Fine Young Gentlemen escrita por Lerdog


Capítulo 8
The Shame Box


Notas iniciais do capítulo

Para aqueles que tenham interesse, eu coloco fotos dos intérpretes dos personagens aqui: https://www.wattpad.com/836418253-fine-young-gentlemen-cast

ooooou

Para aqueles que preferirem, eu também publiquei o capítulo com imagens/fotos em pdf, neste link: https://drive.google.com/drive/folders/1IZcqVARlVN4rj4RmZRPUibA-wlhlgfU1



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Rainfort, Connecticut, Estados Unidos. Outubro de 2020.

A maca onde eu estava sentado era velha. Eu conseguia ver ferrugem nas partes de metal, e o estofado estava rachado em alguns lugares. Pelo menos o lençol branco colocado em cima dela estava limpo. Na verdade, toda a enfermaria do mister Hirschfeld era bastante limpa e organizada. Ele gostava de limpeza, e eu também.

— Me fale sobre os seus primeiros dois meses aqui na academia, Timothy.

Pensei um pouco antes de começar a falar. O mister Hirschfeld era o psicólogo e também o enfermeiro da academia. Eu tinha questionado a formação dele na primeira vez que nós conversamos, e ele me apontou os dois diplomas pendurados na parede atrás dele. Era estranho que ele fosse tanto um psicólogo quanto um enfermeiro, mas era bem conveniente também. Assim a escola não precisava pagar dois profissionais.

Falei sobre algumas coisas que me interessavam. O mister Hirschfeld me ouviu com atenção por bastante tempo. Quando eu terminei de falar, ele ficou um pouco em silêncio.

— Parece que você se adaptou bem. Isso é bom.

Encarei o mister Hirschfeld por alguns segundos. Ele era negro, com o cabelo e a barba curtas e um par de óculos no rosto.

— Existe algo mais que você queira conversar a respeito? — Ele me perguntou.

Neguei com a cabeça.

— Nenhum garoto está implicando com você?

Neguei mais uma vez.

— Eles não me notam. Isso é bom. E o Woodstock e o Yates sempre estão comigo no refeitório e na sala de aula. O Woodstock tem um garoto perseguindo ele, mas não tem nada a ver comigo.

mister Hirschfeld franziu o cenho.

— Pode me explicar mais?

Concordei com a cabeça e fiquei em silêncio.

— Me explique, por favor.

Assenti.

— É um garoto chamado Binky. O Woodstock acabou irritando ele por algum motivo, e desde então esse garoto provoca ele sempre que pode. Empurra ele no refeitório, some com as roupas dele no vestiário, faz ele tropeçar no meio dos corredores... Um monte de coisas. Mas eu não me envolvo.

— Você já falou sobre isso com algum professor?

Neguei.

— Isso é grave, Timothy. Eu agradeço por você ter me contado a respeito.

— Você não vai contar pro Binky que eu falei sobre isso né? O Woodstock vai ficar furioso! Ele falou que não era pra eu contar pra ninguém.

mister Hirschfeld tirou os óculos por alguns segundos e falou:

— Eu não vou contar a ninguém que você falou sobre isso. Lembre-se: tudo o que nós falamos aqui é confidencial. Mas eu preciso informar ao Headmaster sobre essa situação de bullying.

Eu entendia.

— É por causa daquele garoto Matthew que se suicidou né? Ele também sofria bullying.

— Não somente. — O mister Hirschfeld começou a falar. — Bullying é uma atitude condenável em qualquer contexto.

Concordei com a cabeça.

— Eu posso ir embora agora? Eu estou perdendo uma aula.

O homem concordou com um aceno. Eu me levantei e pedi licença. Quando eu girei a maçaneta para abrir a porta, o mister Hirschfeld falou:

— Eu estou orgulhoso da sua adaptação, Timothy.

Assenti com um gesto e saí porta a fora.

xxx

Eu gostava de me fantasiar. Na verdade, eu gostava do Halloween como um todo. Eu não tinha medo de coisas de terror, nunca. Era um pouco chato, na verdade. Nenhum filme me dava realmente medo, mas eu achava engraçado ver as outras pessoas se assustarem.

