Kadamon, A Travessia escrita por Kyrion


Capítulo 5
Canto 5




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A maior parte do trajeto de volta já estava realizado. Promessas sobre visitar o topo de outras torres em Kadamon estavam igualmente feitas.

A sensação de êxtase estava lentamente abandonando Kyrion, permitindo que seus pensamentos retornassem, timidamente. Com eles vieram muitas perguntas. Na verdade tantas, que ele tentou segurar ao máximo o vazio que o êxtase proporcionara. Mas por fim, deu-se por vencido.

“Todas as torres são habitadas?” a primeira pergunta, mais ágil, escapou.

“Até onde eu sei, sim.” Respondeu Aciru, sem se voltar. “Algumas são mais povoadas que outras, mas nenhuma ficou completamente vazia.” Ela pensou um instante. “E há aquelas que, dizem, têm somente um único habitante.”

As outras perguntas do Kyrion cederam lugar a uma invasora mais rápida, depois de recebida essa informação. “Como? Essa imensidão para um único ocupante?”

“Ponha a cabeça para funcionar. Quais situações poderiam ser estas, para um único habitante em uma torre?” Aciru ainda não se voltara, mas retomara seu tom de voz didático.

Kyrion pensou um pouco. “Bom, poderia haver um guardião para algum segredo...” Ao balançar afirmativo da cabeça de sua companheira, prosseguiu. “Algo que deve ser mantido fora de alcance. Talvez algo perigoso.”

“Sim, é possível. O que mais?”

Kyrion reprimiu um arrepio intenso que vinha por suas costas. “Alguém poderia ser prisioneiro numa torre destas, ainda que eu desconheça a proporção do crime que pudesse merecer tal punição.”

“De fato, e é melhor não conhecer tais crimes, Kyrion. Prossiga.”

Um arrepio ainda maior, capaz de afofar seu pelo o envolveu com o pensamento seguinte. “É possível ser o único sobrevivente em uma torre?”

“Nada diz que é impossível.” A outra respondeu, com voz cautelosa. “Suspeita-se, através de registros, que isso de fato já aconteceu. Uma torre tornou-se inoperante, e só veio a ser repovoada muitos séculos depois. Os últimos habitantes da geração anterior poderiam ter se extinguido... aos poucos.” Ela concluiu, talvez com algum travo de amargura na voz. Era uma possibilidade terrível. “Mas enfim... alguma outra ideia?”

Kyrion suprimiu a sensação deprimente que sentia apoderar-se dele, e seguiu pensando. “Não... não consigo pensar em mais nada agora.” Respondeu por fim.

A pequena suspirou “Você ignorou pelo menos duas possibilidades: a primeira é a de que algum habitante seja tão potencialmente letal para os outros, que tenha obrigatoriamente de viver sozinho.”

O Kyrion concordou. “É semelhante à condição de prisioneiro... mas talvez sem a intenção direta de prejudicar. Um mal involuntário, que impeça convivência.” Ele fez uma careta “Isso é terrível! Solidão, culpa, autodepreciação! Que condição miserável de se existir!”

A outra concordou “É verdade, mas nem sempre há escolha. Por sorte, nunca houve relato semelhante de tal condição se manter... por muito tempo.”

Kyrion preferiu não pensar qual seria a noção de ‘não muito tempo’ para um ser que vive milênios facilmente. “Certo, e qual a outra possibilidade que deixei de mencionar?”

“Ah, uma mais simples. A de que só caiba um habitante, excluindo, portanto, os outros.”

Kyrion quase parou de andar. “Você diz a chance de um ser ocupar toda a torre?” “Claro.” Comentou Aciru, com a naturalidade de quem constata que o sol brilha.

“Ah Kyrion, você já teve experiências com muitos tipos de seres. Sabe que Kadamon não tem uma diversidade, digamos assim, tão selvagem. Quer dizer, não há sequer um... quintípede!” ela exclamou “Ou um ser com um monte de tentáculos! Ou um vegetal ambulante, ou um ser mineral! Aqui são todos tão padronizados que chega a ser chato!”

O outro não conseguia classificar todos os seres que ali habitavam como semelhantes chatos, mas entendia a lógica da menina. “Então haveria a chance de, por exemplo, uma hera descomunal ocupar todos os espaços?”

