Reino em Cinzas escrita por Julia A R da Cunha


Capítulo 11
Elinor




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Como contaria a eles? Como contaria a Fergus que sabia em parte do que estava acontecendo? Dunbroch mergulhou em completo caos desde que sua filha fugira da fortaleza sem dar mais notícias. Naquele dia, assim que percebeu a falta de Merida, Fergus disparou aos seus aposentos e quase se jogou sobre os pés da esposa.

— Onde ela está? — Ele gritava, daquele seu jeito escandaloso de quando estava à beira de um poço de desespero. — Elinor, você sabe onde ela está? Me diga! Fale alguma coisa, mulher!

A rainha permaneceu calada por um bom tempo, o suficiente para que ele tentasse se recompor. Não responderia a nada que viesse daqueles gritos. Porém, ela não o julgava. Entendia a sua angústia mais do que muito bem, afinal, também era mãe assim como ele era pai. Elinor só precisava ter certeza de que nenhuma decisão impulsiva seria tomada. Conhecia Fergus por anos o bastante para saber como ele poderia tomar atitudes impensadas em um estalar de dedos.

Então, ela esperou, impassível como uma rocha, mesmo que seu coração se esmigalhasse por dentro. Eu não sei, ela queria gritar de volta. Não sei onde ela está, só o que foi buscar. Não faço ideia se nossa menininha está segura, nem sei se está viva! Com os olhos lacrimejando, ela engoliu as palavras.

Fergus também a conhecia o bastante para entender seu silêncio. Aos poucos, ele respirou fundo, fechou a porta do quarto atrás de si e se sentou no pé da cama. O homem continuou ali por bons e longos minutos, não fazendo nada além de se acalmar. Junto com ele, Elinor tentava manter seu medo sob controle. Não poderia transmitir incerteza a ele nesse momento.

— Elinor... — a voz dele ecoou grave e baixa, como um suspiro de desalento. — Eu sei que eu me distanciei nessas últimas semanas, mas... Eu nunca quis que ela...

— Não foi por isso que ela fugiu, Fergus, não se culpe. Ela não fugiu de ninguém daqui... a não ser da punição de Áed, talvez. — Seu marido levantou os olhos cheios de conflito. Elinor expirou, com calma. — Mas não foi por esse motivo que ela saiu também. Merida só quer consertar tudo de uma vez por todas.

— Tudo o quê? Você já a perdoou e ela já... pagou a penitência que... a deixamos fazer. Não tem mais nada para consertar.

Seu peito palpitou em ansiedade. Não tinha nenhuma outra forma de contar a não ser simplesmente dizendo de uma vez; mas é claro, com a determinação de uma senhora e a compaixão de uma esposa. E foi o que Elinor fez, detalhe por detalhe, explicando cada porém, cada ponto explorado pelas duas nas semanas de pesquisa antes da sua fuga atrás das luzes mágicas.

Durante toda a explicação, Fergus teve todo tipo de reações – suspiros, fungadas, começou algumas frases em exclamação, as quais Elinor interrompeu com maestria, sem jamais perder o controle da situação. Ele tentava se controlar a cada vez que ela chamava sua atenção, mas suas mãos e seu rosto continuavam um espetáculo de emoções.

— Ela precisa de respostas, Fergus. Essas pedras de círculos sagrados não podem ser danificadas sem uma cobrança daqueles que as dominam. Como ela sente que tudo o que aconteceu foi por conta dela, nossa filha assumiu essa responsabilidade de descobrir qual é o débito a ser pago.

Ele balançou a cabeça, perdido em seus pensamentos.

— Eu sei que ela é capaz, Elinor. Mas... Temos vikings nas nossas portas agora! E esse negócio de magia, eu... eu nem sei o que dizer disso! Não sei o que esperar disso, eu nunca nem acreditei que isso existia até ver você sendo um urso e depois mulher de novo. Tudo o que eu sei são espadas, combater invasores, lidar com aqueles lordes, até isso você faz melhor do que eu. Mas magia? Magia e vikings?!

— Sim, Fergus. Ninguém nunca se preparou para lidar com magia aqui. Eu também me preocupo com isso, não sei o que esperar de... de luzes, bruxas, espíritos! Mas precisamos confiar nela agora. Ela já partiu, não temos mais o que fazer a não ser rezar para que Merida consiga usar o que ela conhece para resolver o que está para conhecer. E vasculhar as terras até encontrá-la para arrastá-la de volta não é uma opção. Eu já aprendi isso.

Seu marido a encarou em silêncio por longos segundos, ainda assim com todos os conflitos transbordando de si. Elinor foi para perto dele e segurou sua mão, que ele apertou de volta com a mão trêmula.

— Ela vai voltar, não vai?

Elinor assentiu. Não foi mais capaz de segurar suas lágrimas depois daquilo.

— Vai. Vai, sim — ela respirou fundo. O ar saiu com todo o peso da sua preocupação. — Em nome de Deus, ela vai.