No Brasil, a minha escola não comemorava o Halloween, mas o condomínio onde eu morava sim. Eu não tinha amigos, então eu ficava com vergonha de sair batendo na porta dos apartamentos. Quando eu fui passar as férias na casa da minha tia pela primeira vez, quando tinha seis anos de idade, eu fiquei muito animado em sair com os meus primos atrás de doces. Naquela época eu não falava inglês muito bem, mas eu me lembro que me diverti bastante.

Os meus pais ainda moravam no Brasil. Eu estava nos Estados Unidos com um visto de estudo, e a minha tia era a responsável por mim ali no país. Ela morava em Miami, na Flórida, e tinha se mudado para a América quando era bem nova e se casou com um gringo. Aquela minha tia era irmã da minha mãe, e a nossa família ia visitá-la as vezes, mas ela nunca ia visitar a nossa família no Brasil. Ela não veio nem mesmo quando o vovô morreu, e a minha mãe ficou bem irritada com ela naquela época.

As vezes eu me perdia pensando naquelas coisas. Chacoalhei a cabeça e tentei prestar atenção no Yates lidando com a sua invenção. Ele estava vestido como Doc Brown, o cientista do filme “De Volta Para o Futuro”. Meu amigo lidava com um robozinho que tinha construído, tentando fazê-lo obedecer aos comandos do seu controle remoto.

Eu estava vestido como um super-herói qualquer, uma fantasia não-específica que eu tinha ganhado de presente. Ela estava um pouco apertada porque eu tinha crescido bastante, mas ainda servia.

— Bingo! — O Yates exclamou.

Me aproximei dele, e o garoto abriu um sorriso empolgado.

— Não tem ninguém no quarto do Binky nesse momento. Agora é a nossa chance.

— E como você sabe disso?

Yates apontou pro seu robozinho.

— Eu consegui instalar um aparelhinho no quarto deles uns dias atrás, e o Buddy me avisa quando o aparelho detecta movimento. Já faz meia hora desde a última vez que alguém se mexeu no quarto.

— Ele pode estar dormindo.

— Improvável. — O garoto respondeu. — O Barrett é o único que costuma trancar a porta do quarto deles, e ele está na detenção. Se as minhas suspeitas de que o Binky saiu pra comemorar o Halloween com os outros amigos estiverem corretas, isso significa que o quarto deles está vazio e destrancado.

Franzi o cenho. Eu não sabia se eu gostava daquele plano, mas eu também sabia que talvez fosse o único jeito de fazer com que o Binky deixasse o Woodstock em paz. Se nós tivéssemos certeza que tinha sido ele o responsável pelo boneco enforcado no corredor, nós poderíamos chantageá-lo. Quer dizer, o Woodstock poderia. Eu não iria me envolver.

Como se eu tivesse o chamado em pensamento, o Woodstock apareceu, abrindo a porta do nosso dormitório. Ele estava suado e com o rosto vermelho.

— Pronto, tudo certo. Eu vou inevitavelmente ser pego na mentira, mas não essa noite.

— O que você fez? — Eu perguntei.

Woodstock abriu um sorriso diabólico. Ele estava fantasiado de Chucky, o boneco assassino, com um macacão azul, uma blusa listrada e cicatrizes pintadas em seu rosto.

— Eu falei pro responsável pela biblioteca que o Barrett e o The King tinham sido liberados da detenção naquela noite por causa do Halloween. Ele não acreditou muito em mim, mas por um golpe do destino o Beckett estava passando no corredor naquele momento, então ele acreditou que fosse o Barrett. Com certeza o Headmaster ou o mister Graves vão desmentir o que eu disse amanhã, mas vai ter valido a pena. Por essa noite, o Barrett está trancado na biblioteca e nós temos o dormitório deles só pra nós.

xxx

Eu não queria estar naquele dormitório, mas os meus roommates me convenceram que só eu seria capaz de reconhecer a caligrafia do Binky. O Yates ficou na porta, vigiando caso alguém aparecesse. Ele tinha trazido o Buddy, seu robô, e tinha preparado a desculpa de que estava andando com ele pelos corredores, caso fosse questionado.