“Uhm... uma hera eu não sei.” A pequena começou a descer o lance seguinte de escadas saltitando, dizendo uma palavra por degrau. “Seria, mais, fácil, um, ser, gasoso. Ou, um, ser, sonho.” Ela continuou saltitando.

“Existem registros de torres assim?”

“Sem dúvida. Há até uma torre habitada por ela mesma se você quer saber. O espírito dela, para ser mais precisa.”

O mendeva se sentiu satisfeito pelas informações que recebera sobre o assunto. Ou talvez temesse mais uma surpresa. Deu lugar a outra pergunta que tinha em mente um tempo antes. “É possível viajar de uma torre a outra?”

Aciru estancou. Talvez tenha levado alguns segundos para se virar, mas Kyrion não os contou, porque estava surpreso. Em seu rosto havia um olhar intenso, que ele nunca vira parecido antes. Não era acusador, nem irritado. Não estava magoado ou ofendido. Na verdade, parecia olhar para ele, e para dentro ao mesmo tempo, como uma janela. Por um breve segundo pareceu-lhe... dorido?

Ela virou novamente o rosto para frente e seguiu caminho. Sua voz não se alterou nem um pouco. “Sobre isso conversamos depois.”.

Estava claro o fim da conversa. Kyrion estocou todas as suas perguntas, para sacá- las em momento mais oportuno.

***

Kyrion temera que seu deslize imprudente pudesse ter ferido não somente o coração da amiga, mas também a pureza de sua ligação. Mas se houve ferimento, fora superficial, e ele estava perdoado, pois seu medo não se confirmou. Seu pequeno punho logo viria a bater-lhe à porta convidando a um passeio, ou oferecendo seus préstimos. Como último recurso para garantir seu perdão genuíno, o Kyrion pediu ao cozinheiro para preparar o creme gelado que a pequena mais gostava, em uma grande taça decorada, com granulados e pequenas frutas rosadas. Levando a taça, e outra semelhante para acompanhá-la, dirigiu-se aos aposentos de Aciru com o presente. O brilho nos olhos da pequena foi sua condecoração no acerto.

O creme era uma das poucas regalias “de criança” que ele já vira a pequena se permitir. Talvez uma das razões para sua parcimônia fosse o forte tom cor-de-rosa que resultava da fruta vermelha batida no creme, acentuando seu aspecto infantil. Para si, o Kyrion escolheu um creme com gosto semelhante ao café, com uma calda espessa de chocolate.

Os dois tomaram seus doces lentamente, às vezes brincando para ver quem comia com mais elegância. Aciru era impecável, mas o Kyrion gostava de fazer exageros teatrais e vê-la rir. Ambos diriam que fora uma tarde deliciosa.

***

As taças vazias repousavam numa mesa próxima. Aciru, sentada em um sofá, entretinha-se uma vez mais trançando os cabelos de Kyrion, sentado no chão à sua frente.

“Phiyo... do que se lembra sobre outros mendevas?”

Ele ficou pensativo. Gostaria de dar uma resposta completa, com informações ricas como as pequenas aulas que ela lhe oferecera tantas vezes, ou nas excursões através de Kadamon, que nunca cessaram de lhe encantar. Mas não conseguia reunir informações o bastante para tal. Somente fragmentos. Era o que tinha a oferecer.

“Sinto muito se a decepciono, não posso dizer tantas coisas...”

“Ora, pare com isso! Vocês foram lenda aqui por séculos! Agora posso ouvir alguma coisa verdadeira da boca de um mendeva, bem a minha frente!” Aciru interrompeu-o, a língua tão rápida quanto os dedos.

Kyrion sorriu. “Vou fazer meu melhor.” Ele pensou mais um pouco. “Se ainda estou claro nesse ponto... mendevas surgem junto da criação de praticamente qualquer coisa, ou energia, quando um novo plano de existência ou mundo está sendo feito. Dito de outra forma... se um novo espaço sideral está sendo criado, primeiro é feito o vazio, onde tudo será colocado. E junto ao vazio, surge um mendeva, eternamente ligado a esse elemento de ‘vazio’.”

