Reino em Cinzas escrita por Julia A R da Cunha


Capítulo 10
Merida


Notas iniciais do capítulo

E FINALMENTE chegamos ao final da introdução da história. Daqui pra frente, muitas outras coisas vão se desenrolar - lutas, saques, novas amizades, novos pontos de vista e vamos entender o quê Merida vai precisar fazer para consertar o erro de ter quebrado uma das pedras.

Espero que estejam gostando de tudo até aqui, e boa leitura ♥



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Merida não sabia mais o que sentir depois de tudo. Ela não aguentaria mais a situação. Mais do que tudo no mundo, ela só desejava que aquilo terminasse de uma vez, que esses vikings pegassem logo o que queriam e sumissem, que não tivesse mais nenhum erro a se redimir, ninguém mais para apaziguar ou proteger, sem mais noites de sono perdidas com aqueles pesadelos ou preocupada se alguém invadiria seu quarto para usá-la ou matá-la, ou qualquer uma das outras meninas. Ela queria apenas... sumir.

Mesmo depois de muito tempo – sabia que era muito pois sua garganta já parecia estraçalhada de tão dolorida e os soluços já tinham terminado, sobrando apenas uma lágrima ou outra descendo pelas bochechas –, os dois continuaram sentados ali perto a uma distância segura o suficiente para que não jogasse outra pedra neles. Sem entender bem o porquê, Merida se sentia mal por isso. Talvez fossem as expressões de choque, tristeza, raiva e decepção nos rostos dos dois... tão parecidos com o que ela mesma sentia agora. Tinha então mais uma coisa para remoê-la por dentro.

Hikken se levantou, o olhar perdido no corpo morto de Verctissa, murmurou alguma coisa para Astrid e bamboleou de volta para o caminho de onde vieram. Astrid ficou lá... por alguma razão. O sol já tinha percorrido outro caminho no céu quando ele retornou carregando um rolo de tecido e um par de pás sob o braço. O rapaz ficou parado na mesma posição por um tempo, encarando-a com um rosto exausto.

Merida respirou fundo. Ali, naquele lugar, naquele momento, observando-os com tais olhares, não sentiu mais vontade de manter a guarda elevada. Foi a primeira vez em dias em que não se sentiu ameaçada.

Finalmente, ela estendeu a mão para os dois. Hikken entregou-lhe o tecido e Astrid se aproximou para ajudá-los. Os três trabalharam juntos para estender o pano, deitar Verctissa sobre ele com delicadeza e embrulhá-la no material depois de Merida lhe dar um primeiro e último beijo na testa.

— Me desculpa — ela soluçou sobre o corpo. O choro retornou com todas as forças e explodiu para fora dela. — Eu sinto muito. Eu... Eu tinha que ter protegido vocês, eu prometi, prometi que ia tirar vocês daqui, mas eu não consegui. Nem cheguei a te conhecer, saber do que você gostava, de onde veio, o que... o que sonhava... Adeus.

E então, ela fechou o tecido sobre seu rosto. Hikken se levantou mais uma vez, pegou a pá e começou a cavar na terra logo ao lado. Astrid o acompanhou com a outra, tentando acelerar o processo. Enquanto isso, Merida rogou suas preces de despedida em sussurro para Verctissa e esperou que terminassem de abrir a cova.

Não ficou muito funda ou então teriam passado o dia inteiro no meio da floresta, mas era o suficiente. Os três carregaram o corpo com delicadeza e a repousaram em seu novo leito com carinho. Merida olhou para Hikken e estendeu a mão, apontando o dedo para a pá. Ele lhe entregou a ferramenta e Merida a segurou com firmeza. Respirou fundo, fitando-a mais um pouco e enfim despejou o primeiro monte de terra sobre ela.

Após o enterro, Merida se agachou mais uma vez em busca de dois pedaços soltos de madeira. Não poderia deixar que aquela cova se perdesse na memória, passando batida por todo mundo – pelo menos, não por enquanto. Agora, aquele local seria demarcado de forma apropriada, com tudo que Verctissa tinha o direito dentro de sua cultura. Encontrando o que precisava, puxou as fibras e raízes soltas no chão e usou-as para amarrar os galhos unidos na forma de uma cruz.

