Reino em Cinzas escrita por Julia A R da Cunha


Capítulo 15
Elinor


Notas iniciais do capítulo

Dois capítulos em uma mesma semana? Pois é, gente, essa é a bênção das férias kkkkkkkkk

Boa leitura! Espero que gostem!



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Elinor tentou se aproximar de Fergus de diversas formas em incontáveis vezes, mas ele se recusava a qualquer diálogo. Era só aparecer na visão do marido que ele jogava o corpo para a direção oposta e ia embora pisando duro, murmurando palavras ininteligíveis entredentes.

Ela também não sabia mais o quanto chorou trancada em qualquer cômodo isolado que encontrasse no caminho. Se Merida escreveu aquela mensagem e pediu explicitamente para não atacarem, o que seria dela se fizessem o contrário? Elinor não conhecia esse tal chefe Hikken. Como saber se sua filha estaria segura com ele de forma incondicional ou se tudo dependeria da resposta real? Sua experiência fazia sua mente pender para a última opção.

Dias demoraram uma eternidade nessas condições e, pela primeira vez em muito tempo, não aguentava mais o fardo da coroa. Não queria saber da etiqueta, sobre o que pensariam de si ou do rei, só queria saber de Merida.

O seu quarto era o único lugar onde conseguia pensar agora. O único fechado o suficiente, mas também com a liberdade do silêncio para dormir ou se angustiar sem que ninguém a olhasse com... com pena. Não. Ainda tinha orgulho o bastante dentro de si para repudiar esse sentimento com veemência. Era uma rainha, não uma pobre coitada! Mesmo que ainda precisasse de um espaço para tentar persuadir Fergus e se remoer quando não o conseguia.

Dois toques firmes na porta a trouxeram de volta à realidade de onde estava, de quando estava.

Não queria ninguém aqui. Ninguém. Estou tão cansada. Rezava para que não fosse um dos meninos. Por mais que quisesse reconfortá-los e soubesse que eram apenas crianças perdidas no caos, não tinha forças nem para si mesma naquele dia.

— Entre.

Os cachos loiros de Eithne entraram no quarto antes de ela própria. Se não fosse por eles e por sua beleza, seus movimentos teriam sido etéreos o suficiente para passar quase despercebida mesmo que a rainha fitasse diretamente naquela direção.

A menina fez uma mesura com as mãos seguras uma à outra diante de seu corpo. Ela se virou para fechar a porta e tornou a observá-la de frente.

— Tia, não quero incomodar. Só... queria saber se gostaria de conversar com alguém. Se não, não tem problema, não me ofenderia se dissesse.

Elinor forçou um sorriso triste.

— Não me incomoda — respondeu em um fio de voz. Desde que não me cobre muitas respostas sobre mim mesma. — Só estou... cansada. E com medo.

Eithne engoliu em seco e remexeu os dedos. A jovem respirou fundo e se aproximou com calma até o banco de frente para a janela onde a rainha estava. Seus olhos baixos fitaram o chão em silêncio, antes de girar a cabeça para o lado de fora, gesto que Elinor imitou.

O céu esbranquiçado trazia um brilho pálido sobre a fortaleza, prenunciando a chuva que viria em breve. Como se o clima soubesse de tudo o que acontece aqui dentro, Elinor pensou, se ajeitando no banco.

— Não posso presumir entender exatamente o que sente, mas... posso imaginar como é — sua sobrinha sorriu para ela, compassiva, e a rainha retribuiu sem nem mesmo perceber. — Acho que quase todas as mães estariam assim também.

Com uma das mãos, segurou a da menina, tão parecida com a que ela dera à luz.

— Quase todas? — Questionou. Por algum motivo, a frase tinha se sobressaído em seus ouvidos só segundos depois de ter escutado.

Eithne prendeu um dos lábios. Foi discreta, mas não o suficiente para que Elinor não percebesse. A menina deu de ombros logo em seguida, com uma expressão distraída e leve no rosto.

— Ah. Quero dizer, sei que nem todo mundo tem relações boas com suas mães. Outros são assim com os pais, outros com ambos. Enfim. Apenas não generalizei — riu baixinho ao finalizar.

Elinor levantou as sobrancelhas e ponderou com um “hm” alto e alongado. Eu bem sei disso, pois quase perdi o meu relacionamento com a minha menina por não ouvir o que ela queria. Mais uma vez, observou a sobrinha ao seu lado.

