Quando os Lobos Cantam escrita por Ladylake


Capítulo 28
Boas Maneiras


Notas iniciais do capítulo

Olha que capitulo fresquinho, acabadinho de sair do forno para vocês!

Boa Leitura~



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 Eu costumava temer o escuro, em criança. As trevas, lá fora, arrepiavam-me a alma e a pele, sempre que eu olhava para a floresta emergida em escuridão. Os corvos e as corujas intercalavam os seus cânticos, fazendo questão de deixar claro que a luz iria desaparecer a qualquer momento. Era como se se abrisse outra dimensão.

Um dia, o meu pai pegou-me pelo braço e levou-me para a floresta. Eu chorava, implorando para que não o fizesse, mas ele nunca olhou para mim. Caminhámos durante um bom tempo e percebi que nos estávamos a afastar bastante da Vila, até que o meu pai parou, de repente. O meu pequeno e fino pulso estava dorido e marcado dos seus dedos, mas haveria algo que me iria marcar muito mais para o resto da vida. Sem aviso prévio, o meu pai enrolou o meu pulso com a uma corda e atou-o a um carvalho e sussurrou:

Não temas as trevas, cria de lobo. Porque quando o sol deixa este mundo, o mundo teme-te a ti.

Eu não percebi o que o meu pai acabara de me dizer. Eu tinha nove anos. Nove. Como era suposto eu fazer frente a uma floresta mergulhada na noite?

Encontra o caminho para casa. Confia na floresta e ela confiará em ti, pois o respeito dela não é ganho, mas sim merecido.

E eu mereci. Duas horas depois eu encontrei o caminho para casa. Voughan estava na rua, a caminhar de um lado para o outro, visivelmente nervoso e iluminado por uma vela só. Assim que me viu, gritou, anunciando o meu regresso aos meus pais. A minha mãe chorava agarrada ao meu corpo sujo de terra e arranhado, enquanto gritava céus e terras com o meu pai. Ele, no entanto, sorria. Eu tinha conseguido, mas o pânico que eu vivera no meio daquelas árvores nunca mais sairia da minha cabeça, e num sussurro rude, ele terminou:

 Um lobo que teme a escuridão, não é digno da lua que o ilumina.

 

 

 

 

De forma calma e serena, Nour abre os olhos, sem pressa para olhar para o que está em volta. A mente dela ainda está a tentar perceber se ela está viva ou morta. As pálpebras pesam e os músculos do corpo doem, como se tivesse sido espancada. Num gemido, ela tenta erguer-se do chão frio e finalmente olha em redor. É uma sala branca. Não há portas ou janelas e a luz branca e intensa faz arder a vista. Nour esfrega os olhos, múltiplas vezes, e acaba por olhar para ela mesma. A roupa que veste é diferente. Em vez da sua camisola de cavas branca e jeans, um macacão azul-escuro e justo foi-lhe vestido, juntamente com uma chapa escrita com um número. Não há sapatos. Nour está descalça.

O som de uma campainha faz-lhe rodar figurativamente as orelhas, e a parede por de trás dela move-se, dando lugar a um vidro escuro. Nour cerra tanto a sobrancelha como o maxilar, perguntando-se o que raio será aquilo.

— Finalmente, estás acordada. – Uma voz ecoa pela sala.

Uma silhueta no vidro começa-se a fazer notar, quando Nour olha com mais atenção. É Raphael e parece não estar sozinho. A “Loba Preta” responde com um simples rosnar e aproxima-se do vidro sem desviar o olhar do velho.

— Onde é que eu estou? Como é que eu estou viva? – Pergunta num tom ameaçador. Raphael sorri, do outro lado. – Responde! – Ela bate no vidro. –  Ou eu arranco-te as entranhas e dou-as de comer aos corvos.

O sorriso de Raphael desaparece e de repente, um grupo de soldados entra pela sala adentro, gritando para que ela se coloque de joelhos no chão. Armas são-lhe apontadas. Nour não tem solução senão obedecer, de braços levantados e olhar fixado no chão. Mais soldados entram na sala, desta vez acompanhados por Raphael, que segura algo que Nour conhece bem.

— Lembras-te disto? – Pergunta o velho, abanando as correntes nas suas mãos. – Porque não vamos dar um passeio?

— Porque é que não vais tu?

