Fine Young Gentlemen escrita por Lerdog


Capítulo 6
Dungeons & Secrets


Notas iniciais do capítulo

Para aqueles que tenham interesse, eu coloco fotos dos intérpretes dos personagens aqui: https://www.wattpad.com/836418253-fine-young-gentlemen-cast

ooooou

Para aqueles que preferirem, eu também publiquei o capítulo com imagens/fotos em pdf, neste link: https://drive.google.com/drive/folders/1IZcqVARlVN4rj4RmZRPUibA-wlhlgfU1



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Rainfort, Connecticut, Estados Unidos. Outubro de 2020.

Era raro que eu estivesse sozinho em nosso dormitório como naquele momento. Pujit estava em uma das aulas que eu não fazia, enquanto Atticus tinha saído pra fazer alguma outra coisa, provavelmente comer ou tomar banho. Eu não tinha a menor ideia de como o Headmaster permitia que ele ficasse no quarto durante o dia todo, todos os dias, mas, como todo o resto, aquilo não era da minha conta.

A língua de sinais não era tão assustadora quanto parecera a princípio. Já fazia alguns dias que eu me dedicava a aprendê-la, completamente imerso no livro que eu havia pedido ao mister Takami. Eu não tinha muito tempo livre durante a semana, mas os finais de semana eram mais tranquilos, somente com o treino do time de basquete aos sábados.

Eu ainda conversava com Binky após quase todos os treinos. Não apenas conversava, é claro. O que Pujit havia me contado sobre ele ser um dos garotos que praticava bullying com Matthew não fazia sentido com o Binky que eu estava conhecendo. Eu não duvidava da palavra do meu amigo, mas talvez pudesse existir algum mal-entendido. Eventualmente eu pretendia perguntar ao Binky sobre aquele assunto, mas eu ainda não me sentia confortável o suficiente. Aquilo me incomodava todos os dias. E ainda havia a caixinha com as iniciais de Matthew que eu tinha visto Binky pegando no meu primeiro dia na academia...

A porta do dormitório se abriu de repente, me assustando um pouco. Atticus achou graça da minha reação. Aquela era a primeira vez que eu via o garoto sorrindo. Atticus era um pouco mais baixo do que eu, com ombros e peitoral largos, cabelos escuros bem penteados e uma pequena separação entre seus dentes da frente. Ele tinha os olhos puxados, o que talvez significasse que tinha alguma descendência asiática, mas eu poderia estar errado.

— Boa tarde. — O garoto falou, guardando alguma coisa na cômoda.

— Boa tarde, Atticus! Como você está?

O Atticus me olhou com desdém e subiu no beliche, deitando-se de costas para mim. Aquela era a primeira vez que ele tomava a iniciativa de ser a pessoa a me cumprimentar, então eu poderia considerar como um avanço. Eu não queria incomodá-lo, então voltei a minha atenção ao livro diante de mim.

De repente, batidas na porta.

— Pode entrar. — Falei.

A porta se abriu um segundo depois, revelando a figura de Samuel. O garoto abriu um sorriso ao me ver.

— Estudando, claro...

Samuel falou aquilo e pediu licença, sentando-se na cama do Pujit, de frente pra mim.

— Desculpa a minha falta de educação. Boa tarde, River.

Eu achei graça do jeito dele.

— Boa tarde, Samuel. A que devo a honra da sua visita aos humildes aposentos dos Dogs?

O garoto meneou a cabeça negativamente, ainda sorrindo.

— O que você está estudando? Se me permite a intromissão, claro.

Fechei o livro e o estiquei na direção de Samuel.

— Língua de sinais, huh?

Dei com os ombros.

— Eu estava curioso, então o mister Takami me arranjou este livro.

Samuel concordou com a cabeça, me devolvendo o objeto.

— É uma iniciativa louvável. E se me permite me intrometer ainda mais...

Concordei com a cabeça, curioso.

— Isso é por causa do Spencer, talvez? Eu já vi vocês conversando quando estamos trocando de sala.

— Não exclusivamente, eu acho. — Respondi de maneira sincera. — Quero dizer, eu adoro aprender línguas novas. E o Spencer não tem muita gente com quem conversar na língua dele, então eu acho que é um bônus.