— Você se dava muito bem com o seu pai, não é?

Ela sorriu com um sabor de saudade evidente, misturado com carinho e... algo mais escondido no fundo de sua mente.

— Sim — sua voz estava distante, longe demais de Dunbroch. — Ele às vezes discutia comigo e chamava minha atenção para certas coisas, mas nunca foi nada sério. Logo já estava rindo de novo e me perguntando o que eu aprendi aquele dia, já que gosto muito de ler e descobrir coisas novas. Sempre esteve disposto a me escutar por mais que eu demorasse a ficar quieta. Doeu muito quando... — sua voz se embargou. Eithne levou uma das mãos sobre a boca por um breve instante, só o que precisou para se segurar — quando se foi, Deus o tenha.

— Amém — murmurou. — Ao menos ainda tem sua mãe e seu irmão para lhe fazer companhia, não é? E vice-versa.

Um lampejo percorreu os olhos da jovem, uma nuvem encobrindo seu brilho solar. Por um segundo, ela ficou parada, sem dizer nada, encarando o vazio nas matas afora. Ela percebeu. Se tem uma coisa que minha sobrinha não é, é burra. E então, ela sorriu, tão radiante quanto o sol outra vez saindo de trás das sombras.

— Com certeza! Tia, mudando de assunto — ela girou o corpo para que ficassem de frente uma para a outra. A mão que segurava a da rainha apertou-se, firme, porém ainda delicada —, se tiver algo que eu puder fazer para ajudar a encontrar Merida, por favor, me avise.

Elinor arfou sobressaltada com a proposta. A mão livre acariciou o rosto da sobrinha.

— Ah, querida. O que poderia fazer nessa situação? Não quero soar rude, mas não acho que tenha algo que possa fazer agora. Não se preocupe com isso.

O rosto de Eithne não se alterou em um músculo que fosse.

— Posso encontrar meios de descobrir algumas coisas. O mensageiro ainda não foi embora pois aguarda uma resposta, mas, quando for, não vai gostar de ter alguém o seguindo, mas uma pessoa discreta... — Sua fala, até então firme, terminou com um toque de sugestão. Devia admitir que não esperava por isso, muito menos dela. — Com meu tio tão ávido por batalha, pode ser útil saber onde Merida está. Mesmo que não venham a interferir em nada como ela pediu, podem evitar que ela seja atingida sem querer.

— O que está sugerindo?

Eithne tentou disfarçar um sorriso pretensioso.

— Eu conheço pessoas que podem seguir outras sem serem notadas e que voltam rápido com informações com um simples comando e uma moeda. É isto que estou sugerindo.

— E como sabe dessas coisas?! Dessas pessoas?! — Sua voz se levantou, exasperada.

A moça relaxou o olhar e levantou as duas mãos em defensiva, pedindo calma com o gesto. Agora parecia apenas uma menina arteira pega no ato tentando se explicar.

— Pode ficar tranquila, tia. Não é nada demais. Eu só... Como disse, sempre gostei de ler, de saber coisas, mas nem todo mundo gosta da minha curiosidade. Algumas perguntas não são respondidas quando sou eu quem as faço e nem tudo está nos livros e pergaminhos. E já escutei de minha própria mãe que deveria haver um limite para o que uma moça lê e que meu pai não deveria me incentivar a ir atrás de aprendizados encarregados aos nossos homens. Que eu não precisava estudar como um lorde se jamais seria um e sim sua esposa.

Elinor engoliu em seco. Não gostou nada de escutar uma menina tão jovem que pensava ser tão doce e delicada falando tão abertamente de espionagem, mas... Por Deus, estava aliviada de não ter sido por nada mais impróprio como pensou de início. Afinal, por mais que a sobrinha se aproximasse muito mais do seu antigo ideal de filha e tê-la usado como modelo para Merida, já tinha ouvido rumores quanto a sua suposta lascívia, um pouco dada demais aos galanteios – rumores que ela mesma tratava de silenciar se pegasse algum criado no flagra.

Tinha um peso a menos no peito por não ter tais comentários confirmados. Mesmo que nada tivesse a ver com os rumores, ainda era perturbador imaginar Eithne envolvida com pessoas tão pouco confiáveis como espiões. Mas, se era para obter livros e fazer perguntas... Melhor.