O Woodstock e eu mexíamos nas coisas tomando cuidado pra não deixarmos nada fora do lugar. A minha memória era fotográfica, então eu conseguiria me lembrar se vacilássemos. Não demorou muito tempo pra gente encontrar um caderno de Binky. Quando eu peguei o objeto na minha mão e o comparei com as notas de ameaça que o Woodstock tinha recebido, tive a confirmação da minha suspeita. Aquelas notas tinham sido escritas por Binky. E eu me lembrava perfeitamente da caligrafia da mensagem no boneco enforcado, com os pontos finais parecidos com a letra “o”. A escrita de Binky em seu caderno era exatamente a mesma.

— É isso! — O Woodstock exclamou.

Meu roommate rasgou uma página com a caligrafia de Binky e guardou em seu bolso. Do lado de fora começava a chover bem forte, as luzes dos relâmpagos iluminando o dormitório parcialmente escuro.

— Pronto, vamos embora. — Eu falei.

— Não, espera.

Fiquei confuso. O que o Woodstock queria que eu esperasse?

O garoto começou a fuçar no restante das coisas do Binky que ainda não tinha mexido. Eu não entendia o que ele estava fazendo, porque aquilo não fazia parte do nosso plano. Pensei em falar alguma coisa, mas eu estava bastante confuso.

Quando eu olhei pro Woodstock, ele estava segurando uma caixinha de madeira. A caixa tinha cerca de vinte centímetros de largura, e do lado de fora dela havia uns padrões bonitos entalhados. Além disso, em um dos lados estava entalhado as iniciais: “M.V.”.

— Você tem ideia do que isso significa? — O Woodstock me perguntou.

Eu neguei com a cabeça.

O meu roommate tentou abrir a caixa, mas ela estava trancada. Então ele começou a revirar debaixo das camas e dos lençóis, e aquilo me deixou muito frustrado, porque com certeza o Binky e o Barrett perceberiam as coisas fora do lugar.

— Não faz isso! — Eu reclamei. — Esse não é o plano!

O Woodstock me ignorou.

— Achei! — Ele exclamou.

Me aproximei do Woodstock quando ele inseriu a chave no cadeado que trancava a caixinha de madeira. Dentro dela havia uma pilha de papeis coloridos em tons pasteis, presos por uma fita cor de rosa. O tamanho deles parecia o tamanho de papeis de cartas. Quando o meu roommate abriu o primeiro papel, eu reconheci a caligrafia de Binky.

Eu li a carta por cima do ombro de Woodstock. Era uma cartinha de Binky para Matthew, o garoto que tinha se suicidado. Nela, o bully pedia desculpas por não conseguir “ser sincero com os seus sentimentos”, e pedia que Matthew tivesse calma. O Woodstock abriu um segundo papel, e dessa vez era uma carta de Matthew para Binky. Carta a carta nós descobríamos todos os elementos daquela história. Pelo que estava escrito ali, os dois garotos tinham um romance secreto, mas o Binky apoiava o bullying que o Matthew sofria mesmo assim. O Matthew parecia entender, mas também demonstrava estar bastante triste. A última carta, inclusive, terminava com o garoto que tinha se suicidado dizendo que “não sabia mais o quanto conseguiria aguentar” e que “desejava que Binky pudesse fugir com ele”.

— Esse garoto é ainda pior do que eu pensava... — O Woodstock murmurou.

E então nós ouvimos o Yates falando alguma coisa com alguém no corredor. O meu outro roommate arregalou os olhos e cochichou pra nós nos escondermos. Eu fiquei apavorado e sem saber o que fazer. O Woodstock rapidamente jogou as cartas de volta na caixinha e guardou o objeto no lugar, se escondendo debaixo de uma cama. Eu acabei entrando debaixo de outra. Do lado de fora eu conseguia ouvir as vozes do Yates e do Binky.

A porta do dormitório se abriu e eu ouvi as risadas de Binky e de outro sujeito. Eles fecharam a porta e falaram alguma coisa que eu não entendi. Eu conseguia ver só os seus pés, mas eu percebi quando o Binky trancou a porta. O meu coração começou a bater forte. Droga, droga, droga. Nós estávamos presos ali dentro!

