Dos ritos, das palavras e das magias escrita por Lyn Black, Indignado Secreto de Natal


Capítulo 4
O Homem da Barba Ruiva: Um Aviso Ancestral


Notas iniciais do capítulo

Ai, ai... esse conto mexe comigo, confesso!
Espero que gostem. Boa leitura ♥



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SEGUNDO CONTO: O HOMEM DA BARBA RUIVA, UM AVISO ANCESTRAL

 

As contadoras que me sussurram essa história nas beiradas de uma escura floresta, sendo iluminadas apenas pela luz da Lua, me pediram que não deixasse escrito seus nomes, suas moradas e seus feitiços. Elas moram no coração do mundo e são feitas da própria magia. 

 

 

         

 

O HOMEM DA BARBA RUIVA

um aviso ancestral 

 

Perto de um pequeno vilarejo, não muito distante daqui, mas também não muito perto, morava um curioso homem. Ele tinha cabelos vermelhos, uma barba grande e volumosa e uma gargalhada que faziam os copos de cerveja tremerem. Sua casa ficava na colina mais alta da região, quase acima das nuvens, e sua riqueza era maior do que a de todo o vilarejo junto, além de possuir extensas terras. Morava sozinho em um grande casarão há anos, e não deixava nenhum camponês entrar em sua casa, pois era muito orgulhoso e se achava melhor do que os outros. 

Esse homem, entretanto, nunca parecia contente com o que tinha, e teimava em arranjar brigas com os camponeses que moravam pela região: ora era uma galinha fugida, outra vez uma disputa por um curso de rio. Rabugento e rude, ele usava seu poder contra os moradores do sopé da colina. Alguns diziam que ele tinha sido abandonado pela esposa e por isso era tão ranzinza, já outros contavam que ele sofria do mal do ouro e que morreria querendo mais e mais. 

O Barba Ruiva, como era chamado, gostava muito de duelar, é verdade, embora não fosse o mais exímio dos espadachins. Se ele te intimasse para uma disputa, não havia escapatória, pois teimava até que aceitasse e depois só descansava quando você - ele quase nunca perdia - pedisse rendição no chão. Quase todos os homens jovens já haviam participado de suas disputas, e tornara-se quase um rito de passagem. Caso você se negasse a duelar, ele não permitia que você e sua família plantassem nas terras dele, que eram as mais férteis da região.   

Uma vez, entretanto, uma viajante buscou abrigo no vilarejo. Dizia estar à caminho de aventuras e precisava descansar por alguns dias antes de retomar a sua viagem. De sorriso largo, cabelos volumosos e jeito caloroso, ela conquistou rapidamente as crianças com truques mágicos e os adultos com chás milagrosos e boas histórias. Carregava somente uma bolsa à tiracolo e vinha de muito longe, de um lugar com muito mais Sol e com magia por todo o canto.

Quando o homem desceu a colina para beber na taberna, escutou uma roda de jovens comentando admirados sobre as habilidades mágicas da moça. Intrigado, então, foi atrás dela: embora os anciões não gostassem muito dele, Barba Ruiva ainda era um modelo para as crianças, e não queria concorrência. Ao se defrontar com a garota, fez pouco caso dela: além de ter metade da sua estatura e não carregar espada na cintura, não parecia passar de uma menina. 

A fim de testar suas habilidades e reafirmar sua força, então, Barba Ruiva convidou-a para uma disputa amigável. Ao escutar a proposta, ela apenas balançou a cabeça e recusou-a:

— Lutamos com armas muito distintas, não seria justo — colocou.

Indignado, o homem teimou, teimou e teimou. A bruxa, contudo, mantinha sua posição. Ela também havia ficado preocupada com os moradores, que relataram as tiranias do homem: uma vez, ele interceptara o rio e passara a cobrar pela água! A comunidade mobilizara-se e resistira às ações, mas Barba Ruiva contratava mercenários e os ameaçava. Dessa forma, a forasteira se negava a participar do duelo, e apressava a data de sua despedida. Desejava, no fundo, se reunir com outros bruxos para poder ajudar seus novos amigos do vilarejo a se livrarem de vez da tirania do homem. 

Chegando a hora de sua partida, o povoado reuniu-se para dar adeus à visitante. Algumas crianças recolheram flores silvestres e as anciãs deram à ela as suas bênçãos. Ao escutar que ela ia embora sem dar a ele o tão desejado duelo, Barba Ruiva enfureceu-se. Desceu a colina armado dos pés à cabeça, vestindo a sua armadura mais dourada e com a espada reluzente em mãos. 