 

O pensamento rondou sua mente a cada minuto dos três dias seguintes. Merida retornaria, não poderia deixar a dúvida ser ouvida ou então seria corroída instantaneamente. Jamais se permitiria questionar se foi a escolha certa deixá-la ir. Não. Toda a sua atenção foi direcionada a Dunbroch. Nunca os serviços da fortaleza foram administrados com tanta rapidez, tanto fervor, quanto naqueles três dias. Fergus saía de uma reunião a outra, sem pausa em nenhum assunto, planejando mil ataques contra os nórdicos e enviando mensagens para os líderes dos outros clãs.

Novos batedores iam e vinham, vigiando as terras nos arredores, avançando além a cada dia em busca de novas informações a relatar. O coração de Elinor saltava quando eles chegavam no castelo depois de uma varredura, mas sempre se decepcionava em seguida. As notícias eram de vilas saqueadas, fazendas roubadas, algumas capelas de onde o ouro foi roubado. Mas nunca de Merida. Não saber se aquilo era algo bom ou ruim lhe assombrava no fundo e, mais uma vez, ela logo direcionava sua atenção aos seus súditos, à fortaleza; quando não havia mais nada a fazer nisso, passava as horas seguintes no tear até que seus dedos implorassem por descanso.

No quarto dia, o povo se agitou e correu para as entradas. Uma pequena comitiva de cavalos, liteiras e carroças chegou na fortaleza real. Elinor sabia muito bem a quem elas pertenciam e logo se preparou para receber os parentes da família do marido.

A rainha desceu até o grande salão e sentou-se sobre seu trono. Não demorou para que as portas se abrissem para os visitantes. A primeira a entrar foi Muireall, a nobre senhora agora de meia idade, com um vestido escuro e os cabelos loiros presos para cima em tranças na parte de trás da cabeça, cobertos por um véu fino. Não muito atrás dela, seu primogênito, Cathal mac Eógain, com a cabeça erguida de um jovem lorde no auge da sua juventude e sede de orgulho.

Porém, nem a solitude da mãe nem a pose do filho ofuscavam o brilho da caçula, Eithne, tão bela quanto sua própria Merida, mas portava com muito mais maestria a graça típica da nobreza. As maiores diferenças eram apenas essa, os três anos a mais que a princesa e os cachos loiros ao invés de ruivos. Elinor sempre admirou a sobrinha e até tentou transformá-la em um modelo para a filha – obviamente, sem sucesso. Aquela menina não precisava fazer nada para roubar a atenção de um castelo inteiro, apenas estar presente.

Os três se curvaram diante da rainha.

— Sejam bem-vindos — sua voz ecoou no salão praticamente vazio. — Sinto muito pela ausência de meu marido, ele está em reunião com o conselho.

— Totalmente compreensível, minha senhora. São tempos de guerra, um bom rei deve se preparar — Cathal respondeu. — Inclusive, tia, esse foi o motivo que nos trouxe até aqui. Não quero soar atrevido, de forma alguma, mas buscamos pelo acolhimento e proteção da senhora e do senhor meu tio por alguns dias.

Elinor levou uma das mãos ao peito.

— Aconteceu algo nas suas terras?

Cathal ponderou.

— Ainda não. Mas guerreiros nórdicos foram vistos rondando o local. Achamos melhor ficar por aqui até que o primeiro ataque seja feito. Ou melhor, só minha mãe e minha irmã. Eu vim apenas acompanhá-las, na verdade. Logo já retornarei para casa para garantir que tudo esteja seguro para elas.

Se seu pai estivesse vivo, o chamaria de covarde. Elinor mordeu a língua com o pensamento, como se aquilo a prevenisse de pronunciar as palavras e não seu bom senso sozinho. Ele mesmo sabia que suas palavras soaram mal, tanto que tentou se corrigir como um mero acompanhante. Mas talvez fosse apenas impressão e ele dissesse a verdade. Um jovem lorde inexperiente com discursos era mais do que comum. Fergus era um exemplo de que os homens daquela família tinham pouca noção de como se comunicar direito.

A rainha assentiu.

— É claro. Nossa hospitalidade sempre estará aberta, ainda mais para nosso próprio sangue. Todos são bem-vindos, mais uma vez, pelo tempo que forem ficar. Vou providenciar as acomodações e logo vamos chamá-los para a ceia.

As servas não precisaram de nenhuma ordem para agirem em passos rápidos, direcionando os três pelos corredores da fortaleza enquanto outros iam buscar as bagagens do lado de fora. Sozinha, Elinor deixou-se soltar no trono com um suspiro. Estava exausta e quase poderia dormir ali mesmo.

O som de passos por perto a fez se enrijecer e se levantar. Uma rainha não poderia ser vista de forma tão... tão... frágil.

