Quando os Lobos Cantam escrita por Ladylake


Capítulo 29
Abraço de Grupo


Notas iniciais do capítulo

Olhem olhem quem está aqui de novo!
Euzinha~

Espero que gostem ~



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Calgary, Canadá, 10 meses antes

 

 

— E então? Temos acordo?

 

 

O velhote levanta o olhar do papel e encara-me com um ar neutro, assim que a minha boca dispara a palavra “acordo”. Ele não responde de imediato e parece pensar, enquanto roça o indicador por baixo do queixo. Consigo ouvir os dedos dele a raspar na barba esbranquiçada.

Mesmo com dificuldade, engulo e cerro os ossos do maxilar. Tenho a sensação de que todos os poros do meu corpo se abriram de uma vez. Finalmente, ele sorri e sinaliza para que um soldado avance, carregado com uma mala.

­– Toda a gente, menos a tua irmã?

— Toda a gente, menos a minha irmã. – Respondo firme. – Pode fazer o que quiser com os outros. Matar, decapitar, violar, esquartejar..., eu não quero saber. Mas a minha irmã está fora.

O velho sorri, como se estivesse satisfeito. Não pela minha resposta, mas sim pela frieza acompanhada com as minhas palavras.

— Os quinhentos mil dólares acordados. – Ele aponta com a mão para um soldado com uma mala nas mãos. – Ah, e mais uma coisa…

A minha atenção rapidamente dirige-se para a porta, onde uma jovem com cabelos cor de fogo, acaba de entrar. Num vestido cor-de-rosa claro, justo e comprido, ela tenta abafar o ar acanhado e tímido pela nossa presença. Ela entra na sala, mas não diz uma palavra e mantém-se encostada num dos cantos, com as mãos atrás das costas.

— Ignis, querida. – O velho chama-a. – Vem aqui.

E ela vem, como um cão viria ao seu dono ou um Ómega ao seu Alfa. Raphael levanta-se e eu faço o mesmo. A jovem encara o chão e roça a sapatilha no soalho.

— Ignis, não sejas tímida.

Num movimento rápido, o velho empurra-a para cima de mim. As mãos e a cara dela embatem em cheio no meu peitoral e eu afasto-a imediatamente.

— Eu não preciso de uma mulher. – Resmungo de sobrancelha levantada. – Ainda por cima, humana. – Os meus olhos medem-na de cima a baixo. – Tenho a sensação de que se lhe toco, ela desintegra-se.

— Vê como uma recompensa extra pelo teu gesto. – Diz Raphael. – Tudo o que tu quiseres, pede-lhe, mas sentimentos românticos está fora de questão. Não pisem o risco. Não vou tolerar esse tipo de relação dentro das minhas paredes.

— Ela não faz o meu género.

— Ele não faz o meu género.

Ambos os nossos olhares se miram um no outro, e desviam-se rapidamente. Depois de um suspiro, pego na mala com o dinheiro e preparo-me para sair da divisão.

— Cumpra a sua parte do acordo. – Começo. – Nós, os lobos, podemos virar o jogo a qualquer momento.

— Isso é uma ameaça? – Pergunta o velho.

— É um conselho.

 

 

 

 

******

 

 

 

As notas deslizavam pelas minhas mãos, como se fossem manteiga. Os números “100” e “200” passavam à frente dos meus olhos, somando cada vez mais, até que um pequeno e quase inaudível batimento na porta do quarto, interrompe a contagem. Eu dou permissão e um ponto alaranjado espreita para dentro do quarto.

— Oh, és só tu. – Sussurro, voltando de novo a atenção para o dinheiro.

— Eu… – Ela começa. Eu encaro-a, à espera que continue o monólogo. – Eu trouxe-te o jantar… – De repente, ela pega um tabuleiro enorme do chão e entra, depois de fechar a porta com as costas. – Eu não sabia o que gostavas, então trouxe um pouco de tudo…

Ignis tencionava colocar o tabuleiro em cima da cama, mas ao ver o monte de notas espalhadas pela mesma, decide pousar a comida em cima da mesa de cabeceira.

— Então… – Ela começa a falar novamente. O meu olhar de frustração e impaciência abate sobre ela. – Tu és um lobo?

— O que eu deveria mais de ser, princesa? Um unicórnio?