Ela se virou para os dois mais uma vez e sinalizou por ajuda. Astrid foi quem avançou e a auxiliou a fincar a cruz no chão logo acima da cova, dando batidas da pá sobre a madeira para que afundasse enquanto Merida juntava algumas pedras ao redor dela para assegurar-se de que ficaria em pé. Estava feito.

Os três continuaram em silêncio por um tempo, fitando uns aos outros e ao túmulo. E então, uma das chamas azuis se acendeu no meio deles.

Merida deu um salto para trás assim como os outros dois. A luz permaneceu ali, com aquele formato quase humano, emitindo aquele som de uma voz distante e etérea. Ela estendeu a mão para a chama até quase tocá-la. A luz se aproximou e se dividiu em três, preenchendo o espaço que havia entre os jovens pairando para a frente de cada um deles.

Astrid indagou alguma coisa e Hikken só balançou a cabeça. Não precisou entender o idioma deles para saber que queriam entender o que estava acontecendo. E então, as luzes voaram sobre seus peitos, onde atravessaram seus corpos e sumiram. A mente da princesa estava zonza demais para raciocinar muito. Era ali que as luzes a queriam levar? Para junto deles! Mas... por quê? Aquela pergunta, como qualquer outra que tenha surgido em seus pensamentos, os acompanhou no caminho dolorosamente silencioso de volta ao assentamento.

Dar a notícia às outras não foi tão ruim quanto ela imaginou que fosse, afinal, já estava atordoada demais para sentir qualquer outra coisa adicional com os choros, soluços e confusão das meninas. Explicar sobre as luzes mágicas também foi complicado. O luto se misturou a olhares assustados e mãos rápidas fazendo o sinal da cruz sobre seus corações, não só por verem as luzes como espíritos sombrios, mas elas só entenderam como as conhecia quando contou tudo o que aconteceu meses antes durante o torneio dos pretendentes. Nem sabia bem por que tinha contado cada detalhe, mas sua língua não tinha mais qualquer filtro.

Em um momento aquilo passou a ser demais para sua mente digerir e ela bamboleou para o lado de fora e se sentou no chão. Por vezes sentia as lágrimas escorrendo pelo seu rosto, mas não soluçava ou chorava mais como antes. Logo elas paravam e secavam antes de escorrerem de novo. Felizmente, ninguém tentou persuadi-la a voltar para dentro.

Afraig e Muire apareceram de repente ao seu lado e se sentaram com ela. Ambas tinham os rostos inchados e vermelhos. Ninguém disse nada. Elas só ficaram lá, juntas, fitando o movimento ao seu redor. Muire a abraçou e apoiou a cabeça em seu ombro. Mesmo sendo tão repentino, Merida apenas correspondeu. Do outro lado, Afraig se apoiou sobre ela e acariciou seus cabelos.

— Vocês... — a pergunta travou na garganta da princesa — não se importam com tudo que eu disse? Digo... tudo.

As duas trocaram olhares por alguns segundos e então, só deram de ombros.

— Pra falar a verdade... não — Muire respondeu. — Foi um acidente e não acho que você é do demônio por ver as luzes ou por elas te chamarem. Sei lá. As outras só ‘tão meio assustadas, mas elas sabem que você não é do mal. Pode ficar tranquila com a gente, princesa.

As lágrimas se explodiram mais uma vez para fora, junto com soluços fortes que taparam tudo o que ela ouvia. Era alívio que percorria agora cada veia de seu corpo, lavando toda a sua alma. As duas a abraçaram ainda mais forte. Sua penitência finalmente tinha terminado.

As três continuaram ali por várias horas. O ar livre era o único local onde conseguia encontrar paz em momentos tão desesperadores, e ela já tinha se cansado de ficar dentro daquele lugar. Ficar a tarde toda sentada no banco ao lado das duas novas companheiras, apoiada sobre o peito de Muire enquanto ela lhe acariciava os cabelos, observando a movimentação ao seu redor a acalmou com o passar do tempo, até que o horror se transformou em torpor e o torpor começava a se transformar em apenas cansaço.

Merida se levantou de repente.

— O que aconteceu aqui enquanto... eu fui para lá?

Muire deu de ombros.

— Eu não sei direito. Eu desmaiei quando vi aqueles bichos... Afraig cuidou de mim e viu tudo.

A jovem loira se ajeitou no banco. Seu cenho se franziu em uma expressão confusa e ela balançou a cabeça para os lados.

