Fine Young Gentlemen escrita por Lerdog


Capítulo 7
Halloween Detention Club


Notas iniciais do capítulo

Para aqueles que tenham interesse, eu coloco fotos dos intérpretes dos personagens aqui: https://www.wattpad.com/836418253-fine-young-gentlemen-cast

ooooou

Para aqueles que preferirem, eu também publiquei o capítulo com imagens/fotos em pdf, neste link: https://drive.google.com/drive/folders/1IZcqVARlVN4rj4RmZRPUibA-wlhlgfU1



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/786887/chapter/7

Rainfort, Connecticut, Estados Unidos. Outubro de 2020.

Eu fui o último a sair da piscina, somente quando estava completamente sem fôlego. Assim que ergui o meu corpo pra fora da água, caí de costas, exausto. O teto de vidro me permitia ver que já era o começo da noite. Toda a estrutura daquele lugar era semelhante às outras áreas da escola que não tinham uma aparência vitoriana: moderna e com todos os detalhes na cor preta. Fechei os olhos por alguns segundos, a conversa dos outros garotos ao meu redor ecoando no ambiente amplo.

Quando eu abri os olhos, Beckett estava com o rosto diante do meu.

— Boo!

Franzi o cenho e me sentei. Meu irmão se sentou do meu lado. Eu percebi quando ele fez o movimento pra me jogar de volta na piscina, mas eu fui mais rápido do que ele e me levantei. Beckett fez uma expressão frustrada.

— Você é muito sem graça.

Dei com os ombros. Os garotos estavam todos espalhados ao redor da piscina, aguardando uns minutos antes de irmos para os vestiários. Eu não sabia porque o mister Strong nos fazia esperar, mas nós obedecíamos. O professor estava de pé em um canto, anotando alguma coisa em uma prancheta.

Olhei para o meu irmão, parado com as mãos na cintura. A única coisa que diferenciava os nossos corpos era uma pequena tatuagem estúpida que ele tinha no abdômen. Aquela tatuagem tinha sido uma aposta com uns amigos imbecis dele da época do middle school, e o nosso pai não sabia sobre ela mesmo depois de vários anos.

Meu irmão costumava fazer muitas coisas estúpidas, desde quando éramos pequenos. Durante a nossa infância, eu o considerava o meu herói, e tentava imitá-lo em tudo. Mas lenta e progressivamente eu comecei a perceber que todos os atos de heroísmo e rebeldia de Beckett resultavam em punições. E então eu abandonei completamente aquela ideia, me esforçando para me tornar o completo oposto do meu irmão. Enquanto ele era o filho problema, eu era o filho de ouro. Logo, porém, ficou claro que Beckett não conseguia suportar as pressões que vinham da comparação entre nós. Em seguida vieram as drogas e as recaídas. E foi aí que eu comecei a reduzir as minhas conquistas, buscando ao máximo evitar que o meu irmão tivesse muito com o que competir.

— Pro chuveiro, já! — O mister Strong ordenou, apitando em seguida.

Todos os garotos seguiram até os chuveiros em diferentes velocidades e níveis de empolgação. Olhei para trás e notei que o garoto chamado Lysander Yang andava devagar, esfregando os braços como se estivesse com frio. Ele sempre fazia aquilo, esperando boa parte dos meninos terem saído para ele entrar. Eu entendia os motivos dele. Eu sabia o que tínhamos feito com Matthew.

Quando eu entrei nos chuveiros, boa parte dos garotos já estava tomando banho. Alguns não tiravam suas sungas, mas a maioria sim. Os que tinham vergonha eram sempre os que eram mais incomodados pelos outros, especialmente se o mister Strong não estivesse por perto para intervir. Eu particularmente não me importava em ficar nu. Embora eu detestasse o meu corpo, ficar sem nada não tinha muita diferença de ficar só de cueca.

— Deep down in Louisiana close to New Orleans, way back up in the woods among the evergreens... — Knox começou a cantarolar a letra de “Johnny B. Goode” quando o professor entrou nos chuveiros, sendo seguido por alguns dos outros garotos, entre eles o meu irmão.

mister Strong enviou um olhar irritado ao garoto e seguiu para o seu chuveiro reservado. Johnny era o apelido que o professor tinha, diminutivo de seu primeiro nome, John. Ele permitia que os alunos o provocassem com aquele apelido quando estava de bom humor.

