Reino em Cinzas escrita por Julia A R da Cunha


Capítulo 21
Merida




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Era nas aulas de magia com Seiliegh que Merida mais se sentia calma. Inspira. Uma onda de energia entrava por seus pés em contato direto com a terra, emanando vida para dentro dela. Expira. Outro pulsar descia no caminho inverso, como um grande coração batendo. Sim, todos já se tornavam seus amigos aos poucos e não mais temia que alguém a machucasse ou às outras, contudo, a calma, a pausa na tempestade para colocar seus pensamentos e emoções no lugar era ali, naquele pulsar conectado a tudo.

Àquela altura, tinha uma pequena coleção de frasquinhos de água lunar, cada uma carregada com uma energia específica. A cada nova prática, conseguia perceber o processo se tornando mais fácil, mais intuitivo, sem mais precisar pensar nos passos a seguir.

Sua visualização também melhorara a níveis que jamais imaginou. Quando direcionava suas intenções a si mesma, aos outros ou apenas na água, podia quase vislumbrar um brilho diferente emanando no ar como a luz do sol atravessando uma fina camada de névoa.

Merida aproveitou a calmaria interna do momento para explicar à tutora sobre o que ocorrera nos últimos dias.

— Parece que agora precisa mesmo aprender a se defender melhor — Seiliegh suspirou. Os relatos de Merida de fato eram mais urgentes do que uma ameaça sombria e distante. — Felizmente, você já está pronta para seguir com mais alguns feitiços diferentes. Mesmo que aprenda o básico, vai ser o suficiente por enquanto.

Merida não conseguiu conter o sorriso empolgado.

— Oh, enfim! — Brincou. Nesse mês, também conseguiu ficar mais confortável para soltar suas brincadeiras perto de Seiliegh. Não conhecia a mulher por completo, é claro, mas sabia que não seria transformada em um grilo por ter sido insolente. — Que feitiços?

Seiliegh riu, meio calada, sua risada discreta que mais balançava os ombros do que emitia qualquer ruído em si.

— De hoje em diante, vai ser capaz de lançar escudos mágicos, feitiços de ocultamento, ataque e persuasão. Parece muito de uma vez, mas, como disse, vou primeiro te explicar o que são e apresentar o básico para que consiga se virar se as coisas ficarem difíceis com o seu pai.

— Ou com os outros vikings, não esqueça deles.

— Claro — riu. — Como todos os outros, eles se baseiam em uma visualização e intenções fortes, o que você já demonstrou ser exímia nessas semanas. Os mais simples são os de ocultamento e persuasão, apesar de exigirem certa perspicácia.

Merida torceu o nariz, pensativa.

— Diga mais.

— Para ambos, é preciso se aproveitar de uma distração que as pessoas já tenham e direcionar a sua intenção para o seu próprio ocultamento, ou, para influenciar determinada ideia sobre alguém. Aqui mesmo, o que estou fazendo é te ocultar dos outros, aproveitando do fato de que os outros estão dispersos com seus afazeres diários o suficiente para não te notarem vindo para a floresta. E também, por esse motivo, foi que eu te disse que qualquer um para quem você contasse sobre o que fazia não seria mais tão afetado pela magia.

— Oh! — Merida ergueu as sobrancelhas. Sim, aquilo fazia sentido agora.

— O que deve fazer é focar sua intenção e direcionar suas energias para ser o mais invisível que for possível. Da mesma forma que sentiu as forças fluírem para a cura e a proteção até agora, deve senti-las te envolvendo como um manto de sombras. Oh, e claro, pode fazer o mesmo direcionado a objetos ou outras pessoas se for preciso. Não vai ser possível praticar nesse momento, já que estou atenta a isso, mas no assentamento, também como antes, comece focalizando em si mesma ou em coisas pequenas. Teste se deu certo atentando-se a todos ao seu redor e a como reagem.

A princesa assentiu.

— Entendido.

— A persuasão é simples, porém a perspicácia está em conhecer o seu alvo e saber quais palavras vão atingi-lo o máximo possível. Certas ervas e aromas podem deixar qualquer um mais suscetível a essa ou aquela ideia, mas é na sua voz e nos seus olhos que estão as armas mais poderosas. É através delas que vai direcionar a energia sobre o outro. Também pode praticar quando voltar para casa.