 

De fato, como disse, assim que acomodou sua família, Cathal retornou para casa, deixando-as hospedadas com Elinor e Fergus. Foi estranho ver como Eithne irradiava uma energia quase solar assim que o irmão saiu de perto, puxando conversa a cada minuto que tinham juntas, fazendo observações sobre a fortaleza e compartilhando umas poucas notícias de casa. Mas Elinor não teve chance de questioná-la melhor sobre essa mudança de comportamento, já que a sobrinha mal lhe dava abertura para tocar no assunto. Além disso, a rainha estava se esforçando ao máximo para corresponder a sua atenção com um carinho verdadeiro. Odiaria fazer a moça sentir que estava falando sozinha enquanto seus pensamentos fugiam para onde Merida poderia estar.

Durante boa parte da tarde, porém, observou-a correr com os primos, conversando também com eles sobre qualquer assunto que aparecia em sua mente ou nas deles. Pela primeira vez naqueles quatro dias, viu Hamish, Hubert e Harris com os olhinhos enérgicos brilhando de novo. O coração materno de Elinor se aqueceu um pouquinho mais com isso.

Mas no jantar, de repente, todos estavam calados, distantes, quase alheios ao próprio jantar em si, reforçando uma estática ansiosa no ar. Todos pareciam segurar perguntas que seriam melhor não ser ditas.

— Merida não vai descer? — Eithne disparou, cortando o ar e trazendo-os de volta à realidade. Fergus engoliu em seco ao seu lado.

— Ela está escondida em outro castelo — Elinor respondeu, quase sem refletir sobre as palavras que balbuciava. Não poderia responder a verdade a elas. — Nós tivemos a mesma ideia que vocês e preferimos mandá-la para um lugar mais seguro.

— Oh, sim, querida, isso foi bom! — Muireall exclamou.

Mas Eithne nem piscou. Seu olhar foi cravado ao da tia, quase rasgando-a por dentro. A moça dirigiu a atenção para os trigêmeos nas cadeiras à sua frente e, então, voltou-se para a tia mais uma vez. Maldição! Elinor mordeu a língua mais uma vez. Ela entendia que isso não faz sentido. Deus, como pôde ser tão impensada? O mais velho dos meninos era o herdeiro e os outros dois atrás dele, então Cathal e só então sua filha. Como poderia dizer que enviou Merida para um local mais seguro e deixou os herdeiros do reino para trás?

Eithne piscou confusa e, por fim, preocupada, assustada. E, em uma fração de segundo, a expressão dela mudou para o sorriso mais doce e o olhar mais compreensivo, carregado de uma pura profundidade. Ela sabe que alguma coisa de errado aconteceu e que Merida não está segura.

— Entendo... Não gosto nem de pensar no que aconteceria com ela caso conseguissem invadir Dunbroch e alcançá-la. — Eithne estremeceu. O sentimento em suas palavras eram realmente verdadeiros. Elinor conseguia sentir. Porém, elas lhe soavam muito mais como um lamento por uma situação que a moça percebeu ser ruim do que um simples desejo de segurança. — Deus nos livre! Eu espero mesmo que ela fique bem, seja onde for.

— Amém — sua mãe disse.

— Amém... — Elinor, Fergus e os meninos ecoaram em uníssono.

Mas, como se Deus ouvisse suas preces e as atendesse com uma mão pesada ao invés de misericordiosa, um mensageiro esbaforido entrou às pressas no salão com um rolo de pergaminho nas mãos trêmulas. Fergus saltou na cadeira e estendeu o braço para ele. O rei quase arrancou a mensagem do pobre homem, leu-a rápido, os lábios movendo-se a cada palavra.

Seus olhos se arregalaram. A respiração hesitou, subindo e descendo o peito mais e mais rápido. Fergus rangeu os dentes antes de desferir um soco ruidoso sobre a madeira. A outra mão esmagava o pergaminho com força... com ódio.

Elinor sentiu um buraco em seu peito. Só Merida causaria essa reação nele! As hóspedes o fitavam assustadas, respirando curto em ansiedade. O rei jogou a mensagem sobre a mesa e saiu, pisando rápido e duro. Do lado de fora, ouviu o grito de frustração do seu marido.

A mulher puxou o pergaminho para si, os dedos quase se enroscando ao desamassar o material. E então, ela leu. Uma de suas mãos pousou fria sobre o peito nervoso quando os olhos percorreram as palavras escritas com um pedaço de carvão que já se borrava.

 

“Mãe, pai, eu estou bem. Estou escrevendo para dizer que fui capturada por vikings no meio da minha busca. Ainda estou com eles, mas estou bem agora! Por favor, NÃO ataquem NENHUM assentamento de onde ouvirem sobre Berk e o chefe Hikken! Em outro momento vou explicar tudo a vocês. NÃO ATAQUEM!”

 

— SE É GUERRA QUE ELES QUEREM, É GUERRA QUE VÃO TER! — O rei berrava. — EU VOU REVIRAR CADA CANTO DESTE REINO, CADA ASSENTAMENTO PARA ELES VEREM E ATÉ QUE A SOLTEM!

O chão se abriu abaixo de Elinor e a última coisa que ouviu foram as duas mulheres correndo até ela enquanto desmaiava.


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Notas finais do capítulo

E então, o que acharam desse novo ponto de vista? Não esqueçam de comentar!

Guerra está a caminho.



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