Um breve “Hmpf” ecoa da boca dela, mas a expressão de arrependimento e nervosismo invade o rosto dela assim que percebe que eu ouvi.

— Desculpa, eu não…

— Estás com medo de mim? – Pergunto num tom de brincadeira, enquanto me levanto. 

— Não. – Ignis tenta manter-se firme, mas a elevação acelerada do peito dela indica o contrário.

— Tresandas a pânico. – Sorrio.

— Eu não posso ter pânico de algo que não conheço. – Ela rebate. – Nem sequer sei o teu nome.

Num movimento rápido, mas suave, dou um passo em frente com os olhos cobertos de azul incandescente. Os meus lábios encostados ao ouvido dela, fazem-na arrepiar os cabelos ruivos da nuca.

— Nanuk.

 

 

 

 

Nanuk eleva-se no ar, saltando dos arbustos nas suas quatro patas e depara-se com Luckyan já à espera dele, pintado nas suas cores. Um silêncio tenso enrola ambos os lobos num ambiente desconfortável e perdura durante longos segundos, até que o Alfa decide dizer algo:

— “Estás atrasado.”

— “Eu não estou atrasado. Tu é que te adiantaste.”

Luckyan não responde. O seu simples virar de rosto e de costas é suficiente para Nanuk soltar um breve rosno de desdenho. O Alfa começa a caminhar em direção às redondezas da Vila e o Husky segue-o, embora mantendo a distância. Trinta minutos se passam assim, sem que um não diga nada ao outro. A tensão entre os dois é tao grande, que só poderia ser cortada com os dentes de Fenrir.

Resguardado pela folhagem de verão, Luckyan trava e olha para a Vila, morta e silenciosa. Nanuk chega, logo atrás, e faz uma expressão lupina desconfiada.

“Está tudo quieto.” — Analisa Nanuk.

“Demasiado quieto.” — Luckyan rosna. – “Vem, vamos descer e dar a volta. Não vamos encontrar nada deste lado.”

Os lobos descem a colina, sempre mergulhados nos arbustos e na vegetação densa e viva de junho. Os olhos e as orelhas deles estão sempre a mexer de um lado para o outro, em busca de potenciais perigos. Estão demasiado perto da Vila.

De repente, Luckyan sente alguma coisa e para. O seu nariz preto e molhado fareja o ar freneticamente, desejando estar enganado no cheiro.

— “Sentes o odor?”— Interroga, ao virar-se para trás. Nanuk eleva o nariz no ar e rosna de seguida.

— “Sangue.” – Conclui.

Ambos correm, apressados e desejando não encontrar Nour morta debaixo de uma árvore ou escondidas nos arbustos. Luckyan para e verifica se continuam no caminho certo, mas é Nanuk que apanha o cheiro da irmã.

— “É dela.”— Resmunga. – “Por aqui!”

O caminho termina no antigo rio, agora seco. Nanuk desce as margens do rio e fareja o chão do mesmo, agitado. O Alfa envolve-se no seu fumo preto e a forma humana vem ao de cima. Os seus olhos, agora num tom azul acinzentado, encaram uma poça arroxeada no solo. Luckyan aproxima-se e agacha-se para pressionar os dedos na mistela esquisita. “Belladona”— Pensa. Um pouco mais à frente, uma poça de sangue muda a tonalidade do chão. Nanuk, já humano, aproxima-se e diz:

— Há marcas de pneus e pegadas militares por todo o lado. Ela foi apanhada…

— E envenenada. – Luckyan levanta-se e mostra os dedos pintados de roxo e vermelho. – Mas ela não estava sozinha. A segunda poça pertence a outro lobo.

— Ívar. – Finaliza Nanuk. O Alfa assente. – O que fazemos agora…?

— Eu não sei…

O punho de Nanuk acerta em cheio nas mandibulas de Luckyan, que dá dois passos para trás, desorientado com o soco. Um pouco de sangue salta dos lábios do Alfa, em dificuldades para se manter em pé.

— Tu não sabes?! Não eras tu que sabias sempre tudo? O grande macho Alfa Luckyan, que se enche a ele próprio sempre de moral, mas que tem mais falhas do que nós todos juntos! – O Husky grita, apertando ainda mais o colarinho. As veias dos seus braços erguem-se de debaixo da pele. – Eu juro-te por Fenrir, Luckyan…, eu já não sou aquele pequeno miúdo que tu criaste nestas montanhas, há vinte anos atrás. Eu cresci, assim como a minha raiva e o sentido de fazer as coisas à minha maneira… – Pausa. – Se alguma coisa acontece à minha irmã, eu mato-te.