Ao chegar no centro da vila, onde ocorriam as despedidas, lançou a espada no chão em sinal de desafio. Toda a roda de pessoas silenciou-se e encararam para a garota de escuros cabelos. Ela tentou convencê-lo a deixá-la ir sem a disputa, mas Barba Ruiva não cedeu. Suspirando, ela apoiou sua bolsa no chão, e tirou de dentro dela um escudo e o que parecia ser um graveto. 

Barba Ruiva riu e fez pouco caso dela:

 — Ora essa, você tinha era certeza de que iria perder para mim! — exclamou, convencido.

O duelo, entretanto, não durou muito. A princípio, ela apenas defendeu-se das agressivas investidas com o velho escudo, mas ele queria acabar com aquilo logo, com confronto direto. Quando o homem correu com a espada para cima dela, a viajante apenas sacudiu o graveto, sussurrou estranhas palavras e ele ficou imobilizado no ar, espada em riste, causando comoção na aldeia, que os observava. Com um baque, Barba Ruiva caiu no chão. Sem comemorar vitória, ela agachou-se e sacudiu a cabeça enquanto observava-o. 

— Agora posso, enfim, partir. Não se preocupe, logo retomará o movimento. Que você encontre paz — falou, e após olhar novamente para o povo que a observava com olhos arregalados, agarrou a bolsa e foi-se embora.

Barba Ruiva, contudo, não aceitou a sua derrota e, após retomar movimento, pegou o seu mais veloz cavalo e partiu a galope atrás dela, em busca de vingança. As crianças tentaram correr para avisá-la, mas não conseguiram encontrar a moça na estradinha. Ela andava oculta pelas sombras da floresta por trilhas invisíveis aos trouxas e por isso, e somente por isso, não foi encontrada naquela noite pelo homem, que jurou a sua morte. A bruxa, porém, pressentiu a sua aproximação, e decidiu acompanhar a movimentação dele antes de seguir seu caminho.

Foi assim que ela viu quando, enfurecido por retornar sem sangue nas mãos, o homem cruzou com um rapaz. Irado, ao notar que o moço carregava nas mãos um graveto semelhante ao da bruxa, e que luzes flutuantes, claramente mágicas, acompanhavam-no, Barba Ruiva acelerou o cavalo, retirou a espada da bainha e friamente cortou a cabeça dele, de cima de seu cavalo. Ao se dar conta de seu feito, porém, ele fugiu veloz e não viu a feiticeira sair correndo do meio das árvores.

A moça recolheu o corpo do outro com lágrimas nos olhos e, naquele momento, jurou vingança pelo menino. Segurando-o contra o próprio corpo, ela embalou-o como a um irmão, sentindo-se culpada pela sua morte. Suas mãos rapidamente estavam cobertas do sangue do garoto não muito mais novo do que ela mesma. Decidida a dar a ele um descanso final, então, a menina ergueu seu corpo com ajuda de um feitiço. Ao olhar para o seu pescoço, entretanto, e para a brilhante marca azulada nele, no formato de meia lua, tomou um susto, deixando o corpo cair na terra com um baque. Agachou-se e ao tocar a marca, soltou um gemido de dor: a marca ardia. 

Subitamente, então, a viajante sentiu como se estivesse sendo observada por mil olhos, e distanciou-se do morto. Aquela marca não lhe era estranha, pois assemelhava-se aos símbolos antigos que sua mestra costumava pintar na pele buscando proteção dos povos mágicos ancestrais. Sentindo que não era desejada no ambiente, a feiticeira virou-se de costas e seguiu em passos rápidos para longe, embrenhando-se pela floresta, olhos parecendo acompanhá-la por todo o percurso, até a aurora enfim cessar. O corpo desapareceu da estrada, como se carregado pelo vento, quando a aurora deu espaço para o Sol. 

 

         

 

Quando Barba Ruiva chegou ao vilarejo, a espada ensanguentada, foi recebido pela comunidade, que condenou-o com os olhos, assumindo que o sangue pertencia à menina. Os moradores do vilarejo e de suas proximidades também aprenderam que a derrota não deveria ser mencionada, caso contrário, sua ira era instantaneamente despertada. Ele havia perdido a luta para uma feiticeira, e aquela sina parecia persegui-lo dia e noite. 

Nessa época, devemos lembrar, bruxos e trouxas ainda viviam em relativa harmonia e era comum que feiticeiros fossem parte das vilas, vivendo abertamente com a magia entre os companheiros não-mágicos. O uso de varinhas, entretanto, não era comum em regiões mais humildes, e as famílias bruxas geralmente atuavam na arte da cura, jeito mais fácil de se integrar. 