Knox cantava e dançava, nu, como só um alfa era capaz de fazer. Ele não se sentia intimidado por nada e nem ninguém.

E então Lysander entrou. O garoto seguiu silenciosamente em direção ao chuveiro mais distante de todos, mas Knox percebeu a presença dele mesmo assim.

— Ei, Lys! — Knox chamou.

Lysander fingiu não ter escutado. Mas então o outro garoto seguiu até ele, e eu imediatamente ergui uma sobrancelha, sabendo o que aconteceria.

— Você está muito ocupado? — Knox falou, inclinando-se de maneira dominadora na parede ao lado do chuveiro do garoto taiwanês.

Lysander ficou em silêncio.

— Eu só queria trocar uma ideia sobre uma matéria que você escreveu.

— Olha, Knox... — O garoto começou a responder, mas o alfa o interrompeu.

— Qual o problema? Você não gosta de um feedback dos seus leitores?

Knox aproximou o seu rosto do rosto de Lysander, o olhar intimidador fixo nos olhos da sua presa. O outro garoto se afastou um passo, abaixando a cabeça.

Knox se referia a uma matéria que Lysander tinha escrito sobre dislexia. Aquele não era um assunto que muitos dos garotos na academia sabiam sobre, então quando eles leram sobre isso, imediatamente relacionaram aquilo ao Knox. Não ajudava o fato de que o editor tinha escolhido uma fotografia de alguns pupilos em sala de aula em que Knox aparecia de maneira proeminente. Era óbvio que Lysander tinha feito aquilo de propósito.

— Eu peço desculpas se você se sentiu ofendido, Knox. — Lysander falou, erguendo o rosto. E então a expressão facial e o tom dele mudaram completamente. — Talvez se eu tivesse conseguido as suas aspas, teria escrito um texto mais acurado.

Knox empurrou o corpo de Lysander contra a parede quase no mesmo instante. O barulho foi alto, chamando a atenção dos garotos que ainda não tinham percebido a situação. O alfa pressionou seu antebraço contra o pescoço do taiwanês, prendendo-o contra a parede. A água do chuveiro caía em parte do corpo deles. Lysander mantinha o rosto erguido de maneira altiva, não desviando seu olhar.

O silêncio durou alguns segundos. Então Knox pegou o garoto pelos ombros e o jogou contra outra parede, fazendo-o cair no chão. O baque foi ainda mais alto dessa vez.

— O que está acontecendo aqui?

mister Strong apareceu logo depois de eu ouvir a voz dele. O professor estava nu. Ele observou a situação por alguns segundos, Lysander levantando-se do chão enquanto Knox mantinha-se imóvel e furioso.

— Santiago, pra fora. — O professor falou ao alfa.

Knox obedeceu sem dizer uma palavra, saindo dos chuveiros.

— Você está bem? — Mister Strong perguntou ao Lysander.

O garoto concordou com a cabeça. O professor ficou alguns segundos em silêncio, e daí falou:

— Mais cinco minutos e eu quero todos vocês fora daqui. Entendido?

— Sim, senhor. — Nós repetimos em uníssono.

O professor nos encarou de maneira intimidadora e daí saiu. Meu irmão se aproximou de mim quase no mesmo instante, falando, entre risos:

— Agora nós sabemos porque o professor não toma banho junto com a gente. Você viu o tamanhozinho daquilo?

Revirei os olhos e ignorei Beckett.

xxx

A biblioteca da St. Dominic era enorme, eu não teria problema em passar os meus dias de detenção ali. Isso se fosse permitido que passeássemos pelos diversos corredores, o que não era o caso. Embora não tivesse ninguém para nos vigiar naquele momento, eu sabia que o mister Graves ou alguém enviado por ele poderia aparecer a qualquer momento. E embora eu tivesse ativamente buscado aquela punição, eu não queria me prejudicar mais do que era necessário.