Olhei para frente, debaixo da outra cama, e o Woodstock colocou o dedo na frente da boca, pedindo pra eu fazer silêncio. Eu estava muito nervoso e não sabia o que fazer. Tentei respirar bem baixinho e me acalmar. Talvez eles saíssem rápido dali.

Binky empurrou o outro garoto em cima da cama que ficava de frente pra mim, aquela onde Woodstock estava escondido debaixo. Na mesma hora eu pensei em gritar, pensando que o garoto ia machucá-lo, mas daí os dois se beijaram! Eu tapei a boca, contendo um grito de surpresa. Woodstock olhava pra mim com os olhos arregalados, sem ver a cena, mas conseguindo ouvi-la.

— Oh, River...

O Binky e o tal River continuaram se beijando por alguns segundos, e eu fechei os olhos, me sentindo muito desconfortável. Woodstock esfregava o rosto, e eu não conseguia decifrar o que ele estava achando.

— Binky, espera. — Eu ouvi River dizer.

Binky não parou, começando a afrouxar a gravata do outro garoto.

— Binky. — River falou uma segunda vez.

Fox cessou os movimentos e olhou para o rapaz asiático por alguns segundos.

— Você está bem? — Ele perguntou.

River afastou-se de Binky e se sentou na cama. Ele passou a mão pelo rosto e pelos cabelos, parecendo bem nervoso.

— O que está acontecendo? — Binky perguntou, tocando o ombro do garoto asiático.

Dog meneou a cabeça negativamente. Ele disse:

— Tem uma coisa que eu preciso te perguntar. Uma coisa... Que eu ouvi.

Eu vi como Binky mudou completamente seu humor ao ouvir aquelas palavras. O garoto se sentou ao lado de River, encarando a parede. Meu coração batia forte no peito. Se ele decidisse olhar para baixo, conseguiria me ver escondido debaixo da cama. Minha única vantagem era o fato do quarto estar imerso na escuridão, sendo iluminado somente pela luz da lua e pelos relampados esporádicos da tempestade do lado de fora.

— Pergunte.

River suspirou longamente.

— Você pode me contar sobre o Matthew?

Binky levantou-se com um movimento rápido, chegando até mesmo a me assustar. River pareceu surpreso. O outro garoto prostrou-se diante da porta e a encarou por uns segundos. Ele destrancou a fechadura e segurou a maçaneta, mas voltou a trancar o quarto no segundo seguinte. Me parecia que ele não tinha certeza do que queria fazer.

— O que você quer saber? Não, melhor. O que você ficou sabendo?

O River olhava pro outro garoto com uma expressão de pesar.

— Não importa o que eu fiquei sabendo. O que importa é a verdade. O que você vai me falar.

— E se eu não quiser falar nada?

— Você tem esse direito. — River ponderou.

Binky grunhiu, irritado, e então sentou-se de volta na cama. Debaixo dos dois, Woodstock tinha os braços cruzados e uma expressão séria no rosto.

Pelos minutos seguintes, Binky contou exatamente o que nós tínhamos lido nas cartas trocadas entre ele e Matthew. Sobre o relacionamento que os dois tinham, sobre o seu medo da reação que seus amigos teriam, sobre como ele nunca agira em favor de Matthew quando ele sofria bullying... Eu me sentia mal por estar assistindo àquela conversa pessoal, mas tentava me convencer que eu estava fazendo tudo aquilo pra ajudar o Woodstock. Não era a minha intenção espiar aqueles dois.

Quando Binky confessou ser o autor do boneco enforcado no corredor, eu não me surpreendi. Ele explicou que culpava o Headmaster porque embora ele não tivesse coragem de agir diretamente em defesa de Matthew, tinha deixado diversas mensagens anônimas na sala do diretor, contando sobre os maus tratos sofridos pelo garoto. Nenhuma das mensagens tinha surtido qualquer efeito e nenhum dos garotos tinha sido punido. Binky acreditava que se Matthew tivesse obtido a ajuda de um adulto, um professor, ele talvez pudesse ter tido uma chance. Eu não conseguia evitar pensar que tudo aquilo era um pouco egoísta, e que o Binky estava só querendo transferir pra outra pessoa uma culpa que era só dele.