Samuel abriu o seu sorriso característico.

— Não leve a mal isso que eu vou te falar, mas você é o sujeito mais doce de toda essa academia, River. Não deixe que esse lugar te tire isso.

A primeira parte da fala dele me deixou estranhamente feliz, mas o final me confundiu tremendamente. Franzi o cenho.

— Obrigado, mas... Por que você diz isso?

— Ah, nenhum motivo em específico, eu acho. — Samuel começou a responder. — É só que... Não sei, eu sinto que eu mudei muito desde que eu vim pra cá. E não no bom sentido. Eu nunca tive muito, e eu sempre tentei não ficar deslumbrado com tudo o que existe ao meu redor por aqui, mas as vezes é difícil. Eu preciso ficar constantemente me lembrando de onde eu vim. Da minha mãe e dos meus irmãos e de como eles ainda dependem de mim.

Aquilo me pegou de surpresa. Eu não compreendia o que Samuel queria dizer. Embora eu soubesse que aquilo não era da minha conta, havia sido o garoto quem trouxera o assunto, então me senti na liberdade de perguntar:

— Eu não quero me intrometer na sua vida, mas... Pode me contar mais? Se quiser, é claro.

Samuel sorriu, mas aquele sorriso pareceu triste.

— Se você não percebeu, então é porque eu aprendi a disfarçar bem. Quando eu cheguei aqui, os garotos todos perceberam imediatamente que eu não era um deles. Eu não sei explicar como, mas eles souberam na mesma hora.

Aquilo me confundiu ainda mais. Sobre o que Samuel estava falando? Ele percebeu a minha cara confusa e explicou:

— Eu sou um bolsista. O único, até onde eu sei. A mensalidade aqui da academia é facilmente trinta ou quarenta vezes o valor do que o que a minha família ganha.

— Oh.

Me senti tremendamente envergonhado por não ter considerado aquela possibilidade. Aquele tipo de disparidade econômica não era algo recorrente na minha vida. Eu vivia de maneira confortável em Tóquio, mas estudava em uma escola pública onde quase todos os meus colegas tinham um padrão de vida semelhante. Minha mãe, o marido dela, meus irmãos e eu não éramos ricos. Na América, por outro lado, meu pai levava um estilo de vida muito mais elevado. E aquele era o mesmo estilo de vida de todos os pupilos da St. Dominic. Eu tinha me acostumado com aquela realidade rápido demais, e nunca tinha cogitado que poderiam existir garotos ali que não tivessem famílias abastadas como a minha.

— Você tem quantos irmãos? — Eu perguntei, ainda um pouco desconfortável.

— Sete. Todos mais novos do que eu. — Samuel falou, sorrindo. — E você?

— Oh, sete! Deve ser uma responsabilidade e tanto ser o irmão mais velho de todos eles.

— Sim... — Ele respondeu, sorrindo.

— Eu tenho só dois, gêmeos. Eles são mais novos do que eu também, são filhos da minha mãe com o novo marido dela.

Samuel acenou positivamente, prestando atenção.

— Então eles são separados? Os seus pais, quero dizer.

Concordei com a cabeça.

— Eu acho que metade dos pais dos garotos aqui da St. Dominic são separados. E os que não são, gostariam de ser. — Samuel falou de maneira leve, mas daí seu semblante fechou quando ele continuou: — O meu pai faleceu tem alguns anos, meses depois do meu irmão mais novo nascer. É por isso que eu disse que a minha mãe e os meus irmãos dependem de mim e tudo mais.

Subitamente eu me lembrei de momentos aleatórios em que eu tinha visto Samuel realizando tarefas pela academia que não pareciam incumbências de pupilos. Aquilo nunca tinha sido registrado no meu radar como algo além dele ajudando os professores como o Pen fazia, mas agora eu compreendia.

— É por isso que a sua agenda está sempre lotada... — Eu murmurei. — Eu sinto muito. Pelo seu pai, eu quero dizer.

Samuel concordou com a cabeça e sorriu de maneira triste.

— Quando eles me ofereceram a bolsa, eu recusei. Na época eu trabalhava pra conseguirmos nos manter sem o salário do meu pai. Mas daí a Foundation ofereceu que eu trabalhasse na academia lidando com algumas tarefas específicas e tudo mais, e eu podia enviar o dinheiro pra minha mãe. Daí eu aceitei.