— As meninas correram pro quarto de novo e ficaram lá chorando e gritando. A Muire desmaiou e aquele menino de cabelo preto veio pra cima da gente. Eu achei que ele fosse fazer alguma coisa... sei lá. Pior? Mas ele só olhou se ela não tinha batido a cabeça, tentou tirar ela do chão e carregou praqueles bancos lá dentro do salão. Ele deu o casaco dele pra Muire apoiar a cabeça que nem um travesseiro. E... só ficou ali comigo enquanto ela não acordava. Ofereceu água pra ela quando acordou e depois saiu.

Merida voltou sua atenção para o espaço que formava a praça a sua frente. Diante de uma das cabanas do outro lado do centro, o tal rapaz alimentava seu dragão com uma cesta de peixes enquanto o acariciava com uma das mãos. De vez em quando, podia vê-lo lançando olhadelas discretas na direção das meninas. Merida não sabia muito bem o que pensar de tudo isso.

— Você sabe o nome dele? — Muire perguntou.

Merida balançou a cabeça.

— Não prestei atenção em como o chamavam quando ele aparecia... e vimos ele poucas vezes. Eu só... acho que preciso dormir.

— Isso — Afraig assentiu. — Vai lá. Você viu muita coisa hoje.

Ela se despediu das duas e se arrastou para o quarto. Ignorou por completo quem quer que estivesse no salão, a comida sobre a mesa e o que as meninas diziam dentro do cômodo. Merida se limitou a apenas cair na cama e desmaiar de exaustão.

Ela acordou de repente e pegou-se fitando o teto sobre sua cabeça como se estivesse naquela posição há muito tempo. Um feixe de luz fraca, meio azulada e meio dourada, atravessava uma fresta na porta. Merida se sentou. Não havia quase ninguém no quarto, exceto por Muire sentada abraçando as próprias pernas que a observava do outro canto do cômodo.

— Bom dia — ela saudou. Merida esfregou os olhos. Só agora percebia que não teve nem sonhos e nem pesadelos durante o sono, e suspirou aliviada.

— Eu dormi tanto tempo assim?

Muire fez que sim com a cabeça.

— Você caiu aí e apagou. Ninguém quis te incomodar depois de tudo... outras não querem falar com você por causa da... bruxaria... daí te deixamos dormindo. Todo mundo já levantou e foi comer. A moça levou a gente aonde vocês enterraram a Verctissa, depois voltamo’. Eu não queria ter te deixado sozinha, mas a outra menina loira ficou por aqui, aquela mais alta.

— Tudo bem... Eles não iriam me machucar.

Muire ergueu os olhos.

— Como você sabe?

As luzes me trouxeram até eles. Era meu destino e o deles que nos encontrássemos de alguma forma. Elas apareceram quando trabalhamos juntos. Merida só balançou a cabeça e deu de ombros.

— Eles me ajudaram a enterrá-la, não foi? E o menino cuidou de você quando desmaiou. — Muire ficou calada, digerindo as palavras. Ela então ergueu as sobrancelhas, como se as coisas começassem a fazer sentido. — E naquela noite, quando nos capturaram... eles brigaram entre si, sacaram armas contra aqueles homens.

— Acha que foi por nossa causa? E não por... outra coisa, outra briga deles?

Merida assentiu. Assim como para a amiga, os acontecimentos pareciam finalmente ter uma ligação clara entre si. O ronco do seu estômago a trouxe de volta para a realidade. Ela se levantou e se espreguiçou.

— Vamos. Vou ver se sobrou alguma coisa do café para mim.

— Ah, com certeza — Muire disse, rindo baixinho porém com um nervosismo brincando em sua expressão. — Quase ninguém teve muita fome. Tem bastante ainda.

As duas caminharam para o salão, onde todos os outros se encontravam, cada um sentado em um canto ou focado em alguma atividade que os distraísse; Hikken e Astrid estavam lado a lado de mãos dadas e olhos perdidos no chão, assim como Bodicca e Verica. O velho, como sempre, se encontrava em um canto, ao mesmo tempo perdido em seus pensamentos e observando a todos ao seu redor. Merida decidiu não prestar atenção em ninguém por enquanto. Contudo, não pôde deixar de reparar que agora as portas do salão ficavam abertas. Fazia sentido, já que não tinham mais nada lá fora que precisassem esconder.