Os olhos dele. O incandescente azul gelado, característico de Nanuk. Poderiam entrar dentro do teu ser e agarrar-te a alma pelo pescoço. O jovem menino calmo, mas traquina, tinha crescido e se tornado num homem. Um homem que não é bom, mas que também não é mau. Um anti-héroi, que luta contra ele mesmo todos os dias, para que a revolta e a fúria não lhe tomem o espírito. Que não lhe tomem o sentido de viver.

Nanuk larga-o, mas não desvia o desdenho e a raiva do Alfa. Depois de um suspiro, ele pergunta:

— Tu realmente a amas?

O coração de Luckyan para de bater por um segundo. Os ombros dele relaxam, e, de repente, uma manifestação de desalento e amargura tomam conta das suas feições. O sangue no canto da boca ainda escorre, mas vagaroso. O jovem Nanuk espera por uma resposta, que tarda em demorar.

— Qual é o homem que ficaria indiferente, perante ela? – O Alfa acaba por murmurar.

— Ela não é um pouco nova para ti? – Contesta o Husky.

— A Ignis não é um pouco velha para ti também? – Devolve Luckyan de sobrancelha levantada. Um “Tsc” ecoa dos lábios de Nanuk. – Quando um lobo se apaixona, é para a vida. Aquela pessoa vai ficar presa a ele como correntes. É como uma prisão… – Sussurra. – Não há morte, tempo ou vida que a cessa. O vento não leva o sentimento…nunca.

Mal ele termina as doces palavras, uma brisa de verão refresca os dois homens, que se encaram. Nanuk não diz nada.

— Já sabemos o que aconteceu, vamos embora.

 

 

 

*****

 

 

 

O antigo e gasto relógio bate as cinco da tarde, na sala de Miroslav, o que significa que é hora do chá e bolinhos artesanais. O ex-médico da segunda guerra mundial liga a televisão, mas foca o olhar e a atenção no jornal desportivo, para ficar a par dos mais recentes resultados.

Alguém bate à porta. A brutidão do som, faz Miroslav franzir a testa. O pobre velhote conta com os dedos de apenas uma mão, quando vezes recebera visitas.

—Polícia! – Alguém grita do lado de fora. Miro levanta uma cortina da janela da sala e por um breve segundo, faz contacto visual com um militar, antes de a fechar num ápice.

O velhote começa a suar frio. Ele sabe que não é polícia, mas mesmo assim, dirige-se para a entrada. A mão dele trepida, enquanto encurta a distância entre a ponta do dedo e a maçaneta da porta. Miroslav inspira fundo. Ele sabia que este dia iria chegar.

Assim que a abre, três soldados entram de rompante e socam o velhote, que cai para trás. Dois deles seguram-no pelos braços e mantêm-no no chão de joelhos. Da boca de Miro, pingas de sangue e cuspo escorrem para o soalho de madeira escura. Desorientado, mas ainda lúcido, ele olha em frente, onde a luz do sol encadeia-lhe os olhos. Uma figura escura e preta aparece e estagna à entrada, ao mesmo tempo que o encara. Miroslav não se apercebe imediatamente de quem se trata, mas o som das botas pesadas militares a caminharem numa lentidão moribunda, dão-lhe uma enorme pista.

O velhote não se debate e simplesmente continua a fitar o homem – agora sem luz que o encadeie – enquanto este se aproxima. Miro num sussurro, diz um nome:

— Gabriel…

 

 

 

*****

 

 

A noite já tinha caído há algum tempo, nas vastas montanhas e florestas em redor do Lago Moraine. Mas engane-se quem pensa que estas terras não têm donos. Elas têm. Os corvos e as corças fazem o papel de príncipes e princesas. Discretos, mas existentes. As corujas, rainhas da noite, vigiam as entradas e saídas dos seus reinos, com o objetivo de salvaguardarem os seus amados reis: Os lobos.