Foundation. Aquela era a segunda vez que eu ouvia aquele nome. A primeira tinha sido quando a mulher chamada de miss Clarke tinha visitado o mister Graves. Eu sempre tinha achado que a academia era exclusivamente financiada pela família Dumas, mas talvez aquele não fosse o caso.

— Enfim, eu acabo de te contar a minha vida inteirinha sem qualquer necessidade. — Samuel falou, rindo consigo mesmo. — Me desculpa por isso, é que eu não tenho muito com quem conversar. O Beckett e os outros garotos do time são bacanas, mas a gente não conversa sobre esse tipo de coisa.

Acenei com a cabeça.

— Eu agradeço por ter compartilhado sobre a sua vida comigo, Samuel. Sempre que quiser conversar sobre alguma coisa, eu estou por aqui.

O garoto me olhou fixamente por alguns segundos, e eu senti um misto de desconforto e atração. Chacoalhei a cabeça, tentando afastar aqueles pensamentos. Samuel falou:

— Obrigado, River. — E daí ele desviou o olhar, ficando em silêncio por alguns segundos. — O que me lembra que eu vim aqui te falar sobre algo completamente diferente.

Quando Samuel terminou de falar aquela frase, nós ouvimos o ronco baixinho de Atticus. Eu dei com os ombros e chamei Samuel pra fora do dormitório. O garoto saiu com os olhos arregalados. Eu acho que ele não tinha notado a presença do meu roommate.

— Eu... Eu não percebi aquele garoto ali.

Eu concordei com a cabeça, enquanto descíamos as escadas pro andar inferior.

— O Atticus não presta atenção nem quando nós falamos com ele, então ele não deve ter ouvido nada. Não se preocupa.

Samuel negou com a cabeça e riu consigo mesmo.

— Pode me falar.

— Oh, é verdade! — O garoto exclamou. — Bom, é uma história longa, mas de maneira resumida: nós fizemos uma bagunça uns dias atrás e sobrou pro Barrett. Não foi culpa dele, mas ele assumiu a responsabilidade.

— Que tipo de bagunça? — Eu perguntei instintivamente. — Não é da minha conta, desculpa.

Samuel deu com os ombros.

— Foi uma festinha no dormitório abandonado. O mister Graves descobriu e o Barrett assumiu toda a culpa.

— O quê? — Eu exclamei, incrédulo com muitas coisas naquela história.

— Outra hora eu te conto, River. A questão é: o Barrett foi suspenso por uns dias, então ele vai ficar de fora do time até a suspensão dele acabar. Daí o Teague me pediu pra conversar com você sobre assumir a posição dele.

— Oh, claro. — Eu respondi, ainda chocado com o que Samuel tinha me contado. — Eu assumo.

O garoto acenou com a cabeça e abriu a boca pra falar alguma outra coisa, mas daí o sinal da próxima aula tocou. Samuel se calou e abaixou a cabeça.

— Bom, chega de falar. Nos vemos mais tarde, River. E, de novo, me desculpa por ter alugado tanto o seu ouvido hoje.

Assenti e me despedi de Samuel com um aceno. Aquela tinha sido definitivamente a conversa que mais me dera o que pensar desde que eu tinha chegado na St. Dominic. E depois de tudo o que eu já tinha ficado sabendo, aquele era um feito e tanto.

xxx

Todos os alunos já tinham saído da sala, e mais uma vez restavam apenas Pen e eu. Guardei as minhas coisas de maneira apressada, não querendo incomodar o garoto mais do que o necessário. Nós nos cumprimentávamos sempre que nos víamos pelos corredores ou em classe, mas não havíamos tido qualquer conversa mais aprofundada após a nossa primeira.

Pen estava apagando o quadro quando eu decidi arriscar uma conversa. Eu achava que já era capaz de expressar o básico da língua de sinais, mas eu só teria certeza se tentasse. Me levantei da carteira com os materiais em mãos e me aproximei dele. O garoto virou para trás e acenou delicadamente com a cabeça.

— Eu estou tentando uma coisa, e eu queria a sua ajuda. — Eu falei.