Entretanto, por baixo disso tudo, havia um espinho afiado cravado no seu coração ao ouvir o que Muireall disse sobre a própria filha. Mas seria desconforto ou culpa? Já tentou antes dizer que Merida deveria aprender certas coisas e outras não por ser uma princesa. Ainda assim... jamais pensaria em limitar seus estudos se demonstrasse interesse pelo aprendizado.

— E eu — Eithne continuou, com os braços juntos e as mãos repousadas sobre o peito — só quis dar um jeito de continuar aprendendo. De buscar um livro que queria ou perguntar algo a alguém. O primeiro a me mostrar como fazer isso foi meu irmão, Cathal. Assim, tenho amigos que me ajudaram, que entenderam o que eu quis dizer e que discordam da minha mãe. A tarefa é totalmente diferente e mais perigosa do que buscar livros, é claro, mas... ainda acho que podemos dar um jeito de saber qual assentamento não atacar.

Eithne inclinou-se para frente mais uma vez, encarando fundo nos olhos da tia. Não com força, mas com humanidade, com uma prontidão sincera aos seus serviços. À sua família.

— E, se tivermos essas informações em mãos, teremos argumentos fortes para não deixar o tio Fergus tomar uma escolha impensada. Poderemos dialogar com ele e com o conselho com mais do que súplicas.

A rainha digeriu aquelas palavras, que não mais tinham o sabor azedo da surpresa, e sim algo mais doce como as possibilidades que se abriam diante de si.

— Certo. Acho que podemos fazer algo quanto a isso — a rainha sorriu pela primeira vez após dias, e a sobrinha retribuiu com um sorriso brilhante de orelha a orelha. Ela realmente quer ajudar, pensou. — E pare de roubar livros, menina! Que coisa horrível!

Eithne riu alto com a resposta, jogando a cabeça para trás.

— Quando quiser qualquer coisa, venha até mim ou me mande uma mensagem. Combinado?

— Combinado — ela respondeu com os olhos verdes cintilando.

 

As portas de madeira maciça estavam fechadas e, mesmo assim, as vozes dos homens podiam ser ouvidas do lado de fora de tão alto que discutiam. A voz de Fergus era a mais escandalosa de todas, exalando raiva em cada palavra. Os guardas ao lado da porta tentaram barrá-la.

— O conselho está em reunião, senhora.

Elinor os encarou sem emitir um único ruído. Seu olhar incendiando-os um a um foi a única coisa necessária para que se curvassem e abrissem passagem.

— Perdão, majestade. — Os dois disseram em uníssono. Um deles se voltou para o salão para anunciá-la. — A rainha Elinor!

Os lordes paralisaram na posição em que estavam quando ela entrou, firme e solene, fitando-os de um em um. Lá se encontravam seu marido, o padre Áed, e os senhores Niall mac Briain, Flann mac Domhnaill e Drest Ua Phádraig, homens nobres locais bastante poderosos que aconselhavam o rei em suas decisões. O rubor ansioso por guerra em seus rostos transmutou-se em outro tipo, desconcertados e curiosos com a sua presença.

Enfim, todos pareceram retornar à realidade e se levantaram para curvar-se diante dela antes de sentarem novamente, aguardando para que ela fizesse isso primeiro. O silêncio ainda reinou com peso por longos instantes.

— Elinor... — Fergus murmurou com rouquidão. Ele pigarreou, na tentativa de fazer sua voz soar mais alta, como se não estivesse tão abalado assim com a sua chegada repentina. — Nós... é... nós já...

— Começaram? Sim, estou vendo. Apesar de não terem me esperado para isso como sempre fizeram, já que eu sempre participei das reuniões do conselho.

— Pedimos perdão, majestade — Áed se pronunciou com tom humilde. — Nos últimos dias, não tem participado das reuniões, por isso nos precipitamos e iniciamos tudo logo. Admito que não a perguntamos antes se se juntaria a nós hoje ou não. Desculpe.

— Eu entendo e aceito as desculpas — Elinor respondeu, abrandando a voz levemente. — Mas gostaria de ser inteirada sobre o que já foi discutido na minha ausência.

Os homens engoliram em seco, fitando um ao outro.

— Estamos decidindo — Fergus começou, mas a língua pareceu dar um nó quando a esposa o encarou. — Decidindo... táticas de guerra. Formas de ataque aos invasores. Você... Você não entende...

Elinor ergueu as sobrancelhas.

— Sabe do que eu entendo? Entendo que minha filha está em um desses assentamentos e que estão planejando ataques sem nem mesmo saber em qual deles ela está e entendo que estão indo no sentido oposto do que ela mesma pediu na mensagem enviada.

