Kadamon, A Travessia escrita por Kyrion


Capítulo 7
Canto 7




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/785911/chapter/7

O dia fez-se noite em novo ritmo, agora que o Kyrion preenchera-o com algo diferente. Quase se esquecera de comer, mas uma visita de Aciru, convidando-o para jantar com ela, o tirou de sua distração. Não sem algum prazer; depois de sua partida abrupta, temia que ela o evitasse. Afora um início de conversa um pouco mais contido, tateando o humor do outro, ela não demonstrou nada de diferente. E achando a disposição do Kyrion ótima naquele dia, logo sua precaução foi deixada de lado, retornando seu carisma usual.

O jantar estava agradável, o ambiente um pouco mais sereno e vazio que o habitual. Alguns minutos depois de terem se sentado, o simpático bibliotecário perguntou se poderia se permitir sua companhia. Logo, estava agregado ao lugar e à conversa.

“Espero que tenha desfrutado o prazer de sua nova companhia.” Disse Nokto em dado momento, lançando um olhar misterioso e um meio sorriso ao Kyrion. Este respondeu, antes de levar uma caneca aos lábios “Sem dúvida. Estamos nos entendendo muito bem. Mais uma vez agradeço.”

Aciru fingiu ignorar esse pequeno diálogo cúmplice. De qualquer maneira, era muito orgulhosa para perguntar.

***

Ali ficaram longamente, até que quase todo o ambiente estivesse vazio, e as mesas eram removidas para a limpeza do salão. Ainda assim, a despedida pareceu penosa aos três amigos. Kyrion seguiu para seu quarto com o peito leve.

Lá chegando, banhou-se na ducha quente, dispensando a pequena piscina sempre aquecida, cuja água era abastecida por uma fonte que jorrava constantemente, estando assim sempre limpa. Enfaixou novamente o braço e vestiu-se com conforto. Sentando na cama, viu outra vez o instrumento onde o deixara, pousado em uma bancada próxima. Ergueu-se e alcançou-o com o braço bom, para dele se despedir até o dia seguinte.

Mais uma vez encantou-se com a dezena de cordas, fortes e próprias para resistirem a uma mão com garras, ainda que Nokto não fosse delas dotado. Seus dedos tocaram-nas muito suavemente, temendo despertar ou incomodar alguém em um quarto vizinho. O instrumento pareceu compreender sua preocupação, correspondendo com sons amenos, quase sussurrantes. Aos poucos, o som preencheu o quarto, como se compusesse sobre os lençóis uma suave canção de ninar.

Embalado por este som, Kyrion viu-se mergulhando em um estado de transe, semelhante ao que tivera ao contemplar aquela manhã solitária e colorida muitos dias antes. Talvez por sentir no âmago tal familiaridade, não se espantou muito ao ver, sentado no pé de sua cama, seu amigo dourado.

***

“Vejo que descobriu um novo prazer.” Disse a voz suave, acompanhada sempre de um sorriso morno.

A cabeça prateada confirmou. “Eu... acho que tinha esperanças que você viesse. Pensei nisso algumas vezes.”

O sorriso morno permaneceu. “Você diz isso por causa do instrumento?”

Mais uma vez a cabeça clara concordou, um pouco mais baixa. Os olhos turquesa se negavam a encarar os do outro.

“Você acha que sou um mendeva do som?”

Kyrion suspirou, sabendo que não precisava responder àquela pergunta. “Lembro-me vagamente de você sempre cercado por música. E que sabia cantar.”

O outro inclinou a cabeça. “Deve também se lembrar que eu não fazia isso sozinho. Na verdade, até mesmo você cantava.” Ao ouvir isso, Kyrion ergueu a cabeça para ver o outro, encarando-o mansamente. Fez um esforço para lembrar-se e, de fato, viu que eles compartilhavam essa atividade... Com mais alguém, ao menos. Mas esse rosto lhe fugia. Não conseguia focar-se nele, embora visse, indistintamente, um indivíduo mais baixo que eles, movendo-se alegremente.

“Nós   temos   um   amigo   cuja   especialidade   é   a   composição   de   canções. Maravilhosas, para dizer o mínimo. Ele é um mendeva do som, e não eu.” Disse o dourado.  “Nós  muitas  vezes  cantamos  o  que  ele  compunha.  Você,  em  particular, ajudava-o grandemente.” A grande mão pousou no braço de Kyrion, que a sentiu como um ligeiro calor. “Sinto muito decepcioná-lo, ou confundi-lo ainda mais com memórias perdidas e entrecortadas. Mas ainda posso ajudá-lo com o instrumento, se assim quiser.” Kyrion sentia-se ligeiramente confuso. Não sabia ainda se o outro o visitava em sonhos, visões ou algo semelhante. Esfriara muito, e ele sentiu necessidade de esfregar as mãos nos braços. “Sim, eu gostaria. Mas por favor...” devia ser mesmo um sonho, porque o outro não tinha nada cobrindo o torso, estando com as costas e o peito nus, e não dava o menor sinal de frio. “Se puder me responder, gostaria que dissesse por que sangro de repente, sem causa aparente?”