Assumir a culpa pela festa no dormitório abandonado não foi algo planejado. A oportunidade se apresentou quando, no dia seguinte a festa, eu fiquei sabendo que nós tínhamos sido descobertos um pouco depois que Binky e eu voltamos para o dormitório. Toda a escola voltaria a ter de obedecer ao toque de recolher se um responsável não aparecesse. Foi então que eu me dei conta de aquela poderia ser a oportunidade perfeita para que eu adiasse por ao menos mais um semestre a minha promoção aos Wolves. Talvez um semestre pudesse ser tudo o que Beckett necessitava para aumentar suficientemente suas notas, e eu ainda teria tempo de concorrer a presidente do corpo estudantil no começo do ano seguinte, se a minha promoção acontecesse ao final do ano letivo.

Headmaster não acreditou que eu era o responsável, chegando até mesmo a acusar meu irmão. No fim eu consegui convencê-lo usando argumentos semelhantes aos que The King tinha utilizado quando assumiu a culpa pelo boneco enforcado no corredor. Aquela tática não iria funcionar por muito tempo se nós continuássemos a usando, mas era claro que o diretor não tinha um plano melhor para lidar com aquela situação.

Me frustrava estar fora do time de basquete, mas eu ainda conseguia me exercitar nas aulas regulares de educação física e nas minhas corridas matinais. Eu também estava perdendo os ensaios de Lord of the Flies, e, embora o mister Graves não tivesse oficialmente me tirado da peça, eu duvidava que ainda fosse protagonizar o espetáculo. A minha primeira chance de ser um herói tinha escapado pelos meus dedos.

The King e eu éramos os únicos naquela ala da biblioteca, cercados pelo mais absoluto silêncio. O lugar onde estávamos era onde deixavam os livros de filosofia, e nenhum dos garotos ia atrás de livros de filosofia por livre e espontânea vontade. A dimensão da biblioteca fazia com que qualquer som que fosse realizado distante de onde estávamos não chegasse até ali. Aquele era um bom lugar para se estudar, mas não naquelas circunstâncias.

Eu e o garoto não tínhamos trocado qualquer palavra. Isso era bom. Eu também agradecia pelo fato de Knox não estar ali, já que eu tinha esperado que ele fosse se encrencar depois do incidente com Lysander no vestiário. Era provável que o mister Strong não tivesse escolhido punir o garoto porque sabia que isso significaria perdê-lo do time logo quando o braço de Knox tinha se recuperado e ele podia voltar a jogar. E com Knox sendo o segundo melhor atleta de toda a escola, o professor não iria querer perdê-lo. O nosso primeiro jogo aconteceria nas semanas seguintes, e eu sabia o quanto o nosso treinador gostava de vencer, acima de qualquer coisa.

O relógio na parede indicava 18:30. O jantar era servido pontualmente as 19:00, mas nós só poderíamos comer depois, quando todos os outros garotos já tivessem abandonado o refeitório. E então nós éramos enviados imediatamente para os nossos dormitórios. Os corredores eram perigosos para se descumprir regras, com o olhar atento do mister Bloodworth sempre nos seguindo. Eu tinha certeza que havia sido ele quem descobrira sobre a nossa festa.

— Ei, raposa. — Eu ouvi The King cochichar. — Ou devo dizer... Urso?

Olhei na direção do garoto de maneira séria. Ele estava se referindo às orelhas de urso que eu estava usando na cabeça. Aquela era a noite de Halloween, em que todos os alunos da St. Dominic se fantasiavam. Embora The King e eu não pudéssemos participar das atividades que estavam acontecendo na escola, nós podíamos nos fantasiar. Eu nunca tinha gostado daquele feriado, então tinha aceitado somente usar um par de orelhas de urso depois de muita insistência de Binky. The King por sua vez estava vestido como o personagem Bender, do filme “The Breakfast Club”. Eu tinha certeza que a ironia de nós estarmos em uma detenção assim como no longa-metragem não escapava ao garoto.

— Que tal nós darmos no pé? Ninguém apareceu aqui por horas, deve estar todo mundo se divertindo. Eles não vão perceber se nós formos embora.

Por uns segundos eu decidi ignorar a fala do garoto, mas ele continuou olhando pra mim de maneira incômoda.

