eu desisti quando vi a menina – ela se apressa a explicar – por algum motivo eu não pude deixar ela simplesmente morrer ali, ela é uma humana afinal de contas, existimos desse modo por causa deles, então achei que seria  minha boa ação do dia.

— Você sabe que ela é uma humana? Como?

A mulher agarra a mão de Shura e antes que ele possa fazer algo, arranca um pequeno pedaço da casca do tronco em que sentavam e faz um corte considerável em toda sua palma, ele a arranca dela instintivamente e encara a mulher, inconformado.

— Não seja um bebê chorão – ela reclama, revirando os olhos – observe, se você se concentrar, consegue curar isso, não consegue?

— Claro – ele responde ainda confuso e massageando a mão que começava a cicatrizar soltando uma quase transparente fumaça branca.

— Agora se coloque nos meus sapatos, vi uma garota a beira de um desmaio ou um ataque choro segurando desesperada a flecha disparada por Ganância e não se curava mesmo longe do combate. Se ela não era uma semideusa, com certeza era uma humana.

A lógica da mulher era impecável, com uma rápida observação da situação ela tinha tido uma dedução cirúrgica como essa e sabe-se lá por que resolveu ajuda-los. Mas ainda havia uma coisa que não se encaixava naquilo tudo.

— Mas por que me salvou então? Não vejo motivos para tanto.

— Como eu disse – ela continua, observando-o massagear com o polegar a palma já sem sinais de corte – eu estava ajudando ela, quando ela desmaiou nos meus braços implorando para que eu te ajudasse, eu resolvi intervir.

— Entendo.

Shura fita o chão, como que buscando forças para o que iria dizer. Eyria, por outro lado, já imaginava o que era, mas duvidava da capacidade do homem de vencer seu orgulho.

— Eyria, eu – ele respira fundo, as palavras parecem grandes demais para sair de sua garganta, mas ele estava determinado – gostaria de saber se poderia nos ajudar até o final da contenda.

— E por que eu faria isso? – ela responde friamente - Na verdade, por quê acha que eu não deveria matar os dois aqui mesmo e seguir adiante na minha jornada até o fim disso como sempre fiz?

O homem sabia que ela tinha razão, mas no fundo ele também sabia que naquele ritmo, nem ele, nem Mariah chegariam em seu destino sem alguma ajuda e a mulher parecia forte o bastante para ajuda-los com isso.

— Porque assim temos mais chances de chegar ao final, andando em duplas, a Mariah tem muita força de vontade, mas ao redor de nós ela não tem a menor chance.

— Você está menosprezando a sua parceira em minha frente e espera que eu me junte a você? – Eyria se inclina para frente, deixando seu rosto ameaçadoramente próximo ao de Shura que se mantinha sólido e decidido – além do mais – continua ela quase sibilando – você foi totalmente derrotado pelo Ganância, como posso esperar ajuda de alguém que eu precisei soltar de uma árvore antes que virasse sopa debaixo daquelas correntes?

A mulher pressiona o indicador contra a pele do peito de Shura através de um dos vários buracos de sua camisa feitas pela corrente, o homem engole em seco as provocações e afasta o dedo cravado em si com um movimento gentil, mas firme de sua mão direita, envolvendo e muito a da mulher apenas tempo suficiente para ela puxá-la violentamente de volta.

— Não acho que tenha motivos o suficiente para se juntar a mim, mas como pode ver não é apenas a minha vida que está em jogo aqui – ele aponta para a caverna – e não pense que eu não percebi você evitando o mesmo inimigo, observando a luta das sombras, atacando pelas costas, afastando ele e depois fugindo comigo e com Mariah.

— O que está insinuando? – A mulher se levanta, ambos os leques aparecem em suas costas em meio a chamas púrpuras tão escuras quanto uma noite densa à meia noite.

— Eu estou insinuando, – ele também se levanta, invocando as lâminas e se colocando a menos de trinta centímetros da mulher, ele era mais alto que ela, quase metade de sua cabeça de diferença, também era mais forte, seus braços largos e peito estufado o faziam parecer intimidador, mas a mulher não recuou um centímetro, ao contrário, se aproximou, com um olhar brilhante e  sua máscara começando a mudar em seu rosto, as cores dançando diante do lobo entalhado de Shura, que observava o gato com os caninos volumosos de fora – que você também não tinha força o suficiente para derrota-lo sozinha e como bem sabe ele não está morto e agora está muito mais irado que antes. Pode me matar aqui mesmo, matar Mariah e seguir o seu rumo, mas sabe que se encontrar o garoto novamente, esses bonitos leques violeta serão parte do arsenal dele como aquele arco, aquele escudo – Shura estremece de leve e seus músculos tensionam com a lembrança da árvore – e a corrente também.

A mulher se espanta, seus olhos outrora brilhantes e fortes vacilam por um momento, olhando para a direita e depois voltando a encarar o homem, seus ombros descem um centímetro enquanto ela digere o que acabara de ouvir.

— Então ele é o tal colecionador...

— Sim – o homem responde se mantendo ereto, mas com o corpo bem menos tenso.

Eyria pondera por um instante, então deixa seu corpo cair pesadamente sobre o tronco que novamente range, mas dessa vez não é castigado pela mulher, absorta pelos seus pensamentos. Por um tempo o homem apenas a observa olhar de um lado para o outro, os olhos semicerrados, quase invisíveis sob a máscara, as mãos com os dedos entrelaçados e os cotovelos apoiados nos joelhos. Em um dos movimentos cabisbaixos de olhos, ela o fita com um olhar indecifrável, depois, abaixa sua visão por todo o corpo do rapaz, o deixando ligeiramente com vergonha. Então, volta a olhá-lo com ferocidade.

— Sente-se, eu não mordo – diz ela com uma voz de deboche – muito – ela completa assim que o rapaz se apoia no banco, o gato sorrindo em escárnio e os braços cruzados.

— Temos um trato? – Pergunta o rapaz sem paciência para outros jogos.

— Apenas por mera conveniência, mas sim, temos um trato. – Ela diz em tom decidido e sério.

— Ótimo.

— Com uma condição – ela o olha nos olhos, saboreando as palavras.

— E qual seria? – Shura estava prestes a desistir daquilo, odiava se sentir encurralado.

— Quero que me fale por que não usou seu trunfo enquanto lutava com ele.

Ele levanta uma sobrancelha em interrogação.

— Não era óbvio? Eu estava acorrentado, não podia me mover, muito menos me concentrar para usá-la.

— Não entendeu a minha pergunta, – ela continua, se aproximando, afim de deixa-lo mais incomodado ainda e assim aberto a respostas, ela conhecia bem o tipo e parecia funcionar – por que não usou o trunfo ANTES de ele te encurralar daquele jeito, você decidiu usá-lo como se fosse um ataque desesperado, quanto todos os outros falhassem.

Shura sente seu corpo congelar, sabia que ela estava certa, mas se perguntava como ela sabia e o mais importante, se deveria contar para alguém que mal conhecera sobre algo tão importante.


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