Kadamon, A Travessia escrita por Kyrion


Capítulo 4
Canto 4




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Construções brancas ladeando uma subida de pedras. Estavam mais nítidas? Parecia que sim. Ou ao menos mais encantadoras. Muitas janelas estavam abertas, mas nenhum morador se fazia ver naquele ambiente, ainda estranhamente familiar.

A ladeira conduzia ao igualmente conhecido templo, ou castelo, com suas enormes portas de madeira cerradas, e, junto a elas, as portas menores, uma de cada lado. Como da visita anterior no plano dos sonhos, já há longo tempo, ele sentiu-se atraído pela grande construção, e tinha agora oportunidade de explorá-la, porque nenhuma voz haveria de chamá-lo.

Ele notou, não sem certa surpresa, que estava bastante lúcido, e que sabia desta vez estar dentro de um sonho. Não conseguia precisar quando ou como chegara ali; o começo dos sonhos é inatingível. Mas talvez fosse essa clareza que lhe permitia discernir melhor os detalhes do ambiente que o rodeava. O toque das pedras irregulares e arredondado era frio em seus pés descalços, mas mais uma vez o chão estava limpo. O único ruído era o som do vento passando pelas construções baixas, em suas varandas e colunas. Pare além delas, só via o céu cinzento, como se estivesse numa pequena ilha toda plana ao redor da elevação no centro, sem montanhas ou altas encostas nas margens, em um dia nublado.

A grande construção erguia-se, sua entrada semicircular com colunas espiraladas sustentando o teto. Mais uma vez, o Kyrion sentiu repúdio – ou seria timidez? – ao aproximar-se da porta principal. Dirigiu-se para a porta menor, à direita.

Trancada. Como o fora da última vez. Decepcionante.

Um vento um pouco mais forte agitou seus cabelos e o fez virar-se. O tempo parecia intensificar seu mau humor, tingindo o céu num funesto tom plúmbeo. Mas antes que pudesse se preocupar com uma possível tempestade, o Kyrion acordou.

***

As visitas ao quarto com o fatídico espelho rarearam aos poucos. Em nenhuma outra ocasião aparecera qualquer reflexo nele, além do estranho cinzento e da lúdica ideia que o espelho parecera sugerir na mesma ocasião. Seu reflexo bizarramente descabelado fora uma visão que ele guardaria por muito tempo.

Seus interesses foram se dispersando, enquanto o Kyrion desfrutava de sua recém- adquirida liberdade. Sem a deferência anterior, mover-se pelo complexo parecia mais simples, e os gestos dirigidos a ele eram motivados somente por honesta simpatia, e respondidas tal e qual. Tendo Aciru como guia, conheceu largamente as instalações do complexo, que parecia estender-se e desdobrar-se para todas as direções. As varandas, em geral guardavam vistas de jardins em outros andares ou mais varandas e janelas do complexo. Um dia, Kyrion não resistiu à pergunta:

“Aciru, por que nunca vemos a paisagem ao redor de Kadamon, mas somente outras partes dos prédios?”

A pequena pareceu surpresa com a pergunta, mas passados alguns instantes, riu-se com delicadeza. “Ah, Kyrion” porque ela, por discrição, ainda o tratava assim em público. “Você só não olhou dos lugares certos. Esse lugar se ergue em várias pontas, cada vez menores, mesmo tendo uma base única. Sabe, como dedos em uma mão” ela ergueu sua mão pequenina, e Kyrion não pode conter um riso de simpatia, ao imaginar coisa tão pequena representando aquele prédio descomunal. “Só que claro, teria mais dedos, mas também de tamanhos diferentes”.

“Então há uma torre mais alta e várias menores distribuídas ao redor?”

“Sim, mas há sempre uma base que as liga todas, em algum andar, além de várias pontes entre elas. Na torre mais alta, fica Pharis, o farol.”

Kyrion franziu o cenho. “Por que um farol? Há por perto um litoral?”.

“Não!” A pequena respondeu, didática. Sentia enorme prazer em  explicar  as coisas com riqueza de detalhes “É para comunicação. Ah, venha ver, será uma surpresa!”. Começou a andar decidida em direção a uma curva no corredor, sem sequer certificar-se de que o outro a estava seguindo. Claro que estava; era uma característica da imperiosa Aciru simplesmente partir, sem pegar ninguém pelas mãos ou sacudir-lhes as roupas para chamar a atenção. Ela não precisava. Simplesmente a notavam, simplesmente a seguiam, e pronto. Ela era notável. E era excelente guia.