O Homem da Barba Ruiva então jurou que se tornaria um bruxo muito poderoso e teria a sua revanche para derrotar, enfim, a mulher. Nos primeiros meses após a disputa, mandou trazerem livros raros de reis e magos famosos, e passou a recitar as palavras mágicas constantemente. Elas, porém, não tinham efeito algum, independente de seus torpes sussurros e de seus vorazes gritos. A sua frustração, dessa forma, foi crescendo gradativamente.  

Decidido a persistir na sua busca, então, ele mandou chamar sábios de todo o mundo. Muitos subiram a colina sob os olhares atentos dos camponeses.

—  Eu quero virar um bruxo — exclamava com o peito estufado. 

Alguns tentaram convencê-lo de que a magia não funcionava assim, outros inventaram tônicos de todas as cores possíveis. Meditou, escalou montanhas e aprendeu cânticos e danças. Um deles ainda chegou a sugerir que ele morasse em uma gruta por um tempo. Nada funcionava. 

—  Eu quero virar um bruxo — repetia novamente, gesticulando com as mãos, mas nada acontecia.

A sua história, assim, foi se espalhando, e ficou conhecido como o homem que queria ser bruxo. Os anos se passaram e, quando o último sábio que chamara até sua casa atravessou a soleira, um suspiro longo escapou da sua garganta. O Homem da Barba Ruiva dava-se por vencido. Talvez, afinal, não fosse seu destino ser versado nas artes da magia. Quando esse pensamento cruzou a sua mente, entretanto, um som chamou a sua atenção: o indistinguível barulho de galope alcançou seus ouvidos e ele apressou seus passos para a porta novamente. 

De cima de uma mula malhada desceu uma pessoa oculta por um capuz acinzentado, o crepúsculo adensando-se atrás de sua imagem. 

— Quem vem aí? — questionou o homem, suspeito e curioso. 

O interlocutor não respondeu, mas estalou os dedos e, subitamente, a lamparina que estava na varanda do Barba Ruiva acendeu-se. Não contendo a sua curiosidade e misturando-a com sua arrogância costumeira, ele empertigou a coluna e estufou o peito. 

— Já chamei todos os magos e sábios, feiticeiro. Quem é você, que não foi chamado, mas afronta-me com a sua presença? 

Abaixando o capuz, um rosto revelou-se: era o de uma senhora que o olhou com um breve sorriso e com írises sagazes. 

— De boca em boca chegou até meus ouvidos que você quer ser um bruxo. É verdade que esse é o seu desejo?

Desconfiado, ele mediu-a da cabeça aos pés, desconcertado pela serenidade no olhar dela. 

— Sim. E quem é você?

Erguendo os ombros, a senhora pareceu dobrar de tamanho. 

— Não tenho nome, mas me conhecem por conceder desejos. 

O homem ainda estava desconfiado. 

— E irá conceder o meu? — ele questionou. 

— A magia pertence a quem tomá-la para si, posso ajudá-lo nesse caminho — respondeu, piscando o olho levemente.

Ao escutar isso, o Homem da Barba Ruiva ponderou, afinal, nenhum dos homens havia falado sobre isso, e agora não lhe restavam muitas opções. Precisava se tornar um bruxo o quanto antes para ter a sua revanche e encontrar a bruxa que o derrotara, e o tempo escorria pelos seus dedos. Dessa forma, olhou-a de soslaio e indicou que entrasse. 

A grande lareira estava acesa, e a velha aproximou-se dela, esfregando os braços. 

— Me diga — começou —, o quanto você quer a magia? 

Encarando as suas costas, Barba Ruiva estufou o peito. 

— Muito.

Ela olhou por sobre seu ombro. 

Muito não será suficiente, meu filho. Me diga, então, para que quer magia?

Ele não demorou para responder. 

— Fui vencido em um duelo por uma bruxa, e quero derrotá-la. Quero ser mais poderoso do que qualquer um. 

Balançando a cabeça, ela virou-se para ele. 

— Assim como as feiticeiras podem quebrar as suas almas, existem magias tão poderosas que são capazes de te darem algum poder mágico. Mas você precisa querer a magia mais do que tudo, aviso, pois na magia nada é dado de graça. 

Deixando a incerteza de lado, o homem apenas assentiu. 

— O que devo fazer?

 

         

 

A senhora não dormiu na sua casa, e sumiu por alguns dias, sem lhe dar instruções. Disse, porém, que iria retornar, e não tardou a aparecer em sua porta. Impaciente, ele recebeu-a.

— Primeiro, saiba do seguinte — ela apontou, uma das sobrancelhas arqueadas —, matar fragmenta a alma de qualquer um, pois vai contra as Leis da Natureza, que são as próprias Leis da Magia. Então, me diga, você já matou?

Barba Ruiva lembrou rapidamente do rosto do garoto que havia degolado, mas optou por omitir a informação. 

— Nunca, senhora — respondeu, olhando fundo nos olhos dela. 