Quando Binky terminou de falar, os dois ficaram em silêncio. River meneou a cabeça negativamente mais uma vez, e daí suspirou. O garoto asiático abaixou-se para pegar seu sapato, e então os olhos dele se cruzaram com os meus.

River prendeu a respiração, imóvel e sem dizer uma palavra. Mesmo assim, a sua reação foi suficiente para que Binky percebesse. O Fox abaixou-se e me viu escondido debaixo da cama. Os olhos dele arregalaram na mesma hora, um misto de choque e fúria. O meu coração batia muito forte no meu peito. De maneira instintiva eu me esgueirei pra fora e me levantei num pulo, correndo na direção da porta. Girei a maçaneta inutilmente, puxando-a com toda a força do mundo.

— Jack! Jack! — Eu chamei, me virando e olhando pra debaixo da outra cama.

Quando Woodstock saiu, Binky deu um pulo e caiu de costas em cima da outra cama. River olhava para nós dois de maneira incrédula.

— O que está acontecendo aqui? Quem são vocês dois?

— O cachorrinho surdo... — Binky murmurou, parecendo furioso. — Você me paga.

Antes que eu pudesse compreender toda a situação, o Binky se jogou pra cima do Woodstock, derrubando-o no chão. Ele ergueu o braço e desferiu um soco contra o meu roommate. Woodstock recebeu o primeiro golpe, mas daí segurou os braços de Binky e lhe deu uma cabeçada, fazendo-o cair para trás.

Woodstock tentou se jogar contra Binky, mas River se colocou na frente e levou uma pancada, caindo de costas. Do lado de fora a tempestade caía forte, os raios e trovões cada vez mais frequentes.

— Seu viadinho filho da puta e hipócrita! — Woodstock exclamou. — Por que você não me deixa em paz?

Binky passou os dedos pelo nariz, limpando um filete de sangue.

— É você quem está no meu quarto, seu imbecil.

— Porque você não me deu outra alternativa! Por algum motivo você sente que é o seu dever fazer a minha vida aqui na academia a mais miserável possível. E eu nunca te fiz nada! Nada além de você ter esbarrado em mim um dia no refeitório.

River prestava atenção em cada palavra do que Woodstock dizia.

— Binky, isso é verdade?

O outro garoto não respondeu.

Eu assistia a cena diante de mim como se estivesse na frente da televisão. As coisas estavam acontecendo exatamente diante dos meus olhos, mas eu me sentia desconectado, como se fosse apenas um espectador.

— Ele é um psicopata! — Woodstock exclamou, dessa vez encarando River. — Eu não consigo acreditar como você ainda pode perguntar se isso é verdade depois de tudo o que ele te contou. Uns minutos atrás ele admitiu que apoiou o bullying do garoto com quem ele tinha um caso só pros amigos não ficarem sabendo. Que tipo de pessoa acha isso normal ou justificável?

— Eu não disse nada disso, eu... — O garoto asiático começou a se explicar, mas Woodstock o interrompeu.

— Não me importa. O que você dois viadinhos fazem não diz respeito a mim. Tudo o que eu quero é que esse garoto me deixe em paz!

Meu coração batia forte. Binky encarava o chão, sem falar qualquer coisa. Eu não gostava do jeito que o Woodstock estava falando, então eu arrisquei falar pela primeira vez:

— Você não deveria usar a sexualidade deles pra ofendê-los, Jack.

— Vai se foder, Timothy! — Meu roommate exclamou.

Aquilo me magoou bastante. Apertei as minhas mãos num punho com muita força.

— Não fala assim comigo!

Woodstock me ignorou e voltou a olhar para o Binky.

— A partir de hoje você vai me deixar em paz, entendido? Do contrário eu juro pra você que todo mundo nessa maldita academia vai saber sobre o casinho de vocês dois.