— Você pode fazer o que você quiser, eu não estou te segurando.

— Mas você vai me dedurar.

— Eu não posso sair daqui pra ir te dedurar pra ninguém. E se o mister Graves aparecer e perceber que você não está aqui, não importa muito o que eu disser.

The King riu com a minha resposta. Segurei o impulso de revirar os olhos e voltei o meu olhar para o livro diante de mim. Depois de reler o mesmo parágrafo quatro vezes e continuar sem absolver nenhuma das palavras, eu concluí que não conseguiria me concentrar. Fechei o livro com um movimento silencioso e suspirei.

— Aquela ideia de escaparmos parece mais atraente a cada minuto, huh?

Suspirei uma segunda vez, agora bem alto.

— Deus, como você é desagradável.

— Oh, me desculpe. — The King respondeu em um tom de voz falsamente cordial. — Eu vou me esforçar pra ser mais agradável como o senhor, m’lord.

Aquela fala me incomodou de um jeito um pouco pessoal.

— Você realmente acha que é diferente de nós, não é?

— Eu sou diferente de vocês, quanto a isso eu não tenho dúvidas. Mas ao que você se refere?

— Eu me refiro ao seu jeito. Você vive desdenhando de tudo o que essa academia representa, de tudo o que nós, seus colegas, representamos. Você coloca essa persona rebelde anárquica e populista, mas a verdade é que você é um playboy assim como todos nós.

The King me observou por alguns segundos.

— Você não sabe nada sobre mim.

Mais uma vez eu pensei em não o responder, mas as palavras saíram antes que eu pudesse pensar:

— Oh, eu sei pelo menos duas coisas. Eu sei que a mensalidade da St. Dominic não é barata. E eu também sei que você não é um bolsista. O que são fatos suficientes para eu caracterizá-lo como um garoto riquinho e mimado exatamente igual a mim.

The King ficou em silêncio por mais de um minuto dessa vez, o suficiente para me fazer acreditar que eu tinha conseguido vencer aquele argumento. Mas aí, quando eu menos esperava, ele falou:

— Não se trata dos privilégios com os quais nós nascemos, mas o que nós fazemos com eles.

— Tanto faz, Herrero. Acredite no que te ajude a dormir melhor a noite.

Abaixei o meu rosto de volta ao livro diante de mim, sabendo que não conseguiria compreender o sentido de nenhuma das palavras escritas ali. Discutir com orelhas de urso em minha cabeça parecia particularmente ridículo, então eu as tirei com irritação.

— Eu genuinamente não acredito que nenhum de vocês sejam pessoas ruins. — The King começou a falar, e eu não virei meu rosto em sua direção. — Se eu achasse isso, não lutaria por ninguém.

— “The King”, o mártir. Me poupe. Você gosta é da atenção.

— A atenção de quem, exatamente? Do Headmaster? Porque nenhum dos garotos por quem eu me arrisco vez após vez está aqui comigo. Eu faço isso sozinho.

Ele não mentia. The King estava na academia desde antes de eu chegar ali, e desde o começo eu ouvia sobre os feitos dele. Boa parte das (poucas) flexibilizações que tínhamos na St. Dominic se devia a atitudes e protestos dele. Era graças ao The King que nós podíamos questionar o resultado de uma avaliação quando desconfiávamos que pudesse existir algum erro cometido pelo professor. Era por causa de The King que tínhamos ficções consideradas “pervertidas” nas estantes da biblioteca. Era por causa de The King que podíamos ativamente votar em candidatos ao posto de presidente do corpo estudantil. Era por causa de The King que uma série de coisas existia, e por todas elas ele tinha sido inicialmente punido, sempre sozinho. Mas nenhuma daquelas conquistas o tornava menos insuportável aos meus olhos.

Não o respondi. Passei os minutos seguintes lendo e relendo as mesmas páginas, começando a sentir sono. The King levantou algumas vezes, dando voltas nos corredores próximos. Os minutos se tornaram horas, e então eu comecei a estranhar. Olhei o relógio na parede e ele indicava 21:00. Alguém já devia ter aparecido para nos chamar para o jantar.