Ela respirou fundo devagar. Sua mente já deslizava pelas possibilidades a sua frente fazendo seu coração pulsar com mais e mais intensidade, reverberando por todo o seu corpo. Em parte, se sentiu como um predador se esgueirando pelas sombras da mata, uma serpente hipnotizando os ratos. Por outro lado, não via isso de forma completamente negativa. Não. Ela seria perigosa, sim, mas seu aspecto guerreiro gostava disso. Gostaria de ser vista um pouco mais desse modo pelos seus oponentes, sejam eles quem forem.

— O que realmente vamos praticar aqui hoje vai ser a parte mais difícil.

Merida riu com malícia. Seu fogo interno em busca de agitação já se acendera. Essa sim era a parte que ela mais esperava desde o primeiro encontro com Seiliegh.

— Vou atacar você?

— Vai. E se defender também, essa é a primeira parte, com certeza. — Seiliegh a encarou. Um breve lampejo violeta atravessou seus olhos como um raio no céu de forma provocadora. — Se conseguir. Levante-se.

As duas se ergueram e bateram as folhagens em suas roupas com as mãos. Seiliegh já estava em posição, firme e ereta como uma estátua de uma oponente entidade antiga. Merida a imitou e respirou fundo, mesmo que continuasse mordendo o lábio e remexendo os dedos agitados.

A mulher abriu os braços levemente ao lado do corpo, com as palmas erguidas voltadas para frente. Mais uma vez, a princesa refletiu seus movimentos. Será que ela parecia tão altiva quanto a bruxa diante de si? Seiliegh inclinou o rosto um pouquinho para o outro, ressaltando seus traços austeros.

— Reúna o poder que flui em você. Repita o processo que fez para atrair e expelir energia do ambiente ao seu redor, mas agora, feche os olhos e não visualize apenas essa força indo e voltando de raízes que se estendem dos seus pés. Elas devem emanar de dentro para fora de você como uma esfera que te circunda. Expanda-a aos poucos, até sentir que está completamente envolvida. Pensamento firme.

Merida assentiu e fechou as pálpebras. Você sabe o processo, repetiu a si mesma. Vamos lá, você consegue fazer isso. A primeira parte era fácil, como acabara de fazer assim que se embrenhou nas matas, como fizera todas as manhãs. Era inspirar o brilho translúcido ao seu redor e expirar o que havia dentro de si. Mas o que havia dentro dela? Isso era mais difícil de definir. Ela tentou se lembrar do fogo de antes, que imaginava acender em seu peito sempre que se animava. Trazer a imagem da fantasia para a visualização lhe exigia um pouco mais de tempo, atenção.

Com os olhos fechados, tentou vislumbrar o brilho alaranjado das chamas como uma vela acesa em um quarto escuro. De início era frágil, bruxuleante e um tanto quanto pálida. Então o alaranjado se fortaleceu e cresceu, saindo do seu peito para o estômago, os ombros, expandindo-se até quase poder vê-las por através das pálpebras como se uma fogueira tivesse de fato sido acesa diante dela.

Inspira. Expira. O fogo deveria não só alimentá-la, mas também protegê-la. Proteção, proteção... Um escudo.

O que visualizou não foi bem a esfera que Seiliegh mencionou, e sim um escudo arredondado, grande o suficiente para cobrir toda a sua frente, assim como aqueles que seus guerreiros em Dunbroch utilizavam, de madeira e de bronze, entalhados com elaborados nós tradicionais gaélicos. Atrás de suas costas, o que se formou foi uma parede de chamas altas, tão quentes que podia senti-las emanando o calor para o seu corpo.

— Mantenha a imagem. — A voz de Seiliegh soou distante, pertencente a outra realidade que não a que se encontrava agora. Mesmo assim, Merida tentou obedecer, notando com cada vez mais detalhes a dança do fogo, o calor avançando como um exército em marcha.

As palmas de suas mãos ardiam e ela sentia as ondas percorrendo sua pele, naquele misto de sensações pulsantes e também de formigamento. Imaginou-as iluminadas, uma bola de fogo sobre cada uma, pronta para ser disparada.

— Abra os olhos.

E ela abriu, apesar de aquilo nem parecer mais pertencer a um movimento de seu corpo.

Por um rápido instante, ela viu o ar ao seu redor serpenteando, como se uma lareira real queimasse debaixo do chão e aquecesse o mundo. Mas havia um tom... azulado? Foi rápido demais para concluir. A sua surpresa quebrou a mentalização e Merida sentiu um corte rápido de uma foice invisível entre sua energia e a do seu entorno. Estava acabado e o calor sumiu – pelo menos, o que a envolvia por fora, porque seu corpo continuava ardendo.