Binky ergueu o olhar, encarando Woodstock com muita raiva. O River concordou com a cabeça e se afastou alguns centímetros, encostando na janela. Woodstock esticou o braço e o Binky entendeu o que o gesto significava, entregando a chave do quarto pra ele. Meu roommate passou por mim como se eu não estivesse ali, destrancando a porta e saindo do dormitório.

Eu fiquei alguns segundos parado e sem saber o que fazer. Eu via o meu reflexo no espelho do quarto, a fantasia de super-herói parecendo muito ridícula. River sentou-se em uma das camas e cobriu o rosto. O Binky olhou pra mim e falou:

— O que diabos você ainda está fazendo aqui, vira-lata?

Me virei e saí correndo sem olhar pra trás.

xxx

Quando eu cheguei ao nosso dormitório, só o Yates estava lá. Ele me fez um monte de perguntas, mas aquilo me deixou confuso e irritado demais pra responder. Eu falei pra ele que respondia depois e saí. O relógio na parede mostrava que era bem tarde, mas nós estávamos livres do toque de recolher naquela noite. Corri pelos corredores, esbarrando em diversos garotos fantasiados. Minha capa flutuava no ar como um verdadeiro super-herói, e aquilo só me deixava ainda mais irritado. Arranquei a capa com um movimento rápido e a joguei em uma lata de lixo.

mister Bloodworth estava parado próximo da porta que dava pro lado de fora da academia. Eu esperei um momento que ele estivesse distraído e daí saí porta a fora. Eu sabia onde o Woodstock ia estar, então eu corri em direção a capela. A chuva ainda estava forte, e eu me molhava todo, mas não importava.

Quando eu cheguei, a capela estava completamente escura. Eu caminhei para dentro a passos lentos, todo o meu corpo pingando. Meu roommate estava ajoelhado de frente para um dos bancos, os olhos fechados e as mãos cruzadas na frente do corpo. Eu me sentei do lado dele e fiquei em silêncio por um tempo.

— Você me magoou. — Eu falei de repente.

O Woodstock não falou nada por uns dois minutos. Mas daí ele se levantou e se sentou do meu lado.

— Me desculpa por te magoar, Timothy. Você não merecia as minhas palavras grosseiras.

Eu concordei com a cabeça. O Woodstock esticou o braço e eu apertei a mão dele, num sinal de trégua.

— Eu fiz tudo errado, não fiz? — O garoto me perguntou.

— Não. Você fez algumas coisas erradas só.

Woodstock sorriu e eu não entendi qual era a graça.

— Eu posso te contar uma coisa? — Ele me perguntou.

Eu concordei com um aceno.

— Eu sempre sofri com bullies, a minha vida toda. Eles sempre gostaram de pegar no meu pé e me provocar por causa dos meus aparelhos. A minha mãe sempre me defendia e me dizia algumas palavras pra me reconfortar. Depois que ela desapareceu, os bullies continuaram existindo, mas eu não tinha mais ela pra me defender e reconfortar. O meu pai dizia que eu precisava enfrentá-los de frente, do contrário eles nunca me deixariam em paz. “Existem bullies em todos os lugares e em todas as fases da vida, Jack. Você precisa aprender a se impor”, ele me dizia.

— Esse é um conselho terrível.

Woodstock riu.

— Nem sempre. Especialmente por aqui. Ninguém defendeu e reconfortou o Matthew.

— O mister Takami defendia ele, pelo que a gente leu nas cartas.

— Uma pessoa sozinha não consegue mudar todo um sistema... Eu acho.

Eu concordei com a cabeça.

— Eu posso entrar? — Eu ouvi uma voz atrás de nós dizer.

Me virei e percebi que era o garoto asiático que estava com o Binky, River. O Woodstock se levantou na mesma hora e seguiu até o garoto, abaixando a cabeça.

— Me desculpa pelo meu comportamento deplorável. Eu não sou assim, eu juro, eu...

— Como você sabia que a gente estava aqui? — Eu perguntei, interrompendo meu roommate.

River assentiu com a cabeça.

— Eu não sabia que o Woodstock estaria aqui, mas eu te vi correndo pela chuva.

Ergui uma sobrancelha, surpreso.