A rainha repousou sobre a mesa o pergaminho que até então escondera em suas mangas. Era o mesmo que Merida enviou, com a escrita um pouco mais borrada do que anteriormente. Elinor releu em voz alta:

“Mãe, pai, eu estou bem. Estou escrevendo para dizer que fui capturada por vikings no meio da minha busca. Ainda estou com eles, mas estou bem agora! Por favor, NÃO ataquem NENHUM assentamento de onde ouvirem sobre Berk e o chefe Hikken!” — Ela levantou os olhos para encarar os lordes. — Algum de vocês sabe qual é o assentamento desse chefe Hikken?

— Com todo o respeito, senhora — lorde Niall inclinou o corpo sobre a mesa — nem nós sabemos e nem a senhora.

Elinor riu com escárnio.

— Posso não saber agora mas tenho meus meios de descobrir. E você, lorde Neill? O que oferece como proposta além de sair atacando sem pensar duas vezes?

O rosto do homem queimou, contudo, ele conteve suas emoções. Elinor não moveu um músculo, como sempre fez quando assumia a posição de soberana. Neill soltou o ar devagar e abaixou a cabeça.

— Perdão, majestade.

— Elinor — Fergus a chamou. Não soava mais nervoso ou tenso. Aquela era a voz profunda do seu marido, pai de seus filhos, com a qual perguntou-lhe quais eram os planos de Merida ao fugir depois de se acalmar. Seu coração quis amolecer com ele, com o tom familiar. Mas ainda não podia. Não no conselho. Não com os outros lordes. — Que meios?

Ela respirou fundo, o ar ajudando-a a se recompor.

— Meus meios — respondeu, um pouco mais contida, porém ainda resoluta e sem demais detalhes. Afinal, deveria manter o nome de Eithne fora de qualquer debate se quisesse mantê-la segura.

— Majestade — lorde Drest se pronunciou com a mesma reverência que Áed tivera —, eu entendo o seu ponto. Porém, a questão é que já enviamos alguns mensageiros para os outros clãs com instruções de localizar os assentamentos e cercá-los, não duvido que decidam também atacar. O que devemos fazer então?

Para essa pergunta, não precisou pensar nem um segundo a mais do que o necessário.

— Pois enviem novas instruções de que a sua rainha ordenou o contrário até que tenhamos mais informações e enviemos ordens novas. Somente após isso, mandaremos uma resposta para que o mensageiro de Hikken leve. Depois de tudo e das devidas negociações, façam o que quiserem com os outros vikings.

— Assim será — Fergus concluiu. Pela primeira vez desde que Elinor entrou, ele soou resoluto, aos poucos se lembrando da sua imagem de rei e da raiva contra os inimigos. — Enviem as ordens o mais rápido possível para evitar que ataquem. Enquanto isso, minha esposa usará seus... meios para encontrar a princesa. Depois, vamos mostrar a esses nórdicos a terra de quem estão tentando invadir e mandá-los para casa com o rabo entre as pernas. Podemos encerrar a reunião por aqui, senhores. Agora, eu quero um momento a sós com a rainha.

Em um segundo eles estavam de pé fazendo reverências para ambos antes de deslizarem para o lado de fora.

Quando o último deles saiu, Elinor soltou o fôlego e, com ele, o peso sobre seus ombros. Sua mente girou, ainda absorvendo que tudo finalmente seguiria pelos caminhos corretos. Fergus também abandonou o rosto de rei em troca pelo de um simples homem. Suas sobrancelhas estavam baixas, assim como os olhos que lutavam para chegar à altura dela.

— Me desculpe por não ter te dado ouvidos. Acabei desrespeitando você e... nunca quis isso. Eu estou quase perdendo a cabeça com toda essa bagunça sem fim, mas ainda assim, não deveria ter te magoado desse jeito.

Ondas rodopiaram em seu peito que inundavam o remorso, as palavras mal mastigadas e engolidas. Essa era a única coisa que faltava para consertar os estragos dos últimos dias. Elinor tentou disfarçar as lágrimas nos olhos.

— Eu te desculpo. — Estendeu a mão sobre a mesa até onde ele estava. Fergus suspirou e segurou-a com a delicadeza de suas mãos ásperas e dedos duros. Ela retribuiu o gesto, entrelaçando seus dedos com os dele. — Vamos limpar essa sujeira juntos e encontrar nossa menina.


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