A tontura veio depois e Merida precisou piscar com força para seus olhos focarem de novo. O melhor a fazer era se sentar outra vez, e mesmo sem querer, ela soltou o corpo com todo o peso sobre a terra.

Seiliegh estava lívida, suas sobrancelhas erguidas, o único movimento em seu corpo sendo o do peito subindo e descendo com velocidade por debaixo do manto negro.

— O que foi? — Questionou. Merida também se sentia ofegante. E com sede. Muita sede.

— Qualquer um pode aprender magia — Seiliegh divagou, com a voz tão longínqua e tão perto dela que se perguntou se isso era um encantamento por si só. — Contudo, certas pessoas conseguem ir... mais além do que outras. Há quem precise de muitos anos para aprender a ver, sentir ou emanar um tipo específico de feitiço... e há outros, com muito mais facilidade, que veem ou fazem as coisas acontecerem mesmo sem querer.

Merida sentiu suas entranhas em rebuliço. Não sabia se isso era bom ou ruim.

— E você está dizendo que — as palavras pararam no fundo da garganta — que eu... sou do segundo tipo?

Seiliegh piscou longamente.

— Sim. Eu já tinha percebido durante nossos primeiros treinamentos que você demonstra uma aptidão notável para a manipulação energética e para o direcionamento de intenções. A sua conexão com o mundo ao seu redor também facilita muito as coisas. Mas agora, é quase certo confirmar que você tem o que chamamos de Visão.

A Visão! Sim, tudo fazia sentido! Esse não era um conceito perdido de seu povo como muitos outros que vinham dos antigos e que se esvaíram. Mesmo no castelo, conversando com seus pais, seus familiares, os lordes do conselho, o padre Áed e os servos, quase todos comentaram em algum momento sobre pessoas que possuem a habilidade de vislumbrar ou contatar os seres do Outro Mundo.

Ouvira sobre pessoas que faziam de tudo, mas não conseguiam sentir nada divino ou mágico no ar; ouvira sobre aqueles que se arrepiavam durante suas preces e idas à missa ou em momentos aleatórios durante o seu dia a dia; sobre aqueles que ouviam respostas às suas perguntas ou atividades; e sobre outros, que chegavam a de fato ver os mortos, os anjos, os daoine sìth, os duendes debaixo das pedras esperando por uma comida ou leite derrubados.

Pensando melhor, ficou surpresa consigo mesma por nunca ter imaginado que ela própria tinha essa habilidade.

— Isso pode ser treinado, é claro, assim como todo o resto, e as entidades podem se mostrar ou se ocultar de qualquer um que desejarem, quando desejarem — Seiliegh completou. — Porém, alguns já possuem tal capacidade mais desenvolvida do que outros mesmo sem um treino consciente.

— Sim, sim — Merida murmurou, ainda tentando voltar ao corpo.

— Mas... — Seiliegh parou e levou a mão ao peito, como se tivesse começado a dizer o que não deveria. Porém, logo em seguida, a abaixou e continuou enquanto caminhava na direção da princesa e se ajoelhava no chão com ela. — Existe uma coisa a mais em você. Mais do que a Visão. Você não só vê os espíritos ou os feitiços, você os executa mais do que muito bem em pouco tempo de prática... E eu não sei o que é.

Merida torceu o nariz. Por algum motivo desconhecido, não acreditou na última parte do que ela disse. Todas as pessoas ao seu redor pareciam saber muito mais do que ela, o suficiente para ao menos suspeitarem do que ocorria em sua vida bem antes de ela mesma conseguir entender.

Engoliu em seco. O Velho a chamava de Melusina de tempos em tempos, com aquele sorriso brincalhão de quem testava seus conhecimentos. E os sonhos...

— Eu tenho sonhos... diferentes. Quase todas as noites. Não são como os normais, os que eu sempre tive a vida inteira. Começou há dois meses depois de... de ter derrubado a pedra dos sìth.

— O que vê neles?

Merida hesitou. A pergunta lhe soava pessoal demais, mesmo que tivesse sido ela quem começou a conversa. Nunca contou dos sonhos para ninguém além de sua mãe e lembrar disso fez seu coração encolher. Piscou, tentando afastar as lágrimas antes que sequer pensassem em se formar. Parecia agora que não via sua mãe há uma vida inteira.