E realmente havia bastante comida sobre a mesa ainda e a barriga de Merida agradeceu por isso. Precisaria da sensação de saciedade, do calor do alimento dentro de si, para que pudesse entender como prosseguir dali em diante. Não só isso, como focar naquilo a mantinha distante o suficiente de toda a dor para que permanecesse com uma expressão pacífica. Na verdade, estava mesmo calma, por mais surpreendente que fosse. O maior choque da morte de Verctissa ficara no dia anterior, ou talvez, fosse apenas o torpor de quem acabou de acordar de um sono infinito.

Enquanto comia, as meninas levantaram-se uma a uma e se sentaram ao seu lado na mesa, buscando um apoio e um escudo contra a desgraça. Merida respirou fundo e continuou focada no desjejum.

Uma hora, um homem grande e loiro entrou no salão acompanhado de outro mais jovem, de cabelos ruivos e barba rala. Os dois se aproximaram do casal e conversaram. Hikken falou alguma coisa para o loiro, que assentiu e saiu mais uma vez, deixando o outro para trás ainda conversando com Hikken e Astrid. Pouco depois, o rapaz moreno que ajudou Muire chegou, seguido pela outra moça loira e mais dois garotos. Não tinha reparado o quanto um deles era parecido com a moça, gêmeos, sem sombra de dúvida. Seu coração se apertou de saudade dos três irmãozinhos.

Todos que entravam davam uma olhada nas meninas e então se juntavam aos outros. Por fim, todos se levantaram e se aproximaram.

Merida ergueu as costas e levantou a cabeça para encará-los.

— Bom dia — o ruivo cumprimentou na língua dela. As meninas arfaram ao seu lado. Merida franziu as sobrancelhas, confusa. — Meu nome é Sean, muito prazer.

— Como fala minha língua? Quem é você?

Sean suspirou e virou o rosto para os nórdicos por um segundo antes de voltar a elas.

— Eu nasci e cresci em Dunbroch. Mas minha mãe era uma mulher do norte, por isso também posso falar com eles — sinalizou com a cabeça. — Eles me chamaram aqui pra que a gente possa conversar. Eu soube que as coisas... ficaram bem complicadas por aqui.

— Ninguém tem nada pra falar com essa gente! — Afraig cuspiu as palavras. — Eles só capturam a gente, matam, usam e roubam.

Sean ergueu as sobrancelhas, mas ainda se manteve visivelmente calmo. Por um segundo, Merida conseguiu vislumbrar um oscilar nos seus olhos, como a sombra de um pensamento ou lembrança ruim, que logo se dissipou. Ele piscou, respirou fundo e então continuou.

— Eu entendo que podem pensar isso, ainda mais estando aqui e depois do que devem ter passado...

— É, passamo’! — Deirdriu replicou. — Nossa amiga morreu por causa deles e desses monstro! Não temo’ nada pra falar!

Sean a ouviu com paciência.

— Eles me contaram sobre isso agora há pouco, quando entrei aqui. Eu sinto muito por tudo, mas a sua amiga morreu por não ter tido como ouvir eles dizerem que não seria atacada por nada nem ninguém aqui dentro, nesse assentamento, por isso ela correu para a floresta. O desespero dela e a falta de entender foi o que matou ela.

Bodicca e Verica soltaram um riso encharcado de deboche. Afraig começou a balançar as pernas de um jeito tão ansioso que seu corpo todo tremeu junto. Porém todas ainda ficaram caladas, em especial, Merida. Seu estômago se embrulhou. Afinal, ele estava certo.

— Não precisam falar nada então — Sean continuou —, mas eles têm o que explicar pra vocês.

Merida se ajeitou no banco e cravou os olhos nos dele.

— Sim. Temos coisas a esclarecer.

Um brilho satisfeito percorreu o seu rosto. Sean virou-se para trás e falou alguma coisa para o grupo que os fez chegarem ainda mais perto e mudarem de postura. Hikken começou a falar e Sean alternava entre olhar para ele e para as meninas enquanto traduzia:

— Por mais que os nórdicos tenham chegado aqui e quase sempre agido juntos, eles não são um único povo. Várias tribos vieram pra cá, pras suas terras, sim, com um motivo em geral, mas cada uma querendo coisas diferentes e com costumes diferentes. Os homens que sequestraram vocês não são da tribo deles, o povo de Berk, e ninguém de Berk ‘tava lá no saque daquele dia. Na verdade, nenhum deles saqueou lugar nenhum ainda porque estavam construindo esse assentamento até poucos dias atrás e precisavam de cada pessoa trabalhando pra terminar tudo logo.