A barriga de The King roncou exatamente no momento em que eu decidi falar alguma coisa. Ele também tinha percebido que algo de errado tinha acontecido.

— Eu acho que eles esqueceram da gente. — O garoto falou.

Eu concordei com a cabeça. Me levantei da cadeira e andei na direção da entrada da biblioteca, sendo seguido por The King.

Não havia mais ninguém por ali. Eu e o garoto demos algumas voltas pela área e rapidamente concluímos que todos já tinham ido embora. Quando tentei abrir a enorme porta de madeira da entrada da biblioteca, descobri que ela estava trancada. Aquilo nunca tinha acontecido antes, mas não me surpreendia. Aquela biblioteca era grande demais, e todos os encarregados pelos alunos estavam sempre atarefados demais. Era inevitável que um dia se esquecessem de dois alunos cumprindo detenção.

The King tentou abrir a porta uma segunda vez, girando a maçaneta com mais força.

— Se o seu plano é arrombar a porta, você vai precisar usar mais força, gênio. — Falei.

O garoto me ignorou e girou a maçaneta mais algumas vezes. Em seguida ele bateu na porta e gritou:

— Ei! Ei! Vocês esqueceram a gente aqui!

Eu não achava que gritar fosse funcionar. A área onde se localizava a biblioteca era pouco circulada mesmo durante o dia. Enquanto The King se dedicava a inutilmente gritar por ajuda, eu comecei a pensar em alguma alternativa. A mais pragmática seria arranjar um jeito de dormir ali e esperar alguém aparecer pela manhã. Eu conseguia suportar a fome. Por outro lado, eu ficava exausto só de pensar na possibilidade de passar a noite toda ao lado daquele garoto. Tinha de haver outra solução.

— Você costuma passar mais tempo na detenção do que nas aulas. — Eu comecei a falar, tentando não soar rude. — Nunca te aconteceu nada semelhante a isso?

The King não se ofendeu com a minha fala.

— Não. Uma vez quase me esqueceram, mas eu percebi antes.

Assenti com a cabeça.

— Nós podemos acionar o alarme da mansão. — The King sugeriu. — Só precisamos quebrar uma janela ou...

Aquilo me fez rir.

— Do que você está rindo?

Dei com os ombros.

— A sua primeira solução é quebrar alguma coisa. Típico.

The King se aproximou de mim, me olhando com desdém.

— Talvez se você quebrasse alguma coisa de vez em quando, não seria esse pé no saco que é. Você é mesmo incapaz de falar qualquer coisa positiva, não é? Deve ser uma existência miserável.

Aquilo me irritou profundamente. Eu definitivamente precisava encontrar uma maneira de sair dali o quanto antes. Decidi não dar ao The King a satisfação de me ver incomodado, dando meia volta e seguindo para a ala administrativa que ficava no interior da biblioteca. Devia ter algo de útil por lá.

A porta da sala da administração também estava trancada. Passei os minutos seguintes pensando em alguma outra solução, qualquer outra solução. Cheguei até mesmo a considerar perguntar ao The King se ele sabia destrancar uma fechadura com clipes de papel. Eu tinha visto Beckett fazendo aquilo uma vez, mas se tratava de uma fechadura de um armário na escola, não de uma porta.

— Ei, Chevalier, aqui! — Eu ouvi o garoto gritar de um lugar distante de onde eu estava.

Corri na direção da voz de The King e o vi parado diante de uma porta aberta. Era a porta de uma pequena salinha escondida entre duas estantes no andar inferior da biblioteca, o qual ficava abaixo do solo. Aquela área era onde ficavam os livros que não estavam disponíveis para empréstimo, apenas consulta, a maioria deles envolvendo histórico de alunos e funcionários e outras publicações relacionadas a administração da St. Dominic. Eu já tinha os consultado uma única vez, quando fiz um trabalho a respeito de um dos Headmasters da academia, aquele que havia sido o sucessor de Myriam Dumas.

— O que é isso?

The King deu com os ombros.

— Eu comecei a mexer em uns papeis aqui embaixo pra ver se encontrava uma planta da biblioteca e eu acho que devo ter acionado alguma alavanca ou algo assim. — O garoto respondeu de maneira empolgada.