— Hm... — Ela mordeu o lábio e girou os olhos ao seu redor, fitando o céu azul gélido acima de si. O frio do outono avançando já o tingira em tons distintos do verão do seu último aniversário. — Eu vejo... Coisas. Seres, não sei dizer bem. Tudo muda a todo momento e alguns parecem estar grudados uns nos outros ou igual uma... uma... enxurrada de imagens de uma vez só. Às vezes vejo o círculo de pedras. Outras, vejo as luzes, os espíritos que me guiaram até aqui e para... outros lugares antes. Já vi tudo escuro com o som de asas batendo em cima da minha cabeça. Vi um homem... sem pele, nojento, com os braços compridos demais e misturado com o corpo de um cavalo. E... E duas mulheres.

Merida se surpreendeu. Quase tinha esquecido delas e da pena de águia em seu travesseiro quando despertou! Deus, o que houve com sua cabeça? Mas agora conseguia se lembrar de tudo nos mínimos detalhes, como se tivesse sonhado com elas na noite anterior.

— As duas eram ruivas, como eu — as palavras não paravam mais em sua boca. — Eram bonitas, fortes. Os olhares delas só faltavam me rasgar por dentro. Uma delas tinha um manto de penas de águia ou gavião e uma lança. Era uma guerreira, dava para sentir. A outra... Ela tinha uma expressão diferente, mais familiar, parecia alguém que já conheci antes mesmo que nunca a tivesse conhecido de verdade. Ela segurava... um martelo! Daqueles de ferreiro. E uma das mãos dela...

A moça das chamas. Lembrava agora do nome imaginário que dera.

— Era uma bola de fogo. Não que a mão fosse de fogo, mas, segurava fogo! Não sei se faz sentido o que estou dizendo.

Seiliegh assentiu, ainda calada.

— Faz — sussurrou, quase inaudível.

— Você sabe quem elas são. — Aquilo não foi uma pergunta. A mulher respirou fundo, encurralada pela menina pela primeira vez.

— Sim, eu... suspeito que sei. Mas acho melhor reservarmos essa conversa para nosso próximo encontro amanhã. Assim poderemos falar mais sobre isso e treinar melhor seu escudo e ataques. Tudo bem?

Merida bufou, mas assentiu. Bom, estava cansada de todo modo e ainda teria sua primeira aula de defesa pessoal com as meninas. Ali sim era onde queria direcionar o restante de suas energias.

 

Todas as meninas se organizaram em fila no pátio diante de Merida e Astrid. Não demorou para que os outros fossem se aproximando pelos cantos – Soluço, Melequento, os gêmeos, o Velho – com olhares curiosos para ver o que ia acontecer. Merida suspirou. Estava acostumada com a atenção sobre si por tempo suficiente para não se preocupar muito.

— Como eu expliquei para vocês ontem, eu e a Astrid vamos mostrar formas de se defender de ataques básicos, só com força corporal — ela começou a explicar. Ficou surpresa consigo mesma ao ouvir sua voz clara, ao mesmo tempo firme e suave. Se Elinor a visse, provavelmente ficaria orgulhosa. — Se vocês tiverem vontade, depois podemos treinar com armas e escudos. Afinal, é um período de guerra, nunca se sabe quando vamos precisar bater em homens atrevidos com uma forquilha.

Afraig explodiu uma gargalhada com a referência ao que contara antes, e Merida também não se aguentou, apesar de logo tentar recobrar a postura. Bodicca e Deirdriu ergueram as sobrancelhas e se entreolharam.

— Depois eu explico — Afraig disse apenas.

— Certo — disse Bodicca. — Mas sei que vou querer sim. As arma’.

Merida sorriu com um misto de doçura e empolgação e assentiu. Bodicca correspondeu, e também pôde ver o mesmo tipo de mistura de emoções.

— Continuando! Nós duas vamos mostrar um dos primeiros movimentos. — Finalizou gesticulando para Astrid.

Merida ergueu um dos braços inclinado entre a lateral e a parte de trás do corpo, que a outra segurou com mais força do que esperava. Era bom mesmo para demonstrar melhor.