— É, não saquearam ainda. Reconfortante — Merida interrompeu.

Sean parou, ouviu-a e disse algo para os jovens, provavelmente traduzia o que ela tinha dito. Hikken respirou fundo e Merida percebeu um sutil revirar de olhos. Enfim, voltou a falar.

— Tá certa. Eles pretendiam mesmo saquear. Porque eles passaram por várias coisas no último ano que acabaram deixando as reservas de alimentos e ouro de Berk bem mais baixas. E ele, Hikken, como chefe, tem o dever de não deixar o seu povo passar fome. Sem plantações prontas, não tendo como caçar ou pescar a quantidade necessária antes do inverno chegar e sem dinheiro pra comprar comida dos comerciantes, roubar foi o que sobrou. Os berkianos também vieram pra salvar os dragões daqui de Dunbroch.

— Não existem dragões em Dunbroch — ela disse. Mais uma vez, Sean traduziu e esperou a resposta.

— Bom... existem. Eles não trouxeram esses animais nos barcos, já estavam aqui. Pode ser que eles vivam em matas muito fechadas e isoladas, longe dos campos abertos das fazendas e vilas, por isso vocês achavam que não havia nenhum. Mas foi justamente por essas matas que os vikings precisaram passar pra não chamarem atenção antes da hora, o que fez com que encontrassem os dragões, mas só os berkianos entre todas essas tribos aqui veem os dragões como amigos. Eles seriam mortos se Berk se recusasse a ajudar nos saques. As duas situações se juntaram e fizeram com que viessem pra Dunbroch. Se não fosse pelos dragões e pelos suprimentos, nem teriam saído de casa.

— E por que eles não tentaram simplesmente pedir ajuda às outras tribos ou ao rei?

— Berk não tem muitos contatos com outras tribos amigáveis e, as que os conhecem além dessas, não aprovam seus costumes específicos. Só estão recebendo ajuda e comida dos outros pra ficar aqui com a promessa de usar os dragões nos saques. Pedir socorro a eles seria o mesmo que pedir pra ouvir “problema seu”, até mesmo a um rei nórdico, já que Berk é olhada com tanto desdém. E antes do desdém, tudo o que recebiam era falta de atenção.

Hikken falou mais alguma coisa, desta vez encarando direto para Merida. Ao terminar, ele ergueu as sobrancelhas com um convencimento não orgulhoso, mas triste.

— E, além disso, mesmo que viessem aqui, a Dunbroch, em busca de ajuda, o seu rei os teria ouvido? Ou teria visto apenas um grupo de vikings a ser expulso?

Merida mordeu a língua em silêncio. Conhecia seu pai e sabia o quanto ele era impulsivo, levado pelas emoções, exatamente como ela própria. Fergus não sentia pelos nórdicos além de ódio e com certeza teria rido na cara do emissário que enviassem pedindo por diplomacia. As invasões vikings eram constantes não só em Dunbroch, mas em toda as terras dos pictos, escotos e gaélicos, e também nos reinos saxões. Foram aquelas invasões que uniram os clãs sob o novo rei Fergus, e a princesa podia entender que seu pai não faria distinção entre uma tribo e outra. Jamais teriam recebido ajuda.

Mas precisava manter o mínimo de controle ali dentro. Ainda não sabia em quem confiar além das meninas.

— Por que acha que alguém aqui saberia o que o nosso rei pensa ou deixa de pensar?

Astrid foi quem respondeu dessa vez.

— Ela disse que qualquer pessoa com uma cabeça que funcione vê que é nobre, moça. A senhorita tem poder aqui. Por qual outro motivo as suas amigas pararam do seu lado e atrás de você quando se sentiram ameaçadas? E Astrid está dizendo que repararam desde a primeira noite que o seu vestido era muito melhor do que os das outras, seu cabelo, sua pele. Não abaixou a cabeça pra ninguém, nem pros sequestradores e nem pros berkianos. Tá acostumada a mandar, não a obedecer.

Sean mordeu os lábios, segurando uma risada irrequieta.

— E eu sou daqui, princesa. Lembra? Eu ‘tava lá no torneio pela sua mão. Eu sei quem é. Eu te vi entrar na competição e acertar todas as flechas na frente de todo mundo.

