Kadamon, A Travessia escrita por Kyrion


Capítulo 6
Canto 6




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O Kyrion andava a esmo, impaciente, por seu quarto, ignorando a dor no braço direito.

“Eu...”

Phiyo se desculpava e tentava encontrar uma maneira educada de sair logo dali. “...eu não sei...”

Aciru parecia preocupada, mas não o impediria de ir. Notou que o Kyrion evitava, discretamente, mover um dos braços.

“...eu nunca consegui... ter certeza...”

Passos apressados ressoavam nos longos corredores. Deveria ir ao curandeiro?

Não. Ele faria perguntas.

“... provavelmente me enganei várias vezes...”

Provavelmente era algo superficial, e ele mesmo enfaixaria o braço. Pronto. “É estranho...”

Estava em seus aposentos, e a faixa estava apertada no lugar, próxima a seu ombro. Tinha razão, era somente um arranhão reto.

“...Não devo ser exceção... todo mendeva...”

Estava muito inquieto, e ficava andando de um lado ao outro, suas palavras repassando infinitas vezes em sua cabeça.

“...tem seu elemento e seu mundo de origem...” Por ira e por cansaço, Phiyo atirou-se na cama. “...mas nunca consegui me encontrar.”

***

Seus olhos já fitavam o teto há um longo tempo, sem vê-lo realmente. Pensamentos que lhe ocorreram algumas vezes agora retornavam, fortes demais para serem rechaçados. Sentia-se perdido em um novo nível.

Não somente estava desnorteado sem saber qual função cumpria ali, ou qual sua razão de ser naquele momento – verdade que o espelho, por um tempo esquecido, mostrara-lhe friamente – como também se via estranho e perdido, mesmo se voltasse. Algo fundamental em sua natureza, que lhe devia constituir como a qualquer outro ser, não era senão uma lacuna.

Seu ferimento irritava-o. Parecia-lhe que eles surgiam sempre que algo importante o abalava. Mas não bastando a surpresa, tinha também que lidar com aquilo?

Talvez por cansaço, ou pela piedade infinita dos anjos, Phiyo foi poupado de mais tempo de especulações e maquinações cruéis consigo mesmo. Seus pensamentos dispersaram, e ele acabou por adormecer.

***

“Posso ajudá-lo?”

A voz suave e baixa do bibliotecário, seu amigo, tirou Kyrion de seus devaneios. Estava sentado na biblioteca, mas não pegara nenhum livro dessa vez. Algo diferente o atormentava. Voltou-se e encarou os olhos verdes do bibliotecário, emoldurados por seu rosto claro e ligeiramente barbado, por trás de seus óculos redondos. Magro como o próprio Kyrion, mas não tão alto, era um jovem adulto para seu povo (diferentemente de Aciru, este não viveria mais que dois séculos), mas reunia em si já muita sabedoria e inteligência. Expôs a ele seus pensamentos, por confiar em sua amizade e clareza de espírito.

“Acordei hoje com uma sensação diferente. Creio que sonhei, mas não um sonho comum. Algo diferente da sucessão de experiências de um sonho. Creio que sequer teve imagens. Mas havia ali certa presença.”

“Parece uma experiência interessante, Kyrion.” Disse o outro, sempre contido e polido nas palavras. “Temos livros que tratam das diferentes categorias de sonhos, projeções, transposições astrais, vislumbres inconscientes. Talvez possa elucidar a natureza de seu episódio essa noite.”

“Não foi uma vivência exterior a mim. Foi como... um processo criativo. Algo brotou ali, mas não me lembro de ter visto qualquer coisa.”

O outro lhe sorriu delicadamente, seu rosto sempre lhe permitindo apenas expressões amenas e suaves de emoção. “Mas meu caro, é claro que a criação não é um processo apenas de imagens. Estas são o efeito secundário de algumas criações. Se é este o caso, é algo mais especial que um sonho, e este livro que mencionei será de pouca utilidade.”

Kyrion torceu o canto do lábio, enquanto suspirava “Tinha esperanças que algo me clareasse as ideias.”