— Se alguém te puxar pelo braço desse jeito, lembre-se que a melhor forma de se soltar — ela fez um movimento para baixo, por entre os dedos de Astrid. Foi um pouco difícil no primeiro instante, mas rapidamente conseguiu se soltar com um solavanco. Em seguida, apontou na própria mão —, é puxar para o lado do dedão. Ele não segura com tanta força como os outros dedos.

Ela gesticulou de novo, e as duas repetiram o movimento mais três vezes antes de inverterem para que Astrid se soltasse agora. Fizeram tudo devagar e depois com rapidez, como em uma situação real.

— Sempre pelo dedão. E então corram, se não tiverem mais nenhuma forma de se defender ou em menor número.

— Faz comigo! Faz comigo! — Röffa chegou correndo e gritando como uma menininha que acabou de ver uma torta de frutas sair do forno, se posicionando entre as duas outras com ambos os braços esticados. Pelo visto, ela não queria saber de ir uma de cada vez. Merida e Astrid a seguraram cada uma de um lado, e Röffa se desvencilhou em um segundo com um movimento brusco e espalhafatoso. Ela ria com tamanho divertimento que Merida mais uma vez não conseguiu não rir junto. — Gostei! Pronto, é isso.

E, tão rápido como veio, ela voltou saltitando para o lado do irmão.

— Certo — riu. — Tentem fazer isso entre vocês. — Ela fitou Bodicca discretamente e mexeu os lábios, sussurrando um: — Tudo bem?

Bodicca respirou fundo e assentiu. Ótimo. Não queria acabar deixando-a mais nervosa se lembrando de nada pesado. E de fato, a moça, assim como todas as outras, repetiram o exercício com foco, devagar e depois rápido, assim como Merida e Astrid fizeram.

— Agora — a princesa continuou —, é muito comum que um atacante chegue pelas costas e nos pegue pelo pescoço ou cabelo. Geralmente, eles fazem...

Merida gesticulou para Astrid com o braço e a loira seguiu o planejamento, passando o antebraço direito em volta do pescoço da outra até tocar a mão no braço esquerdo. O outro antebraço se ergueu lentamente, passando por trás da cabeça dela, mas sem apertar, o que permitiu que Merida continuasse falando normalmente.

— Assim. E também é desse jeito que devem fazer se forem fazer isso contra alguém. E, para se soltarem...

A princesa abaixou o queixo lentamente, para que pudessem acompanhar passo a passo, e então inclinou a cabeça com os olhos na direção do cotovelo de Astrid. Com uma das mãos, puxou o antebraço que circundava seu pescoço e, com a outra, deu um tapa no cotovelo para cima, que forçou o braço a se soltar do movimento enquanto ela própria abaixava o corpo e o girava para fora.

— Certo? De novo. — E reencenaram cada etapa como antes. — Vocês também podem segurar no ombro, na túnica, armadura, o que for, e jogar o corpo para frente para derrubar a pessoa.

Em um piscar de olhos, ela o fez, deixando até Astrid de olhos arregalados no chão. Merida mordeu o lábio e sussurrou “Desculpa”, mas a moça apenas riu em resposta e se levantou, batendo a terra da roupa.

Afraig ergueu uma das mãos e chamou:

— Merida? — Ela era a única que não a chamava de “princesa” ou “senhorita” ou “você”, e a ruiva gostava disso.

— Sim?

— E se um homem fazer isso? Quero dizer... Tem como repetir tudo com um deles? — Apontou para os rapazes.

Merida assentiu.

— Claro! É... — Essas palavras ela ainda não sabia bem. Contudo, seu olhar perdido logo encontrou o de Sean, que sorriu e traduziu tudo de imediato. Os garotos trocaram olhares um para o outro e, por fim, foi Melequento quem se apresentou com um pequeno gesto de cabeça como cumprimento para ela e para as outras. Merida retribuiu. — Diz para ele colocar força de verdade. Sem problemas.

O rapaz moreno ergueu as sobrancelhas e as mãos, como se perguntasse se era isso mesmo. Merida assentiu com firmeza e o chamou mais uma vez com a mão. Ele deu de ombros e foi, primeiro indo para trás de si e puxando um de seus braços com um solavanco. Certo, ele realmente era forte. Mas ela tinha treinado com vários guardas e seu próprio pai antes disso, então não seria nada inusitado. O puxão demorou ainda mais para soltar, mas enfim, com igual força, ela conseguiu.