A respiração de Merida falhou. Será que ele já contou aos outros? Guardar sua identidade lhe dava uma certa segurança até então. Desse jeito, tinha uma mínima defesa. Sempre aprendeu o que acontece nas guerras, o que acontece com as moças nobres quando uma fortaleza cai. Ou, melhor pensando agora, o que acontece com todas. Mas ferir a princesa é ferir o povo. Podiam torturá-la, vendê-la, usá-la, tudo para atingir Dunbroch... e seu pai.

Sean se recompôs, assim como ela tentou fazer. Astrid continuou o que estava contando.

— Naquela noite, quando levaram vocês pro salão no banquete, os homens queriam se gabar de terem capturado vocês. Mas os berkianos repudiam isso e cada tipo de abuso. O que eles fizeram foi tentar tirar vocês das mãos deles pra garantir que ficariam num lugar mais seguro do que com qualquer outra tribo. Eles querem proteger vocês. Ninguém aqui vai fazer nenhum mal pra vocês. Ela jura, e ela também jura que, se por acaso qualquer um tente machucar alguma de vocês, essa pessoa vai pagar pelas próprias mãos dela. Um juramento vale mais do que imaginam pros nórdicos.

— E como eu posso confiar no juramento dela?

Sean repassou a pergunta para Astrid. A moça a contemplou por alguns segundos e no fim deu de ombros. Sua palavra era tudo que poderia oferecer.

— Mas ‘tamo presa aqui, não ‘tamo? — Brigit questionou. Era uma das primeiras vezes que Merida ouvia a voz dela desde que disse seu nome dias antes.

Hikken coçando o queixo com a mão esquerda ao refletir sobre a questão antes de respondê-la. Ao falar, manteve a atenção perdida em um ponto vazio no chão. Falar lhe parecia uma tarefa mais fácil daquele jeito.

— Eles só deixaram vocês presas aqui dentro porque sabiam que poderiam se apavorar com os dragões. O plano era que ficassem no salão enquanto pensavam em um jeito de conversar. Mas Hikken quer que entendam que não precisam ficar aqui se não quiserem. Eles sabem onde os vikings não estão atacando e podem criar um caminho livre, em segredo de qualquer outra pessoa, nórdica ou nativa, até esses lugares. Só não vão levar vocês de volta pras suas fazendas ou vilas porque não seria seguro voltar onde já foi saqueado. Porém, pra quem for ficar, o juramento de proteção continua valendo. E eu me proponho a ajudar vocês a conversar ou a aprender a língua deles.

Silêncio. Astrid continuou a ideia inicial apresentada pelo companheiro, gesticulando ao falar e olhando para cada uma delas. Havia compaixão na sua expressão.

— Ela disse que compreende o que já aconteceu com vocês quando foram capturadas e a dor que isso causa. Eles sabem pois os homens contaram isso como se fosse uma vitória. Por isso só ela e Röffa se aproximaram mais de vocês, já que imaginaram que não ficariam nada bem com um dos rapazes chegando muito perto depois disso, ainda mais sem poderem se comunicar. Parece que funcionou. Também por causa disso ela pode garantir que só outras mulheres levem pra longe daqui quem quiser partir, se se sentirem mais seguras assim.

— Eu quero ir — Verica declarou com a voz trêmula sem mal ter tido um minuto que fosse para refletir sobre o assunto. Seu olhar mostrava o quanto estava desesperada pelo fim daquele inferno em sua vida. Merida segurou sua mão, fria como um bloco de gelo.

Imediatamente, Éua e Huctia se manifestaram em concordância. As outras continuaram caladas, pensativas. Astrid assentiu com a cabeça para elas. Seria arranjado. À sua esquerda, Muire e Afraig a encaravam.

— Eu vou aonde você for — Afraig disse e Muire gesticulou que ela também.

— Vou ficar — Deirdriu anunciou com uma voz vazia. — Não tem mais nenhum lugar pra ir pra mim. Já perdi tudo. Então... tanto faz.

Calafrios percorreram as entranhas da princesa, subindo e descendo pelo seu corpo liberando um suor frio por onde passavam. Ela antevia o seu destino e o temia. Para ser capaz de enxergar por qual razão as luzes a levaram a eles e penetraram os peitos de Hikken e Astrid, ela precisaria ficar ali. Mas, Deus, como queria apenas dar as costas a toda a confusão e ir embora! Merida mordeu os lábios e observou as outras. Quem disse que queria ir não mudou de postura. Contudo, Brigit colocou uma mão sobre o ombro de Deirdriu.