— Uma sala secreta. Huh. — Murmurei.

— Uma sala secreta! — The King exclamou, seus olhos brilhando.

Antes que eu dissesse qualquer outra coisa, The King já tinha sumido para dentro da sala. Eu desci os degraus até o andar inferior com relutância, observando a porta aberta por alguns segundos, antes de entrar. Ali havia algumas mesinhas e cadeiras empoeiradas, com livros dispostos em pequenas estantes. As luzes funcionavam, o que indicava que, apesar da poeira, alguém cuidava daquele lugar, mesmo que minimamente. Além disso, havia a janela ao fundo da sala, visível do lado de fora da academia, mas sobre a qual eu nunca tinha pensado a respeito. O que quer que existia ali não deveria ser muito secreto.

The King começou a mexer em tudo naquela sala, mas eu decidi ser mais cauteloso. Nós tínhamos a desculpa de que estávamos tentando arranjar uma maneira de sair da biblioteca, mas eu realmente não queria me encrencar. Por outro lado, eu não podia negar que estava curioso pelo que poderia existir ali.

Rapidamente percebi que todos aqueles livros eram pastas e compilados de documentos semelhantes àqueles no andar inferior do lado de fora. De imediato nenhum deles parecia particularmente interessante, mas então uma imagem chamou a minha atenção.

Um triângulo branco.

O triângulo branco estava impresso na maioria dos documentos daquele livro. Eu o guardei em seu lugar e abri outro, e mais uma vez havia imagens do triângulo branco em várias das páginas. Aquele símbolo parecia ser uma espécie de marca d’água. Nos documentos mais antigos, a sua coloração branca se destacava bastante, curiosamente não tendo amarelado com o tempo. Nos documentos mais novos o triângulo era quase imperceptível, misturando-se ao branco das páginas.

— Foundation. Hm. — The King leu em voz alta, segurando um dos livros aberto. — Esse nome não me é estranho.

Fiquei alguns segundos em silêncio, refletindo. Falei:

— Eles financiam algumas coisas aqui na escola... Eu acho. Eu não tenho certeza, na verdade, mas acredito que já vi o meu pai comentando sobre essa empresa.

The King concordou com um aceno de cabeça.

Depois de mexer nos papeis por alguns minutos, percebi que a maioria deles listava gastos. Compra de materiais para a academia, contratação de funcionários e diversas outras coisas. Não havia nada de particularmente secreto ali, somente material administrativo e burocrático. Era estranho que aqueles documentos estivessem guardados em uma sala secreta na biblioteca e não em alguma ala administrativa da St. Dominic, mas poderia haver dezenas de razões para aquilo. Especialmente porque os documentos datavam desde o século XVII até a década de 1990. Talvez aquele tivesse sido o melhor lugar que a academia tinha encontrado para guardar os arquivos.

— Isso não vai nos ajudar a sair daqui, Herrero. Vamos deixar tudo onde nós encontramos e sair daqui. A sua ideia da planta da biblioteca não é exatamente ruim e...

Eu interrompi minha fala ao perceber que The King nem mesmo prestava atenção em mim, absorto na leitura de um livro que tinha em mãos. Bufei, frustrado, e segui até ele, conseguindo observar as páginas por cima do ombro do garoto. Se tratava de um livro relatando alguma coisa relacionada ao dormitório das garotas.

Franzi o cenho. Mais e mais aquilo me parecia alguma espécie de pegadinha. Desde que eu tinha ingressado na St. Dominic, os veteranos sempre brincavam a respeito de uma sociedade secreta, seita canibal, o desaparecimento de trinta e três garotas no dormitório abandonado... Até mesmo com o triângulo branco eu já havia tido contato algumas vezes, fosse em pichações no dormitório das garotas, fosse em flashes incertos da minha memória.

Seria possível que aquilo tudo fosse uma espécie de brincadeira? Era Halloween, afinal de contas. Não, não fazia sentido. O Headmaster não era do tipo mais bem humorado para planejar algo daquela espécie, mesmo naquele feriado. E os meus amigos não teriam capacidade de elaborar algo daquela magnitude, especialmente em um momento em que o mister Graves e o mister Bloodworth estavam mais atentos do que nunca. A solução mais lógica era que todos aqueles elementos existiam separadamente e com explicações plausíveis.