***

Para os padrões daquele lugar, Kyrion considerou seu trajeto como entre médio e longo. Significava que percorreram vários corredores, subiram muitos lances de escadas – escadas estas que podiam estar nos lugares mais surpreendentes, e variavam grandemente em tamanho, largura, material, destino... – e tal distância o fazia ao menos considerável. Mas como não atravessaram nenhuma ponte, e ele não podia se considerar de fato muito cansado, tentou ser condescendente e não chamar o trajeto de longo.

Pegou-se pensando várias vezes, que muitos entes poderiam viver ali toda uma eternidade, sem jamais se encontrar. Havia locais e estabelecimentos para todas as necessidades, distribuídos ao longo dos andares, às vezes dispersos, às vezes reunidos por afinidade, formando núcleos diversos. As trocas ali também seguiam padrões diferentes, mas o Kyrion não as compreendia bem, pois recebia muita coisa por simples oferta.

Facilmente, alguém poderia restringir-se a uma área qualquer e lá permanecer, sem grandes contatos. Mesmo um grande explorador teria problemas para acessar todos os cômodos, e sua desproporção faziam do complexo algo impossível de mapear totalmente. Kyrion só se sentia seguro, porque várias vezes ouvira que sempre haveria alguém para guiar os perdidos de volta, ou ao menos em parte do trajeto – até outro guia um pouco mais adiante.

Outro pensamento ainda mais inquietante perpassou sua mente: o de que dois entes poderiam encontrar-se casualmente, passando, por qualquer capricho da fortuna, algum tempo juntos, para então seguirem seus caminhos. Somente depois, talvez muito depois, se dariam conta de que aquilo fora importante. Que algo dentro deles se modificara, ou que algum caminho fora traçado. Que algo que eles buscavam, e que lhes pertencia, estaria com o outro. Eles tentariam repetir o encontro, e resgatar a si mesmos. Mas jamais conseguiriam.

Tudo isso pensou o Kyrion enquanto seguia a decidida Aciru pelos caminhos tortuosos do complexo de Kadamon.

***

Todo o trajeto foi realizado em silêncio, e isso conferira um aspecto quase cerimonial à jornada que empreendiam. Apesar das muitas curvas e da dispersão das escadas, seguiram uma direção mais ou menos definida, o que, pensou Kyrion, talvez os estivesse aproximando da camada mais externa do prédio. Havia corredores maiores e mais amplos, com grandes arcos abobadados. Menos estabelecimentos, menos portas. Menos habitantes.

Não conseguia calcular a que altura estavam. Na verdade, nunca conseguira.

Por fim, viram-se frente a uma escada em caracol, seus degraus de pedra polidos pelo tempo de uso. A pouca iluminação vinha de ocasionais frestas na parede curva também de pedra, mas que não permitiam grande visão do exterior. De qualquer forma, Kyrion não quis olhar. Algo lhe causava mal-estar naquele ambiente.

Era uma subida longa, quase cruel. Um aperto no peito acompanhou-o durante toda a subida, piorando a cada passo, como se algo lhe tivesse lançado uma corrente desde o primeiro degrau e a subida fazia a corrente apertar-se atroz. Não havia sequer com o que tentar distrair-se. Sua observação ao redor rendeu-lhe apenas uma visão diferente: a pequena parecia ofegar ligeiramente à sua frente, algo que ele nunca a vira fazer, qualquer fosse a distância que tivessem percorrido. Mas nem por um momento diminuiu  o  passo,  ou  fez  qualquer  ruído.  Somente  o  movimento  de  seus  ombros denunciava essa sombra de cansaço.

Para seu alívio a escada cessou, e com ela as más lembranças. Viam-se não na frente de uma porta, como esperava, mas sob um alçapão. Kyrion abriu-o – pois estava destrancado, e suspendeu a pequena pela abertura. Apesar da rápida resposta de gratidão, sentiu a pequena irritar-se por ter sido erguida nos braços. Logo depois chegou sua vez, e com o apoio de pequenos degraus de madeira na parede, ergueu-se para fora da abertura.

A primeira sensação foi um vento adorável, fresco, como nunca sentira lá dentro.

A segunda tinha duas partes. Miudeza e imensidão.