Pen concordou gentilmente. Eu suspirei fundo e então gesticulei:

“Boa tarde. Meu nome é River”.

O garoto ficou alguns segundos sem reação, como se não tivesse compreendido.

— Oh, não, saiu tudo errado.

Pen pareceu sair de seus pensamentos, negando com a cabeça. Então ele abriu um sorriso tímido e gesticulou:

“Boa tarde, River”. Os gestos dele quando conversava com o mister Takami eram rápidos e precisos, mas daquela vez ele tinha gesticulado em uma velocidade reduzida, para que eu conseguisse compreendê-lo. Por algum motivo aquilo me deixou feliz.

— Essa vai soar boba, mas eu sei só um pouco, tudo bem?

Pen concordou com a cabeça, e eu gesticulei:

“Qual é o seu nome?”

O garoto riu. Eu já sabia o nome dele, claro, mas aquela era uma das poucas coisas que eu sabia comunicar na língua de sinais.

“Spencer”.

Daí Pen correu até sua carteira e voltou com sua caderneta, escrevendo nela:

“Como você aprendeu?”.

— Oh, eu pedi um livro de ASL ao professor Takami.

O garoto assentiu mais uma vez e escreveu:

“Agora eu preciso aprender japonês para nós ficarmos empatados”.

Eu sorri com aquela fala dele.

— Eu posso te ensinar, se você me ensinar a ASL. Topa?

Terminei minha fala e estendi a mão na direção do garoto. Ele olhou para o chão por alguns segundos, mas daí estendeu o braço e apertou a minha mão com delicadeza. Eu não sabia explicar o motivo, mas eu me sentia extremamente confortável na presença de Pen.

O garoto pegou sua caderneta mais uma vez e escreveu:

“Oh, eu já ia me esquecendo...”.

Eu não compreendi de imediato, mas daí ele gesticulou palavras que eu já tinha aprendido:

“Feliz aniversário”.

Arregalei os olhos. Como ele sabia...? Então eu me lembrei que Pujit e eu tínhamos conversado sobre aquilo no dia anterior, durante uma aula. E o meu amigo não costumava falar baixo.

“Eu não fico ouvindo todas as conversas de vocês, eu juro”, Pen escreveu.

Eu sorri.

“Obrigado”.

E então eu ouvi passos atrás de mim. Quem estava ali era um garoto chamado Lysander Yang. Eu não o conhecia diretamente, mas ele parecia ser o único amigo de Pen, então eu o via pelos corredores quando cumprimentava o outro garoto. Além disso, havia o fato de Lysander ser aparentemente o único outro garoto além de mim em toda a academia a ter descendência do leste asiático, tornando inevitável que eu soubesse sobre ele. Lysander era também o responsável pelo jornal da escola, e seu nome estava impresso no periódico que circulava pelos corredores. A maioria dos garotos não dava bola pra publicação, mas eu tinha me interessado. Eu sabia também que Lysander era um Fox e que ele estava no terceiro ano. O garoto tinha a mesma altura que eu, era magro e tinha os cabelos castanhos e bagunçados.

Lysander ignorou a minha presença, gesticulando para Pen alguma coisa que eu não entendi. O garoto do meu lado respondeu também na língua de sinais, e eu imediatamente senti que estava atrapalhando alguma coisa. Peguei meus materiais e me despedi de Pen com um aceno rápido, passando por Lysander quando saí porta a fora. Mesmo quando eu já estava de costas, senti que o olhar dele estava preso em mim de maneira ameaçadora.

xxx

Quando nós paramos diante da porta do nosso dormitório, Pujit vendou meus olhos com a minha própria gravata. Nós estávamos voltando do jantar naquele momento.

— Qual é o ponto disso? — Eu perguntei, rindo. — Eu já sei onde nós estamos.

— A graça não está no lugar onde nós estamos, mas no que tem aí.

Meneei a cabeça negativamente, ainda rindo. Eu ouvi Pujit abrindo a porta e daí ele me empurrou pra dentro, fechando a porta atrás de nós. Pelos segundos seguintes eu ouvi um bocado de coisas se movimentando, sem ter a menor ideia do que o meu amigo estava fazendo. Então, depois de uns três minutos, ele falou:

— Pode tirar a venda.