O garoto asiático se sentou do nosso lado e nós três ficamos em silêncio por alguns segundos.

— O meu nome é River Akira Ito. — O garoto falou, estendendo o braço na minha direção.

Eu apertei sua mão e então ele a estendeu para o Woodstock, que também retribuiu o gesto.

— Jack.

— E eu sou o Timothy.

River concordou com um aceno.

— Eu não vou falar sobre nada do que a gente viu, tudo bem? — Woodstock disse, olhando para gente. — Eu estava com raiva e furioso, mas eu não sou esse tipo de pessoa. Eu juro.

O garoto asiático acenou com a cabeça.

— Eu acredito em você. — E daí ele ficou uns segundos em silêncio. — Eu nunca vivi uma situação como esta, então eu não sei como eu reagiria se fosse perturbado constantemente como você é. Ou... Como o Matthew foi.

Nenhum de nós três disse nada por vários e vários minutos. Aos poucos a chuva do lado de fora diminuía a ponto de cessar. Depois de um tempo eu me levantei sem falar nada e saí, deixando os dois para trás.

xxx

Eu encarava cada canto da enfermaria. A maca velha, as paredes pintadas de branco, o chão com o padrão de xadrez em preto e branco, os diplomas na parede... O mister Hirschfeld me encarava com a mesma expressão calma de sempre, sem dizer qualquer coisa. Ele me deixava pensar bastante e ficar em silêncio, algo que quase ninguém deixava. Devia ser porque ele era um psicólogo e entendia como o meu autismo funcionava.

— O Binky nunca mais provocou o Woodstock. — Eu falei, sem olhar pro mister Hirschfeld.

— Isso é bom.

— Depende. — Eu respondi. — Eu não sei se é porque o Woodstock enfrentou ele, ou se é porque eu te contei sobre isso.

O homem concordou com a cabeça e daí perguntou com uma voz calma:

— E faz diferença pra você qual tenha sido o motivo?

Eu concordei.

— Eu preciso saber qual é o jeito certo.

— O jeito certo do quê?

— Eu não sei. — Respondi com sinceridade. — De ser respeitado, eu acho.

mister Hirschfeld esperou que eu dissesse mais alguma coisa, mas eu fiquei quieto.

— Eu não sei te responder esta pergunta, Timothy. Mas eu sei que nós nunca devemos vivenciar esse tipo de dor sozinhos. Falar vai ser sempre a melhor alternativa. Eu sei que muitas vezes as figuras que devem lhes proteger falham, mas esse é um ônus e uma culpa nossa, dos responsáveis por vocês. Falar nunca vai ser a escolha errada.

Concordei com a cabeça. Por alguns segundos eu me distraí, pensando em coisas aleatórias. O mister Hirschfeld esperou, como sempre fazia.

— Eu gosto do seu broche. — Eu falei de repente.

O broche do mister Hirschfeld era um triângulo branco. Naquele momento ele usava o seu jaleco branco de enfermeiro, então quase não dava pra ver.

— Oh, obrigado.

Nós conversamos por mais alguns minutos e daí eu saí da enfermaria. Parei do lado de fora, confuso por alguns segundos. As paredes velhas e escuras, os garotos em seus uniformes, os corredores, as chuvas constantes, os candelabros, gravatas, livros, broches... Subitamente tudo ao meu redor pareceu absurdamente hostil e melancólico. Eu pensei nos meus pais e na minha casa. Pensei no meu cachorro, o Caramelo, e pensei nos programas infantis que eu costumava assistir na televisão brasileira. O português me soava como um cafuné, enquanto o inglês atingia meus ouvidos como chicotes. Eu entendia, mas eu não queria entender. Eu queria correr, fugir. O que eu estava fazendo ali? Como eu tinha ido parar ali?

Dei meia volta e toquei a maçaneta da enfermaria. A soltei um segundo depois.

Aquele não era um momento de pedir ajuda. Aquele era o meu momento de enfrentar. 

 


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Notas finais do capítulo

Esse capítulo foi escrito MESES atrás, mas eu acabei não postando :( pretendo postar os dois últimos rapidamente! :D



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