— Não vou te deixar sozinha... Então eu fico — ela dizia, sem tirar os olhos da outra moça. Deirdriu tentou sorrir para ela, apesar de ainda parecer entorpecida em suas emoções.

A princesa engoliu em seco e voltou-se para Sean.

— Eu preciso garantir que elas fiquem seguras aonde quer que vão. Eu... não posso deixá-las aqui sem ter certeza de que estarão em boas mãos e que os juramentos podem e vão ser cumpridos.

Sean assentiu.

— Eu entendo. Vou falar isso pra eles. Mas... posso contar quem você é? Vão precisar saber por que você diz o que diz.

Merida respirou fundo e concordou em silêncio. Não tinha mais pra quê esconder já que seu antigo raciocínio claramente não fazia mais sentido e seria melhor para sua própria missão que eles soubessem.

Sean voltou-se ao grupo atrás de si e sua revelação roubou suspiros questionadores e encaradas. Ela tomou coragem para ver os seus rostos diretamente. Os cenhos franzidos, olhos arregalados, alguns boquiabertos. O de cabelos pretos teve uma crise de risos. Podiam ter entendido que era da nobreza, entretanto com certeza não esperavam que fosse uma princesa.

Um deles, o loiro notavelmente alto, forte e gordo resmungou algumas palavras. Sean olhou para ela.

— Ele disse que você pode ajudar então.

Merida apertou uma mão na outra para não verem que ela tremia. A fina camada de suor tinha uma sensação estranha ao toque. Ela gemeu de ansiedade naqueles segundos de reflexão.

— Se eles recebessem ajuda com o que precisam, se tivessem o ouro e a comida, parariam de saquear e então iriam embora? Sem mais surpresas? Pedidos?

Sean transmitiu-lhes a pergunta. Hikken fez que sim com a cabeça e disse mais alguma coisa.

— Ele só gostaria de pedir a proteção do rei. Abandonar os saques ainda é perigoso para eles, mesmo que tenham os dragões. A tribo de Berk não é grande, e nem todos eles vieram para cá. Se os outros se unissem para atacar, perderiam. Mas ele também diz que outros chefes, outros guerreiros, também podem aceitar um acordo com a coroa ao invés de só guerra. Seria bom que eles não fossem ignorados.

Merida balançou a cabeça.

— Meu pai não me ouviria falando de diplomacia com vocês, quem dirá com cada uma das tribos. Tem que ter outra coisa que eu possa fazer.

Foi Astrid quem respondeu assim que escutou tudo em palavras nórdicas.

— “Fique”, ela disse. Se continuar no assentamento, seu pai não vai arriscar enviar um exército contra eles que pode te matar sem querer. Enquanto isso, Berk pode te provar quem eles são de verdade, te proteger e a todas as outras, e não provocar os outros chefes até que todo mundo encontre uma solução pra todos os problemas.

Só que assim, os saques ainda vão precisar acontecer, pensou, porém não podia nem cogitar dizer aquilo em voz alta. As meninas que já se assustaram com ela a julgariam ainda mais por concordar em ficar ali e deixar mais roubos acontecerem, e talvez elas ainda não tivessem ligado os pontos. Merida foi assaltada pela lembrança das aulas de sua mãe. Ser uma princesa nem sempre é um paraíso, ela dizia. Mais cedo ou mais tarde, as escolhas difíceis viriam. Como em muitas outras vezes, a rainha Elinor estava correta.

Ela apoiou a cabeça nas mãos, entrelaçando os dedos nos cachos, e soltou o ar com força. Cada segundo de silêncio enchia a atmosfera com mais e mais expectativa.

— As luzes me trouxeram aqui por um motivo e não posso deixar ninguém aqui sozinha... — divagou em voz alta. Pelo visto, Sean traduziu aquilo, pois falava. Respirou fundo, erguendo a cabeça. Seu corpo pulsava com uma nova força, calma e certeza que não sentia há tempos. Sabia o que tinha que fazer e não fugiria mais das decisões difíceis. Os erros anteriores já a tinham agredido o suficiente para aprender. — Eu vou ficar.


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