Desamarrei a gravata dos meus olhos e os abri. Pujit estava com os braços abertos e um sorriso largo no rosto, parado atrás da nossa escrivaninha, a qual ele tinha movido para o meio do quarto. Em cima da escrivaninha havia um tabuleiro com diversas peças, cartas e uma dezena de dados coloridos, bem como alguns papeis e lápis. Em cima da cama do meu amigo existia também um livro grosso, em cuja capa eu conseguia ler: “The Eerie Dungeons”.

— Feliz aniversário!

Eu abri um sorriso genuíno. Segui na direção de Pujit e o abracei.

— Onde você arranjou tudo isso?

O meu amigo deu com os ombros.

— Eu sou um mágico, você se esqueceu? — Ele respondeu imitando o meu sotaque.

Pujit e eu tínhamos conversado extensamente sobre o nosso gosto por RPGs de mesa desde o começo, especialmente porque aquela era uma das poucas coisas que tínhamos em comum. Eu gostava de esportes, Pujit de teatro, mas aquele hobby era algo que nós compartilhávamos. The Eerie Dungeons era o meu jogo favorito de todos, mas no Japão eu só tinha os meus irmãos para jogarem comigo, e eles não entendiam as regras.

— Eu acho que é meio sem graça jogarmos só em dois, mas é melhor do que nada, certo?

Concordei com a cabeça e me sentei na cadeira, com meu amigo se sentando na cama na minha frente, nós dois diante do tabuleiro na escrivaninha.

— Obrigado, Pujit.

Meu amigo concordou com a cabeça, o sorriso ainda em seu rosto.

Eu imediatamente ouvi um barulho atrás de mim e me virei, notando que Atticus tinha se levantado e estava agora sentado no beliche de cima, seus pés descalços balançando no ar.

Peguei o livro em cima da cama e o inspecionei por alguns segundos. Na parte de trás dele estava escrito “Chevalier Games & Toys”. Talvez pudesse ser coincidência o nome da empresa que produzia o jogo ser o mesmo sobrenome dos gêmeos do time de basquete, mas talvez tivesse sido através deles que Pujit o conseguira.

Atticus ainda estava sentado na cama, olhando pra baixo. Aquela era a primeira vez que eu o via interessado em alguma coisa que Pujit e eu fazíamos.

— Você já jogou? — Eu perguntei despretensiosamente.

— É claro. — O garoto respondeu.

— Quer jogar com a gente? Em dois é meio sem graça.

O Pujit me olhou e franziu o cenho, confuso com o meu convite. Para a nossa surpresa, Atticus desceu do beliche e se sentou na cama de baixo, também ficando diante do tabuleiro.

Nós jogamos pelas duas horas seguintes. Eu não era exatamente bom em RPGs de mesa, mas eu era definitivamente entusiasmado. Pujit era ainda pior do que eu, além de ser bastante competitivo, então não demorou para ele se irritar comigo e com Atticus. O outro garoto era melhor do que meu amigo e eu juntos, e ele nos destruiu durante quase toda a partida. Durante todo aquele tempo, Atticus falou apenas o essencial, embora tivesse gradualmente se soltado mais e mais conforme a partida avançava. Aquela foi a noite mais divertida que eu tive desde que tinha chegado na academia.

Embora Atticus não tivesse compartilhado qualquer informação sobre si, eu consegui perceber algumas coisas. A primeira e mais notável delas era que o garoto tinha várias cicatrizes pela extensão dos seus braços, as mais profundas delas em seu pulso. Eu tentei não encarar as cicatrizes por muito tempo, mas eu acreditava que ele tivesse percebido. Apesar disso, Atticus continuou jogando conosco.

— Bom, acabou, noobs. — O garoto falou, analisando os dados que tinha acabado de jogar.

Pujit jogou os braços pra cima e caiu de costas na cama.

— Eu nunca mais quero jogar com você. — Meu amigo resmungou.

— Se o Atticus não estivesse na partida você teria perdido pra mim, Pujit, relaxa.