Quando The King virou uma página, uma pasta caiu de dentro do livro. Eu a recolhi do chão e a abri, com o garoto grudado em mim, curioso pelo conteúdo da pasta. Minhas mãos ficaram levemente trêmulas quando eu percebi o que havia dentro daquela pasta. Dezenas de fotos em preto e branco, cada uma delas com o rosto de uma garota diferente. De imediato eu consegui supor que aquelas fotos datassem do começo do século passado.

— Não pode ser... — The King comentou, tomando algumas fotos da minha mão.

O garoto começou a examiná-las minuciosamente. Quando olhei de volta para a pilha de fotografias que tinha restado na minha mão, eu vi o rosto dela.

Mary Jane. A garota que tinha beijado Samuel na festa no dormitório abandonado.

Soltei as fotografias com um movimento instintivo. The King olhou pra mim com uma expressão estranha no rosto.

— Essas não podem ser as garotas da lenda do dormitório abandonado, podem? Quero dizer...

— Espera. — Eu pedi com a maior gentileza que consegui, tentando organizar meus pensamentos.

Recolhi as fotografias do chão com a ajuda do outro garoto e nós as colocamos de volta na pasta. Não havia nenhuma indicação de data nelas. Quando as contamos, o número também não foi o esperado. Vinte e seis. O número de garotas da história que os garotos contavam para aterrorizar novatos era trinta e três.

O olhar de Mary Jane continuava pregado ao meu. Eu não era capaz de dizer a idade daquela fotografia. Ela parecia antiga, mas ao mesmo tempo existiam tantas possibilidades e teorias e...

Subitamente me senti fraco. Tentei me apoiar em uma cadeira próxima, mas meu braço deslizou por ela e eu caí no chão com um baque surdo. Senti minha visão ficando turva, e então senti os braços de The King. Eu conseguia ver o rosto dele, vermelho pelo esforço de me carregar, e sentia meu corpo flutuando para fora da sala. Alguns segundos depois eu senti uma superfície dura debaixo de mim. Fechei os olhos por alguns segundos e tentei respirar fundo. Quando voltei a abri-los, eu já conseguia ver com mais clareza.

Me sentei e percebi que eu estava em cima de uma das enormes mesas da biblioteca. Eu não sabia dizer quantos minutos tinham se passado. Tentei descer da mesa, mas então me senti zonzo e decidi ficar parado. Eu precisava comer, desesperadamente. A minha última refeição real tinha sido na janta do dia anterior.

The King apareceu uns segundos depois, completamente esbaforido. Antes que eu pudesse dizer algo, ele me inundou de perguntas:

— Como você está se sentindo? Você está bem? O que aconteceu?

Estiquei meus braços na frente do corpo e abri as palmas das minhas mãos, exausto demais para verbalizar que precisava que The King se acalmasse.

— Eu guardei tudo no lugar e dei um jeito de fechar a sala, não se preocupa. Você me deu um susto e tanto!

— Me desculpa. — Foi tudo o que eu consegui dizer.

Me deitei desajeitadamente em cima da mesa mais uma vez, e The King correu para longe. Fechei os olhos. Eu não sabia dizer se era a falta de comida que estava me fazendo ter aqueles pensamentos estranhos. Seria possível que eu estivesse alucinando? Eu tinha visto a tal Mary Jane somente quando eu estava embrigado, de longe, parcialmente no escuro. Eu não podia ter certeza das suas feições. E ali, naquele momento, eu estava absurdamente faminto. Eu não conseguia pensar com clareza. Tudo, absolutamente tudo, podia não passar de uma série de coincidências, costuradas em teorias absurdas por uma mente fraca.

As vozes ao longe indicaram que alguém tinha percebido a nossa ausência. Quando abri os olhos, vi o meu reflexo diante de mim. Beckett. 

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Me desculpem pela demora em sair esse capítulo! O próximo será mais rápido, prometo.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Fine Young Gentlemen" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.