O bibliotecário ajeitou os óculos sobre seu longo nariz-focinho e repetiu o gesto de quase sorrir “Mas eu não disse para desistir de descobri-lo, Kyrion. Só acho que há coisas melhores para ajudá-lo do que aquele livro.” Ele apontou para um canto formado por duas estantes, próximas à sua própria escrivaninha; lá um objeto repousava sobre um tripé. “Aquilo por exemplo.”

Kyrion ergueu-se e se encaminhou para o objeto que o amigo lhe indicara, e este o seguiu poucos passos atrás. Uma vez próximo, conseguiu reconhecer o objeto como um instrumento de corda. Era semelhante a um alaúde com um braço mais longo, suas cordas de um belo prateado contra a caixa de ressonância de escura e polida madeira. Não era novo, mas era nitidamente alvo de excelente trato.

“É um instrumento incrível. De quem é, Nokto?”

O bibliotecário olhou para o chão, modesto, ainda que seus olhos não dessem qualquer sinal de constrangimento. “É meu, Kyrion, mas não o uso mais. Toquei quase bem quando lhe dediquei mais de meu tempo. Você sabe, coisas de jovem.” Kyrion notava como Nokto, oposto a Aciru, parecia envelhecer-se com seus poucos anos, enquanto a pequena atravessava séculos com sua juventude, incólume. “Pode usá-lo se quiser, ele gostará de cantar novamente sob as mãos de alguém. Está perfeitamente afinado e pode lhe fazer muito bem. Só peço a gentileza de fazê-lo em outro lugar. Não me entenda mal, é meu trabalho.” Ele completou, abarcando com o braço a biblioteca ao redor.

Kyrion assentiu “Claro. Mas não se importará mesmo se eu tomá-lo de empréstimo?”

“Como poderia um humilde bibliotecário negar algo ao Kyrion?” Nokto enunciava dramático. “Como poderia eu, Nokto Valgang, negar algo a um amigo? Além do mais;” ele acrescentou, retomando seu ar sereno “Não sou ciumento, e ele fará música com quem quer que se disponha a entregar a alma da forma certa, na ponta dos dedos. Ainda que... ele guarde suas canções principais, somente para mim.” Ele finalizou com um ar enigmático, dádiva da alma dos músicos.

“Vá meu amigo, e possa sua alma voar um pouco mais alto, outra vez. Desta vez galgando nas asas de uma das obras mais belas que as musas já sopraram aos mortais”.

***

O longo corpo sentou-se aprumado num banco que recebia seus primeiros raios de sol por entre as altas construções. Ainda estava fresco, e por ali passavam poucas pessoas. Parecia um bom lugar, um lugar perfeito.

Por alguma razão, não quis tentar tocar em seu quarto. Talvez aquele espaço aberto, próximo a um jardim, e com o ligeiro gorgolejar de uma fonte a alguns passos, pudesse inspirá-lo a fazer a coisa certa. Como estava quase vazio, não ia ferir os ouvidos alheios.

Apoiou o instrumento no colo e adotou a posição correta para tocá-lo. Escolheu o braço direito para dedilhar as cordas perto da caixa, enquanto a mão esquerda ficava no braço do instrumento. Mas não conseguiu fazer o som, porque seu arranhão ainda não o permitia.

Desceu o braço novamente, fazendo uma careta quando sentiu o ferimento voltar ao normal após o movimento. Pousou o instrumento virado para cima sobre as pernas, e decidiu experimentar as cordas dedilhando suavemente. Tentou as inúmeras vozes que elas emitiam, suas vibrações cálidas espargindo-se no espaço. Com pequenas pressões ao longo do braço, viu esses sons se transformarem, abrindo um leque infinito de possibilidades de criação.

Tocou-o mil vezes assim, apoiado sobre o colo, testando os sons diversos que o instrumento lhe devolvia, mas sem criar canção. Foi somente descobrindo o significado daquelas vozes. Os sons que produziam alegria, os que refletiam saudade, os que sustentavam angústia ou geravam expectativa; os tons que dançavam sozinhos a beleza da primavera de outros mundos, enquanto outras entoavam a melancolia do outono em sua brisa. Descobriu aquelas que se faziam cisma, e aquelas que sentenciavam sem perdão. Até aquelas que dançavam a mistura proibida e convulsionada dos amantes, que pareciam fazer de seus dedos algo como o próprio pecado.


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