Nesse exato momento, a corrente elétrica de um taser percorre-lhe o corpo. Nour resmunga de dor.

— Filho de uma…

— Vamos tentar novamente. – Raphael aproxima-se e agacha-se à frente dela. – Porque é que insistes em dar luta? Com o teu amigo foi tão fácil…

Nour sente a raiva a subir e o sangue a ferver-lhe nas veias, assim que o velho ousa mencionar a morte de Bear. Os seus dentes rangem e cerram uns nos outros, desejando estarem a mastigar a carne e a arrogância do humano diante dela.  A “Loba Preta” levanta a cabeça e fixa os olhos selvagens em Raphael, que não treme, e relaxa os ombros da postura de ameaça ao ver que o velho não se intimida. Ela não tem forças para mantê-la. Demasiado quebrada ainda. De olhar submisso e cabeça voltada para baixo de novo, Nour dá um passo para trás e estende as mãos, para que Raphael a prenda.

— Parece que sempre vamos dar o nosso passeio. – Ele sorri.

 

 

 

******

 

 

 

Um novo dia tinha nascido nas montanhas altas, mas o terror que se vivera na noite anterior, ainda estava bem aceso. O sol quente de junho e a manhã linda de verão, ilude. O perigo não passou. Todos perderam um pouco de si mesmos ontem à noite.

Ignis coloca a mão à frente dos olhos para tapar o sol, ao sair da gruta, e olha em frente. Nanuk está sentado na ponta da pedra, a brincar com um galho, mas a mente do Husky está bem distante daqui.

Ignis sorri, embora um sorriso sem grande gás e aproxima-se dele. Nanuk olha por cima do outro, ao ouvir passos, mas volta a cabeça para a frente logo de seguida. Uma das mãos dela acariciam-lhe as costas e os seus lábios cumprimentam o pescoço dele com um pequeno “bom dia”.

O Nanuk de há uns dias atrás tinha-a puxado para si mesmo e não se contentaria com um simples beijo, mas a manhã de hoje não veio limpar a noite de ontem. Mesmo assim, Ignis tenta animá-lo e senta-se ao lado dele. A mão macia e fina dela massaja-lhe os cabelos pretos. Nanuk ergue a cabeça e fecha os olhos, completamente derretido pelos mimos.

— Isso é tão bom…– Murmura num sorriso.

Ignis para e desce a mão para o queixo dele, virando-o para ela. Os olhos castanhos claros dela partilham a luz com os azuis de Nanuk. Sem aviso prévio, Ignis rouba-lhe um beijo.

— Onde está a Kaira? – Pergunta. – Ela está melhor? A Nour e o Ívar apareceram?

Nanuk nega e faz um sinal com a cabeça, apontando para um canto da floresta um pouco mais abaixo. Kaira está num monte de flores selvagens, quase escondida e a brincar com algo.

— Eu e o Luckyan vamos à procura deles. Ver o que conseguimos encontrar. Talvez tenham deixado alguma pista para trás.

— Nanuk por… – Ignis começa, mas Nanuk interrompe-a.

— Já está decidido. Vou precisar que fiques aqui a olhar por ela. – Pede segurando o rosto dela. O Husky inspira e expira fundo antes de continuar. – Se alguma coisa lhe acontece… – Ele trava. – Ela é importante para a minha irmã, então eu não posso fazer merda.

Ignis assente.

— Sabia que poderia contar contigo. – Nanuk dá um sorriso e um olhar de alívio, antes de depositar um pequeno e curto beijo nos lábios dela. – Vou à procura do Luckyan. Tenta falar com ela, talvez ela se abra mais se fores tu.

Nanuk levanta-se e o fumo preto envolve-o, dando lugar ao seu outro lado. O lobo branco e preto encosta a cabeça lupina no ombro de Ignis como forma de “até já”, antes de saltar lá para baixo. Kaira ouve as enormes e possantes patas dele aterrarem no chão e olha para trás, onde Nanuk dá um leve olhar para ela, antes de desaparecer na floresta.

Ignis sacode-se e ergue-se do chão. A brisa fresca montanhosa de verão faz esvoaçar-lhe tanto o vestido bege como os cabelos cor de cobre. Ela olha para Kaira, no seu mundo, e suspira. A pobre criança precisa de se distrair.