O Atticus riu com a minha fala. Durante os minutos seguintes o garoto nos ajudou a guardar as peças e o tabuleiro, e então subiu de volta em seu beliche. Eu fiquei tentado em puxar algum outro assunto com ele, mas ao mesmo tempo eu não queria deixá-lo desconfortável. Se o que eu havia lido sobre os hikikomori fosse acurado, Atticus tinha o seu próprio tempo, e interações sociais por extensos períodos talvez o deixassem exausto. Freei o meu instinto e disse apenas:

— Boa noite, Atticus.

O garoto virou seu olhar pra mim e acenou com a cabeça, deitando-se mais uma vez de costas para nós.

Troquei de roupa e me deitei na cama. Pujit apagou a luz e se deitou também.

— Você sabe do que se trata a “Foundation”? — Perguntei de repente. Pujit já tinha se acostumado com as minhas perguntas aleatórias. — Eu posso ou não ter ouvido a conversa do mister Graves com uma mulher que visitou a academia uns dias atrás.

Pujit soltou uma gargalhada.

— Eu estou sendo uma péssima influência pra você, River. Se nós continuarmos amigos você não vai sair aqui dos Dogs nunca. — Meu amigo brincou.

Eu ri com a fala dele.

— Eu também já ouvi umas conversas pelos corredores, mas eu não sei de muita coisa. Eu sei que eles contribuem monetariamente com a academia e que aparecem por aqui de vez em quando, mas nada além disso. Deve ser só uma empresa qualquer ligada aos Dumas.

Eu concordei com a cabeça, embora Pujit não pudesse ver. A única luz que iluminava o quarto era a da lua que entrava pela janela. Chovia muito do lado de fora.

— Foi a Foundation que ajudou a estabelecer o dormitório das garotas. — Eu ouvi a voz de Atticus dizer, me surpreendendo. — Eles existem tem séculos.

— Oh. — Pujit exclamou, tão surpreso quanto eu. — E você sabe algo mais sobre eles?

O quarto ficou em silêncio por alguns segundos.

— Nada que eu possa afirmar com certeza. Mas eu nunca gostei das conversas que eu ouvi. Eles e a minha família... — E então o garoto interrompeu sua frase.

— O quê?! — O Pujit exclamou de repente, pulando da cama. — Você disse “minha família”?

Mais uma vez o silêncio. Eu não sabia o que o meu amigo tinha entendido.

— Deixa ele em paz, Pujit.

— Ah, mas de jeito nenhum! Agora eu quero saber mais!

Meu amigo colocou os pés na minha cama e começou a chacoalhar Atticus no andar de cima. O garoto grunhiu, visivelmente incomodado, mas daí falou:

— Tá bom, para!

Pujit parou e se sentou na própria cama, pulando de maneira empolgada. Eu fiquei curioso e me levantei, me sentando ao lado do meu amigo. Atticus também se levantou, ficando sentado com os pés balançando no ar.

— O meu nome completo é Jean-Pierre Atticus Berger... Dumas.

— Wow! — Pujit exclamou. — Ok, por essa eu definitivamente não esperava!

Oh. Então era isso que o meu amigo tinha entendido da fala do Atticus. E ele estava correto.

— Essa era a intenção. — O garoto respondeu em um tom mal humorado.

— Mas por que você esconde isso? Você é tipo realeza nessa escola. O que o Headmaster é seu? Tio? Primo?

Atticus suspirou.

— Me desculpa por ele, Atticus. Você não precisa responder nada disso. Nós já estamos indo dormir de novo...

Me levantei para voltar pra minha cama, mas o Pujit me pujou pelo braço. Olhei para o Atticus, mas eu não conseguia decifrar sua expressão facial imersa na escuridão do quarto.

— Eu não conto pra ninguém justamente por reações como essa. Me apresentando só com o sobrenome da minha mãe, eu consigo ser deixado em paz.

— Oh... — Pujit murmurou. — Faz sentido.

Eu dei um soco no braço do meu amigo por aquela indiscrição, e ele reclamou audivelmente.

Mais uma vez, o silêncio.

— O Leon é o meu irmão. — O Atticus respondeu de repente. — Meio-irmão, na verdade. Mães diferentes.