Depois, ele se aproximou mais e ela sentiu o braço ao redor do pescoço. Ele começou suave, mas Merida pode sentir o ar se fechando bem mais do que com Astrid, apesar de com certeza não estar usando a força total – o que ela agradeceu mentalmente. Mesmo assim, ela não hesitou e repetiu o movimento, puxando-o e dando um tapa para cima, apesar de ter sentido o tecido da túnica arranhar seu rosto e emaranhar seus cabelos no processo. No fim, tinha uma mecha inteira dentro da boca.

A menina riu mais uma vez, agora um pouco histérica enquanto cuspia os fios para fora da língua. Ela o ouviu rindo junto.

— Ah, gente, isso pode acontecer! — Ela apontou para o rosto, fazendo um círculo no ar ao redor dele. Nem precisaria de um vidro espelhado para saber que ficara com a pele vermelha depois dessa. — Não se preocupem e não deixem de fazer o que for preciso!

Ela voltou para trás e sinalizou para repetirem. Dessa vez, ela o jogou no chão com a mesma facilidade com a qual jogou Astrid.

— Só mais dois movimentos agora! São rápidos, e então vamos treinar tudo juntas de uma vez. — Merida fitou o rapaz e levou as duas mãos ao próprio pescoço. De pronto, ele se virou de frente para ela e fechou as mãos ao redor de sua garganta. Mais uma vez, ela agradeceu por ele só tocar as mãos e não usar a força real, mesmo que jamais fosse admitir isso para alguém. Enquanto falava, ela demonstrava: — Passem os dois braços no meio dos dele e afastem, para separar. Nisso, vocês já giram e fecham para baixo, prendendo os braços dele com os seus. E...

Ela ergueu o joelho de leve, sem nem chegar perto de atingi-lo, mas foi o suficiente para fazê-lo dar um pequeno salto para trás de reflexo. Dessa vez, foram os rapazes que gargalharam e o provocaram com brincadeiras que ela não compreendeu.

O próximo sinal foi para pegar em seu cabelo. Melequento obedeceu, agora com um pingo de receio visível. Merida sorriu por dentro.

— Quando isso acontecer, ergam as mãos para trás e travem no pulso dele. Girem o corpo “para dentro”, para baixo e... levem o braço para as costas. — No meio do movimento, os dedos dele automaticamente a soltaram, como esperado. — Isso pode torcer o braço ou até mesmo quebrar, se continuarem puxando nessa direção.

Ela o soltou com dois leves tapinhas nas costas. O rapaz se ergueu e foi saudado com aplausos dos amigos. Ela não soube dizer bem se eram totalmente genuínos ou satíricos, contudo, independente disso, Melequento ergueu-se em uma postura pomposa e fez uma reverência para cada um dos presentes, como um ator terminando sua apresentação antes de se retirar.

— E agora, praticando!

Cada garota repetiu os movimentos em diferentes ritmos e sequências, trocando de dupla e de papéis entre ataque e defesa até quase a exaustão. Merida as ensinou como dar um bom soco e chute, e onde mirar no corpo para isso – olhos, nariz, garganta, estômago e virilha –, mas dessa vez Melequento não quis mais servir de cobaia e voltou à sua observação de longe.

— Quem te ensinou tudo isso? — Muire perguntou ofegante, entre um movimento e outro, investindo contra a princesa.

Merida sorriu com um sabor agridoce no fundo da boca. Seu coração apertou de admiração e saudade.

— Meu pai.

 

Todas precisaram tomar um banho depois de tanto terem suado e caído na terra. Quando mergulhou na tina com água fervida, Merida visualizou um raio de energia saindo de si para a água escorrendo com fluidez até sentir seus músculos relaxarem por completo. Ela riu baixinho e relaxou pelo resto do momento. Esse era seu mais novo truque favorito.

E, aparentemente, das garotas também, já que todas passaram a pedir que ela fizesse o feitiço a cada banho. Ela ria e fazia de conta que não faria mais nada por ninguém só para provocar, mas sempre colocava as mãos mais uma vez dentro da água para cada uma delas. Para Bodicca e Deirdriu – que também demonstrara muito estresse ao longo das semanas – Merida ainda despejava uns fracos de água lunar de cura na tina, claro, com o conhecimento de ambas. Assim também prevenia o nervosismo e os pesadelos.

Astrid apareceu na porta pouco depois de terem terminado de se arrumar.

— Oi. Trouxe os vestidos! — Ela disse. Merida não escondeu o sorriso de triunfo ao entender cada palavra enquanto gesticulava para que ela entrasse.