Ignis regressa para dentro da gruta e volta com um cesto. Com cuidado, ela tenta descer as rochas escorregadias e pontiagudas sem se matar. Kaira observa a cena desastrosa por cima do ombro, perguntando o que Ignis estará a tentar fazer.

— Hey… – Diz Ignis, anunciando-se. Kaira não lhe liga nenhuma. – Hey Kaira…

— Eu ouvi da primeira vez. – Rebate a menina de dez anos. Ignis morde o lábio e bate com a palma da mão na testa. Bom começo.

— Queres ir apanhar algumas bagas? – Pergunta animada. – Os homens vão sair, pensei que pudéssemos fazer-lhes uma surpresa.

Kaira olha para ela. Ignis esforça-se para dar o seu melhor sorriso e abana o cesto nas suas mãos.

— As melhores bagas só são apanhadas no fim do verão. – Responde a criança. – Se as fores comer agora, vão ser todas amargas.

Ignis acabara de levar uma chapada sem mão. Ela suspira e senta-se ao lado de Kaira, e percebe finalmente o que ela estivera este tempo todo a fazer.

— É uma coroa de flores? – Pergunta Ignis ao maravilhar o arranjo de galhos e flores selvagens. Kaira encolhe os ombros.

— Estava a tentar que sim… – Responde, abatida. – Mas não está a sair da forma que a minha irmã me ensinou...

Ignis abraça as pernas e faz uma expressão triste.

— Algo de mau aconteceu-lhe, não foi?

Ignis fica surpresa. Kaira nem sequer olha para ela e continua a decorar a coroa. É notável alguma maturidade, apesar dos dez anos.

— Não. – Ignis sorri, tentando despreocupar o assunto. – É a tua irmã…, mesmo que ela não esteja bem agora, ela dá um jeito. Ela sempre dá…

— Podes segurar aqui? – Kaira ignora o que Ignis acabara de dizer e estende a coroa de galhos, para que esta segure.

— Desculpa querida… – Ignis esconde as mãos. – Eu tenho medo de a queimar. Sabes… – Ela trava. – Não és a única a lidar com coisas novas, então… pensei que talvez pudéssemos nos apoiar uma à outra.

Kaira olha nos olhos dela. Ignis sente que finalmente ganhou-lhe a atenção.

— Sem rapazes? – Questiona. Ignis sorri.

— Não sei se isso vai ser possível. Eles são lobos…tal como tu. Eu sou apenas…alguma coisa. – Ignis olha para as mãos dela. – E se o Luckyan ensinou muitas coisas à tua irmã, também te pode ensinar a ti.

Uns segundos de silêncio pairam entre elas as duas.

— Talvez tenhas razão. – Sussurra Kaira. – Sabes, talvez para comer não sirvam, mas podemos apanhar bagas para fazer geleia. Encontrei açúcar num dos sacos do Luckyan.

Ignis sorri e assente.

 

 

 

******

 

 

 

Cinco horas de viagem já tinham passado, mas para Aslam, pareceram cinco dias. O “Lobo Branco” resmunga, pela milésima vez, e troca olhares sérios com Malika, no banco da frente. Os olhos dela rebatem desprezo. Saaya olha para ele de testa franzida. Ele está a ser mais irritante do que normal.

—Então, floco de neve… – Provoca Aslam. – Vais finalmente dizer-nos como te chamas ou vai permanecer um mistério?

Malika olha para ele indignada e depois para o albino de óculos escuro e boné, no lugar do condutor. Durante dois segundos, ele olha para Aslam pelo retrovisor.

— Acho que vou permanecer um mistério. – Acaba por responder, voltando de imediato os olhos para a estrada. A voz dele é profunda e calma.

— Porquê? És um assassino procurado? – Aslam volta a ripostar.

— Talvez. Então é melhor calares-te, antes que eu faça o teu corpo nunca mais ser visto.

— Eu adoraria te ver tentar. – Aslam sorri de orelha a orelha. A heterocromia nos seus olhos de repente muda para um completo amarelo luminoso.

— Tens a certeza disso, Beta?

O Albino sorri e ameaça calmamente, enquanto desce os óculos escuros um pouco para baixo, revelando os olhos sangrentos para Aslam, através do espelho. Malika encara-o também, com os olhos carregados da mesma cor.