Aquilo definitivamente me surpreendeu mais do que todo o restante. Por alguns segundos eu pensei a respeito de tudo o que eu havia descoberto sobre Atticus. Ele não gostava de socializar. Ele era deprimido. Ele já tinha se machucado. E ele fazia parte da família que fundara e comandava a St. Dominic. Devia ser um peso muito grande. Eu conseguia compreender parcialmente porque ele tinha escolhido esconder aquela informação.

— Se vocês abrirem a boca...

— Nós não vamos falar nada, Atticus. — Eu respondi, mas o Pujit ficou em silêncio. Eu dei uma cotovelada nele e continuei: — Certo, Pujit?

O meu amigo concordou com um aceno de cabeça.

— Conta o que mais você sabe sobre a Foundation... — Eu pedi, tentando mudar o foco daquele assunto para algo que não o incomodasse tanto. — Por favor?

— Eu não sei quase nada. — O Atticus falou. — Um bocado de funcionários dessa fundação visitava a nossa casa quando eu era pequeno. Inclusive quando a minha mãe morreu. A maioria deles se veste de branco e usa um broche de um triângulo branco preso na roupa.

A imagem da miss Clarke com o broche do triângulo branco preso em sua lapela me veio imediatamente a cabeça.

— Eles soam como os Illuminati... — Pujit comentou, e eu não soube se ele estava falando sério ou brincando.

— Que bobagem. — Comentei.

— Eu também pensava isso quando eu era criança. — O Atticus falou, me surpreendendo mais uma vez. — Eles definitivamente não se parecem com nenhuma outra empresa que eu já conheci. Mas eu também não acredito que eles sejam algum tipo de culto, do contrário eu acho que eu saberia porque teria sido recrutado de alguma forma.

Pujit e eu concordamos com a cabeça.

— Esse negócio do triângulo branco me lembra umas pichações do dormitório abandonado. Quando eu cheguei aqui os garotos tentavam me assustar dizendo que a escola tinha uma sociedade secreta de canibais e que o Headmaster...

Meu amigo então se calou. Atticus soltou uma gargalhada.

— Continua, por favor. — Ele pediu, ainda rindo.

Pujit ficou sem graça por alguns segundos, mas daí continuou falando:

— Bom, e que o Headmaster era o líder deles. Eles falavam que todos os Wolves sabiam disso e que eles eram recrutados pra essa sociedade secreta também, quando tinham notas altas o suficiente. O triângulo branco era o símbolo daqueles que faziam parte.

Aquilo me parecia um monte de besteira, mas eu me sentia surpreendentemente empolgado ao ouvir aquelas histórias. Eu sempre havia sido tremendamente cético, com tudo, e isso era um pouco monótono. Uma parte de mim gostava de acreditar que existia alguma coisa além, desconhecida, inexplicável. Mesmo no Japão, as histórias que mais me interessavam eram aquelas que falavam de fantasmas, demônios, yuurei e youkai. E eu não devia ser o único, do contrário teorias conspiratórias e histórias de horror como aquelas não seriam tão populares. No fim das contas todas as pessoas queriam acreditar que existia algo além da sua compreensão.

— Os Chevalier também têm muitos negócios com a minha família e com a Foundation. — O Atticus falou de repente. — Então tomem cuidado com aqueles gêmeos sinistros...

O garoto terminou de dizer aquilo e voltou a se deitar. Eu não sabia como reagir.

— Bom, agora me deixem dormir. Boa noite! — E daí Atticus se virou uma última vez para falar: — E feliz aniversário, River.

Respondi ao cumprimento de Atticus e fiquei alguns segundos parado, em silêncio, ainda sentado na cama de Pujit. O meu amigo eventualmente se deitou, mas não me pediu pra sair da cama dele.

Dentro de mim existia uma sensação estranha, um desconforto palpável e crescente. Pensei em Matthew e no dormitório abandonado, no boneco disposto no corredor e na conversa entre o mister Graves e a miss Clarke. Pensei nos Chevalier e nos Dumas, na Foundation e no jogo que nós tínhamos acabado de jogar. De alguma forma todos aqueles elementos estavam interligados, costurados de maneira confusa e muito além da minha compreensão. O meu cerne cético me implorava para parar de tentar criar teorias em minha cabeça, mas o meu lado curioso era maior.

Eu queria descobrir mais.

 

 


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Notas finais do capítulo

:D



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