E da densa e escura floresta, quatro deles saem, correndo como uma manada de cavalos selvagens em debandada, mas por vezes, as suas patas parecem que não tocam uma única vez no chão. Parecem levitar.

Na gruta, Ignis e Kaira aconchegam-se no pelo branco e preto de Nanuk, que descansa junto à fogueira. Luckyan está lá dentro, no seu quarto, e de lá não sai há várias horas.

O Husky roda as orelhas, quando parece ouvir barulhos do lado de fora e levanta a cabeça lupina, quando os mesmos se intensificam.

Num rosno desconfiado, ele encara a entrada da gruta, tapada com rochas e vegetação arrancada. Ignis acorda e acaricia o pelo grosso, mas macio do lobo branco e preto. Nanuk não resiste em abanar a cauda, quando sente as mãos dela massajarem-lhe o pelo.

— Está tudo bem? – Pergunta Ignis num murmuro.

“Eu acho que está algo lá fora.”— Responde Nanuk com um rosno. – “Vai chamar o Luckyan”

Ignis pega na Kaira e levanta-se, em busca do Alfa, enquanto Nanuk sacode-se e caminha para a entrada da gruta de dentes arreganhados. Num movimento rápido, o Husky salta e ataca qualquer que seja a coisa que está neste momento debaixo das suas patas, prestes a morrer. Os seus gélidos olhos azuis relaxam, assim que vê quem é.

— “Aslam?” — Pergunta surpreendido, mas feliz, ao mesmo tempo que sai de cima dele. 

— “Nanuk?” — Aslam devolve, igualmente surpreendido e animado por ver o velho amigo.

Como duas crianças num recreio, o Husky e o “Lobo Branco” brincam, mordendo-se um ao outro. Aslam puxa gentilmente uma das orelhas de Nanuk, enquanto este lhe tenta morder a cauda.

Saaya coça a garganta, já humana e cruza os braços. Os dois lobos param a brincadeira, com a boca de Nanuk enfiada no focinho esbranquiçado de Aslam.

— Hey Nanuk. – Sorri Saaya. – Estou feliz por te ver deste lado da guerra.

— Eu também, Saaya. – Ele devolve o sorriso. – Eu também…

Luckyan desvia a folhagem, e arregala os olhos ao ver os seus betas diante dele, em carne e osso. Saaya aproxima-se do Alfa, de lágrimas salgadas a ameaçarem escolherem-lhe pela cara.

— Saaya, eu…

Um estalo de mão bem aberta ecoa pelos arredores. Os lábios de Saaya tremem, como varas verdes, enquanto os seus olhos amarelos luminosos fuzilam o Alfa perante ela, de rosto ainda virado. Ele remexe o maxilar e finalmente olha para ela.

— Como é que foste capaz?! – Ela grita. Luckyan não tem expressão.

“Saaya, tem calma...”— Pacifica Aslam.

— Não me digas para ter calma! Ele deixou-nos para trás!

Aslam baixa as orelhas como resposta.

— Tu não consegues evitar, não é? – Saaya continua. – Não há nada neste mundo que mexa mais contigo, do que um rabo de saias, que a única coisa que faz é arranjar problemas. E de repente, lá vais tu… – um riso irónico sai da boca dela. – Arriscar a tua vida…por alguém que não te ama.

Luckyan dá um passo em frente e envolve os seus braços à volta dela, para abraçá-la. Saaya não reague, muito menos devolve o abraço.

— Vá-la…– Sussurra ele. – Eu sei que tu queres…

Saaya desmancha-se em lágrimas quando sente o corpo quente e musculado dele, por debaixo da t-shirt. Aslam retorna a forma humana e aproxima-se para abraçá-los aos dois. O que começara numa briga, tornou-se num longo e sentimental abraço de grupo.

Nanuk cruza os braços já humano e revira os olhos, mas num movimento rápido, Saaya puxa-o com força.

— Vem cá, tu também.

— Esperem, esperem! Falta o Bear! – Ri Aslam. – Onde está o Bear?

Um silêncio estranho abate-se sobre os lobos, que olham para o Alfa e para o Husky, à espera de uma resposta. O abraço de grupo desfaz-se, assim como o sentimento de felicidade que ambos partilhavam ainda há poucos segundos.

— Luckyan… – Aslam olha para o Alfa. – Onde é que está o Bear?

— Ele está morto.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado ♥



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