O rosto do dourado manteve-se sereno, mas suas orelhas baixaram quase imperceptivelmente. Kyrion reconheceu nisso um sinal de ligeira tristeza do amigo, e ficou satisfeito por recordar. “Foi... uma condição para sua experiência aí. Como barreira para alguns choques emocionais, você os sofreria de forma física. Deve ter notado algo dessa natureza por si mesmo. Mas não se ocupe demais pensando nisso.”

“Compreendo.” O frio estava ficando desagradável, ainda que o outro parecesse imune. “Mais um coisa. Por favor, me diga qual seu elemento. Ou seu nome.”

A boca do outro alargou-se num sorriso mais amplo. Um sorriso com presas afiadas, mas que nada tinha de ameaçador. “Sei que os reencontrará por conta própria, mas posso ajudá-lo. Vamos ver quanto tempo levará para adivinhá-los. Creio que um deles será bem rápido.” Um vento ameaçador se fez ouvir, invadindo o quarto. “Será melhor para você que eu parta agora, Phiyo. Mas voltarei em duas noites para ajudá-lo a tocar, se puder me receber.” E tão logo disse isso, o vento pareceu soprá-lo para longe, como se extingue a chama de uma vela.

Kyrion não teve tempo de protestar, ou manifestar sua ansiedade. Mas algo no fundo de seu peito estava ainda aceso, confiando no outro. Aceitou também o desafio proposto, saboreando o prazer divertido que tinha. O som do vento sacudiu-o de seus pensamentos.

Achou-se recostado na cama, com o instrumento atravessado no colo. Sua luz ainda estava acesa, e um vento gélido entrava pelas janelas abertas. Seu corpo tremia sob a camada fina de sua roupa, incapaz de mantê-lo aquecido. Seu braço direito latejava incomodamente.

Ergueu-se para fechar as janelas e apagou a luz. Pousou novamente o instrumento na bancada, e aconchegou-se nas cobertas da cama, sanando seu frio. Adormeceu quase imediatamente, mas não antes de constatar, com enorme alegria, que a beira de sua cama estava mais aquecida que o restante.

***

A luz invadia preguiçosamente o cômodo através do vidro das janelas fechadas. Nada restara do vento poderoso da noite anterior senão uma suave e fresca brisa, trazendo um ar mais puro a toda Kadamon.

Kyrion acordou aos poucos, o peso das horas de sono ainda nas pálpebras, o sabor de sonhos inacabados e confusos ainda na boca. Não sabia o que o despertara, mas acabou por notar as nesgas de luz das janelas.

Sua mente ainda embotada não reconheceu de imediato o que o fazia estranhar a cena; já acordara várias vezes ao amanhecer. E foi esse pensamento que lhe levou a perceber: sempre, nesse horário, seu quarto ainda estava escuro, porque o sol não batia nessa parte do prédio, demorando-se muito até erguer-se alto o bastante para atingir suas janelas.

Talvez naquele momento do ano o sol encontrasse um espaço qualquer para sorrir em suas janelas, passando por entre as outras torres. Um sorriso sonolento desabrochou por entre seus lábios. “Acabei por descobri-lo... só não me sinto mais vitorioso porque você disse que eu adivinharia rápido... e também acertou”.

Depois desse pensamento, Kyrion entregou-se ao sono ainda agarrado a ele, mergulhando no esquecimento e em seus cabelos espalhados, para desfrutar de umas últimas horas de sono.

***

Um café da manhã bem servido; uma manhã refrescante numa das bonitas praças; um pouco de jardinagem com um funcionário prestativo; flores belíssimas, com os aromas mais ricos. Um almoço farto na companhia do bibliotecário; uma discussão agradável sobre a poesia produzida pelos habitantes da torre; algumas horas de prática junto ao instrumento; sua voz melodiosa e agradável, agora já familiar. Um entardecer muito agradável no jardim de inverno com vitral, na companhia de Aciru; as guirlandas de flores trançadas por ela, para lhes coroar as cabeças.

Tudo isso compôs um dia magnífico. Mas nada disso o fez esquecer totalmente da noite que viria depois do amanhã.

Bom, talvez somente as coroas de flores.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Kadamon, A Travessia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.