Aslam retira o sorriso de gozo e solta uma expressão séria, mas submissa. Saaya está nervosa e pronta para atacar, mas de repente, eles começam-se a rir. Os lobos do banco de trás não entendem e olham um para o outro, confusos.

— Se vocês pudessem ter visto as vossas caras! – Gargalha Malika, limpando uma lágrima no canto olho.

— Nós estávamos a brincar, relaxem. Chamo-me Nodin…, e Aslam… – Ambos se olham. – Não saias por aí a provocar tudo e todos. Quem procura, acha.

Aslam cruza os braços carrancudo e encolhe-se no banco. Malika olha para ele com um sorriso provocador, antes do jovem de vinte e nove anos resmungar algo e desviar a heterocromia para a paisagem.

Mas Aslam não era o único prestes a aprender esta lição. Nour estava farta, mas por mais que se debatesse ou tentasse soltar-se, tudo ficava na mesma. Às vezes até pior. Correntes nas mãos são suportáveis, mas no pescoço, qualquer um se sente um animal. As mesmas estrangulam, não só a garganta, como o espírito.

 

Eu estava a ser tratada como um perigo. Eu o era, na realidade. Parte de mim não podia julgar por me manterem tão presa. Só um erro. Apenas um pequeno deslize ou falta de atenção, e eu matá-los-ia. Eles sabiam que as suas próprias vidas estavam dependentes daquelas correntes.

Agora, eu fazia alguma ideia de onde estava. Parecia uma antiga prisão. Havia lobos e guardas por todos os lados. Um trio de soldados passou por mim, com uma mulher sendo levada por eles. Eu não tirei os olhos dela e ela olhou para mim. Um olhar vazio, que foi rapidamente desviado. O sorriso nos rostos dos soldados e a desistência dela fizeram-me perceber o que lhe iria acontecer. Parecia ser um hábito.

Eu parei os pés e travei. Os meus olhos continuaram a olhar para a mulher sendo levada, ao longo do corredor, mas rapidamente os soldados começaram a puxar-me de novo.

— Anda. Não temos o dia todo.

Mas eu não mexi um passo.

Eu disse para andares!

— Soldado, não!

 

Um soldado parte para cima de Nour, sem pensar duas vezes no que lhe poderia acontecer. Num movimento rápido, ela desvia-se e mesmo com as mãos acorrentadas, enrola a corrente à volta do pescoço dele. O pânico e o caos instalam-se de um segundo para o outro, e enquanto os restantes guardas seguram o fogo, o companheiro está a ficar azul. Raphael abre caminho entre eles e levanta o braço, ordenando sem palavras para que não disparem. Nos braços de Nour, o soldado debate-se e esperneia as pernas, aflito.

— Nour. – Chama Raphael. – Larga-o.

— Libertem aquela mulher e eu largo-o.

A jovem de vinte anos aperta ainda mais. Raphael demora a agir, mas depois de um breve olhar entre os soldados e de um suspiro, ele concorda.

— Está bem. – O velho faz um gesto. Dois militares saem a correr. – Agora deixa-o ir.

Nour franze a sobrancelha, hesitante e desconfiada. O homem já mal se mexe, enrolado nas correntes.

— Nour.

A “Loba Preta” relaxa os braços e encolhe-os, desprendendo assim as correntes do soldado, que tosse, caído no chão. Outros militares largam as armas e vão a correr, socorre-lo. Raphael aproxima-se de Nour, mas esta adianta-se:

— Eu sei que vou pagar… – Sorri. – Mas não quero saber. Aquela mulher está salva e quanto a mim… –Ela pausa. – Dê o seu melhor, velhote.

Mal sabia Nour das consequências que a suas palavras iriam ter. Arrastada por dez homens, ela é levada para uma cela isolada, numa ala à parte de tudo o que vira até agora. Encostada à parede à força, ela debate-se para não ser presa, mas em vão. Os clic das correntes anunciam o fim à liberdade.

Nour acaba de joelhos no chão e de braços abertos e presos. Ofegante, olha em frente. Os militares abrem espaço e deixam o velho passar. Nas suas mãos, uma bengala balança de um lado para o outro.

— Está na altura de te ensinar boas maneiras.


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Notas finais do capítulo

Ai Ai fudeu!

O que será que vai acontecer agora??



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