***

Aquele era o topo de uma das citadas torres, uma das superiores, mas definitivamente não a mais alta. Era um espaço pequeno, circular, talvez pouco maior que a escada em espiral que lá desembocava. Era estritamente para observação, e por isso era circundado por um pequeno muro, tornando-se um mirante. A vista ali descortinada era indescritível.

Phiyo ficara tanto tempo sem respirar que simplesmente sufocara, esquecera-se do ar. Aciru não conseguia disfarçar sua satisfação com o espanto do outro, tendo um olhar esperto que seria de malícia se estivesse em qualquer rosto que não fosse o seu. Nela, era apenas deleite.

Ao redor deles, em todas as direções, era possível ver o topo de torres menores, de variados tamanhos e formatos; algumas tinham jardins, outros, pequenas praças com bancos. Uma tinha até mesmo um pequeno lago. Entre elas, precipícios sem fim, cortados por inúmeras passagens e pontes suspensas, que eles atravessaram tantas vezes. Não era possível imaginar quantas, e só aquela visão privilegiada permitia alguma conjectura.

Bem no centro, erguia-se a torre com o farol. Pharis era titânica: sua base comunicava-se com todas as torres ao redor, e tinha um tamanho incrível. Ao longo dos andares, reduzia-se, até ser relativamente pequena, no topo. Mas este topo estava muito, muito distante. Parecia estar no céu.

Kyrion tentou olhar por entre as torres e divisar o solo. Nunca lhe ocorrera antes que nunca mais tocara o solo, em meses. Conseguiu apenas vislumbrar um tom contínuo de verde, da mesma forma que o céu sem nuvens parece um fundo azul sem máculas. Não podia imaginar a altura em que estavam, para que toda diversidade do chão se perdesse. E decidiu-se por não perguntar. Algumas coisas têm um sabor mais interessante se continuam como mistério.

Para coroar sua experiência, depois de vislumbrar tantas formas indescritíveis de imensidão, viu entre outras torres uma mancha cor de areia, muito semelhante ao tom das pedras da própria Kadamon pelo lado de fora, descolorida pelo sol por milênios a fio. Kyrion forçou sua visão ao máximo, valendo-se de uma habilidade quase esquecida: projetou-se para além daquele mirante, sentindo parte de si aproximar-se um pouco mais daquela mancha.

Seu espírito vagou, viajando por um tempo impossível de contar, aproximando-se de seu destino. Este tomava formas vagas, formava ângulos, projetava pilares. Dividia- se em setores, apresentava formatos, protuberâncias e espaços. Furos, escuros e reflexos. Andares, lugares, vida.

Aciru aguardara pacientemente o Kyrion fazer sua inspeção, até que este voltou a si. Seu peito subiu numa respiração profunda, embora seu coração fosse quase visível, saltando por baixo do pelo do peito.

“Aquilo é realmente...”

“Sim” ela disse lacônica, deliciada com o poder dessa afirmação simples. “É outra torre. Semelhante a Kadamon, e quase de mesmo tamanho. Seu nome é Hamengru.” Ela fez uma pausa dramática, conhecedora dos talentos artísticos de um contador de histórias. “E há outras. Pharis é nossa forma mais simples de comunicação com nossas torres irmãs, detentoras de seus próprios projetores de luz. Há à nossa volta várias outras: Tártirus. Orion. A torre de Osso e Marfim. E a maior que eu conheço... Etemenanki.” Ela riu de lado. “O que não impede que haja outras maiores...”

Ela deu alguns passos ao redor do Kyrion “Estamos cercados pelas torres que coroam Kadamon. E Kadamon está cercada, por todos os lados, por outras torres!” Ela agora girava, como se dançasse “E tudo isso está aqui há tanto, tanto tempo! Nem mesmo meu avô teria visto a última torre ser construída!” Ela parou, na frente do Kyrion, estendendo os braços. Aqueles braços mínimos, que abarcavam todo o infinito. “Como estrelas e galáxias, estes titãs se espalham, suas alturas incalculáveis, e suas distâncias indizíveis! Tem ideia das proporções disto?”

Kyrion nada soube responder. Guardou silêncio. Mais uma vez fora provado que ser um mendeva era, de fato, algo superestimado. Ele estava ali, silenciado por um dos menores seres que já conhecera. Esmagado por sua sabedoria e a vastidão de seu conhecimento. Não havia testemunhas para tal momento, o que era uma pena.

Então o alto apenas sorriu e baixou a cabeça; a lição estava aprendida.


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