Astrid avançou, puxando uma caixa atrás de si. Só então viram que Soluço estava atrás dela, carregando o baú pelo outro lado. Os dois desceram o objeto no meio do cômodo e abriram o tampo.

Merida nunca se importou muito com roupas, porém não pôde deixar de arfar ao ver todas as cores dos tecidos. Cada roupa tinha um tom diferente, assim como os aventais iguais aos que as mulheres nórdicas colocavam por cima dos vestidos. Enquanto o casal pegava um por um e entregava para suas respectivas donas, Merida também notou os detalhes bordados nas barras de cada peça. Bordados muito melhores do que ela própria jamais foi capaz de fazer.

No fim, foram três vestidos e aventais para cada garota. Os chefes sorriram, simpáticos, ao terminar e se despediram com acenos de boa noite antes de sair. O baú ficaria com elas, para que pudessem guardar as peças que não fossem usar no momento.

A princesa sorriu quando viu que um de seus vestidos era o verde que usava no dia em que foi capturada. Ele tinha ficado tão sujo e rasgado pela queda do cavalo que foi preciso jogá-lo fora, ou ao menos, ela pensou que tinham se desfeito dele. Ali estava, reformado e lavado.

— Os bordados são tão lindos! — Deirdriu exclamou, deslizando a ponta dos dedos por cada peça esticada diante de si.

— É... — Bodicca divagou. — Valeu a pena esperar um mês. Bons mesmo.

Afraig terminou de analisar as suas peças em silêncio, se aproximou de Merida para ver os dela e então de Muire. A princesa não prestou muita atenção até ver os olhos da loira se apertando. Um sorriso sarcástico foi nascendo no rosto da moça.

— Impressão minha ou os vestido’ da Muire têm mais detalhe no bordado do que os nosso’?

Muire arregalou os olhos e puxou as barras das roupas com rapidez para analisá-las, o cenho franzido pela surpresa. Mas quando reparou nos vestidos de cada uma – do mesmo modo que Merida fez ao ouvir o comentário – ela ficou da cor dos cabelos da princesa.

— Para! Não têm não!

— Têm sim! Olha aqui, bem mais detalhado, mais cor.

Muire deu um tapa no ombro da amiga, que disparou uma gargalhada. Merida tentou não rir tão alto, mas era difícil esconder as risadas baixas. Bodicca e Deirdriu se inclinaram para olhar melhor as peças, e imediatamente trocaram olhares com sobrancelhas arqueadas.

— E não é que têm mesmo — Bodicca sussurrou para Merida e ambas riram.

— No meio do treino, ele não parou de olhar pra ela também — Afraig sussurrou em seu ouvido.

Merida franziu o cenho.

— Ele olhou para todo mundo, não? Igual os outros — sussurrou de volta.

Afraig balançou a cabeça em negativa, rindo.

— Olhou pra ela! Quase sem disfarçar.

O queixo dela caiu.

— Eu não sei reparar nessas coisas direito — comentou. — Alguém tem que me falar ou me mandar prestar atenção, senão...

— ‘Cês têm mais é que ir dormir e parar de ficar vendo coisa! — Muire disfarçou abanando as mãos no ar, o que trouxe a atenção de Merida de volta ao quarto em geral. Com as bochechas ainda tão vermelhas que poderiam ter sido tapas, ela dobrou as peças com cuidado e as repousou ao lado da cama. Afraig ergueu uma sobrancelha e fitou a princesa. Sim, agora ela não teve como não reparar a preferência da moça de não guardar as peças no baú, e sim ao seu lado. — Boa noite!

Muire exclamou e jogou o corpo sobre a cama. As moças continuaram rindo, mesmo que não com o volume de antes.

— Boa noite.


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Notas finais do capítulo

Oi, pessoal! Espero que tenham gostado do capítulo.

Minhas fontes de inspiração para o treino das meninas, vieram desse vídeo aqui embaixo:

https://www.youtube.com/watch?v=36P_5YtReAM

Claro que não tive muito como saber se isso são técnicas gerais ou específicas do jiu-jitsu (que, obviamente, não se encaixaria no contexto histórico), maaaaaaasssss acho que de todo modo, cumpriu bem o papel da cena.

Pra quem tiver interesse, recomendo sim checar as demonstrações da treinadora!

É isto e até a próxima!



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