Enquanto o Kyrion prosseguia, os olhos da pequena se acendiam ao verem histórias mitológicas e lendárias serem confirmadas por uma autoridade fora de dúvida. “Em seguida, posso dizer, viria energia, e um mendeva ligado a essa energia. Depois, acender-se-iam as primeiras estrelas, fazendo nascer o mendeva das estrelas. Consegue entender? Todas as coisas, os elementos básicos como fogo, ar, água e terra, e mesmo coisas muito mais sutis que compõem os mundos têm um mendeva que lhes é ao mesmo tempo protetor e irmão.”

“Sonhos, trovões, metal, virtual, arte...” O Kyrion interrompeu-se, lembrando-se do ser dourado que lhe fez uma visita nas varandas “às vezes coisas ainda mais simples, como uma estação... ou o luar. Todas essas obras, ao serem criadas, fizeram nascer um mendeva igualmente. E isso se repete em todos os mundos, de forma que há inúmeros mendevas que compartilham seu ‘elemento’ com outros, às vezes com pequenas diferenças. O que faz as estrelas brilharem não será necessariamente a mesma coisa em todos os mundos, por exemplo.”

A pequena, absorvida que estava, nem notara que cessara sua atividade no cabelo de Phiyo. Recomeçou uma trança, enquanto perguntava. “Os mendevas do mesmo elemento se parecem?”

Phiyo fez um esforço para se lembrar. “Em sua forma original, há alguma característica que compartilham, e por isso são facilmente identificados por outros mendevas, com poucas confusões. Mas essa característica é particular a cada elemento. Eu não me lembro de alguma, para poder citar. Fora isso, os mendevas podem variar bastante.”

Aciru mudou de posição no sofá, o que Phiyo interpretou como um sinal de ligeiro desconforto “Você está em sua forma original, Phiyo?”.

“Não.” A resposta fora tão rápida e natural que surpreendera ao próprio Kyrion. Era algo de que ele parecia estar seguro. Mas essa segurança cedeu rapidamente a certa insegurança e confusão “Pode ser... uma forma parecida com a original. Eu não sei dizer. Como esse mundo é um plano de transição acho que é possível manter algo da forma original. Nos planos de encarnação, acho que não é mesmo possível. Mas não posso afirmar o quanto está fiel... ao original. Acho que acabo me tornando aquilo que se forma em cada lugar...”

A confusão do Kyrion comoveu Aciru, que preferiu adiar outra pergunta possivelmente constrangedora, e optou por outra mais amena. “Vocês habitam mesmo um plano só de mendevas, como a história de Shambhalla?”

As orelhas de Kyrion baixaram “Acho que não é um plano. Não sei nem dizer se seria um lugar grande como a torre de Kadamon. Mais uma vez não posso ser preciso.”.

A resposta surpreendeu Aciru, que tentou disfarçar “E como vocês conseguem se reunir lá?”

Isso o Kyrion conseguia responder com mais segurança. “Como eu disse, mendevas nascem em diferentes planos. Cabe a outros encontrá-los e trazê-los para junto de si. Essas missões de busca podem ser mais rápidas ou mais lentas. Mesmo que seja fortemente intuitivo e ligado ao seu elemento, um mendeva desorientado ou perdido poderia ser perigoso para o plano em que está, distorcendo-o ou usando mal suas habilidades.”

“Mendevas ficam nesse novo plano como em uma nova casa?”

Kyrion deu de ombros, divertido. “Acho que sim, para a maioria. Outros podem ficar mais apegados ao mundo onde nasceram e visitá-lo às vezes. Mas é para esse ‘lugar’ que voltamos, quando cumprimos nossas missões ou completamos uma viagem, seja qual for o motivo. Estaremos de volta aos nossos semelhantes.”

Aciru notou, perspicaz, que o tom da voz de Phiyo estava um pouco diferente, mas concluiu que não era saudade ou tristeza que lhe emprestavam esse tom à sua voz. Era algo mais complexo, mais belo e mais antigo.

A pergunta seguinte, mesmo dita calmamente naquela voz meiga e amiga, ressoou alguns segundos no ar, impregnando as paredes, apegando-se às superfícies, turvando o ambiente. Cresceu e desabrochou ocupando todo o espaço, expulsando a  paz  pela janela; pois ela nunca habitaria o mesmo espaço que aquela recém-chegada monstruosidade.

“E qual seu elemento, Phiyo?"

Talvez o ambiente estivesse absolutamente o mesmo. Impregnado, turvo e caótico estava o coração de Kyrion.


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