Aparentando engolir a mentira, ela assentiu. 

— A magia é muito curiosa, filho, pois é também morte. 

— E o que isso quer dizer? — sondou. 

Com olhos profundos e um peso que antes ela não parecia carregar, a senhora acendeu o fogo da lareira com o estalo das mãos. Ela retirou do bolso de suas vestes um cachimbo, e acendeu-o, dando uma tragada longa. 

— Você diz que nunca matou. — Uma pausa estendeu-se em sua fala, e ele sentiu-se menor, como se fosse uma criança novamente. — Quando bruxos matam outros bruxos, há poucos remédios para a magia ferida dentro deles mesmos. Consomem-se em ódio. Suas almas podem ser desfeitas em pequenos pedaços com um toque, suas magias encolhem-se. Já quando pessoas sem magia, como você, matam bruxos, a alma também se quebra, mas se cria uma espécie de abertura. A magia não recebe bem quem já tirou a vida de suas filhas e filhos, mas você pode tentar forçá-la a adentrar o seu corpo. Por isso, pergunto novamente, você já matou?

Barba Ruiva ponderou: poderia continuar com sua mentira  ou admitir o assassinato. Escolheu pela mentira. A senhora, então, aceitou sua falsa resposta, e deu-lhe as instruções do tal ritual que deveria performar para se tornar um bruxo. 

Primeiro, ele precisava encontrar uma criança com magia. Levaria-a, assim, para o meio da floresta que ficava perto do vilarejo. Ao lado do rio, com o infante desacordado, deveria recitar certas palavras, que ela sussurrou em seu ouvido com muito cuidado, e lá realizariam juntos o resto do ritual. Tudo deveria ser realizado em noite de Lua Nova, sob a sua presença. A bruxa disse também, quase como segredo, que a magia em crianças era mais forte e maleável, então seria muito mais fácil retirá-la e transferi-la do que com um bruxo adulto. Barba Ruiva engoliu em seco, mas aceitou as ordens. Faria o que fosse preciso. 

 

         

 

A busca pela tal criança mágica não foi difícil, pois um menino do vilarejo demonstrava estranhos talentos: fazia flores murchas crescerem e, contavam os vizinhos, em momentos de raiva, o garotinho flutuava no ar. Barba Ruiva, dessa forma, esgueirou-se pela vila e, notando o momento em que o tal menino enveredava sozinho pela beira da floresta, longe da vista dos pais, pegou-o pelas costas, tapando a sua boca. Pelo amanhecer, calculou, deixaria o menino na orla da floresta.  

A senhora havia lhe dado um lenço encharcado com um líquido viscoso para desacordar o garoto, e logo o homem carregava a criança adormecida no colo, indo em direção do local na floresta indicado pela velha. No breu da floresta sem Lua, cada passo ecoava profundamente, criando um bolo na garganta do mais velho. Não era acostumado a entrar nos espaços da natureza profunda, e apenas tinha uma bruxuleante lamparina na mão, mas, ao encontrar o rio, seguiu seu curso até o ponto onde a senhora combinou de esperá-lo.

Quando lá chegou, ela esperava-o recostada em um largo tronco, vários ponto de luz amarelada flutuando ao seu redor. Sua pele enrugada parecia se misturar com as linhas da árvore, e seus olhos brilhavam sob o tremeluzir das luzes mágicas. Apoiada em uma espécie de bengala, que mais parecia um cajado, a senhora ergueu a coluna e aproximou-se dele, trazendo a criança para seus próprios braços com um mexer de suas mãos.

Sob as orientações dela, o homem despiu-se e entrou no rio, a água pela sua cintura. Pegando o pote de cerâmica que trouxera, derramou o líquido que lá estava: sangue fresco e quente sobre a sua cabeça. O cheiro ácido e metálico logo inundou seus sentidos, e o barulho do rio pareceu aumentar, tomando-o por completo. Seu cabelo grudou na testa e teve que forçar seus olhos a se abrirem. O sangue parecia estar se colando ao seu corpo, e por um momento ele realmente temeu o que fazia, mas seu medo dissipou-se entre os rugidos das águas.

Sentindo as pedras e a areia em seus pés nus, ele respirou fundo e começou a falar, no início com dificuldade e receio, as palavras ensinadas pela senhora. Passados alguns minutos, já repetia-as com fervor, e pareceu ficar ali por horas, recitando-as tantas vezes que seu formato moldou a sua boca e seu corpo à sua curvatura sonora. De olhos fechados, ele mantinha-se parado, esperando o próximo momento do ritual. 

Um barulho de água movendo-se assustou-o levemente e, ao abrir os olhos, notou que a bruxa agora estava dentro do rio, e o menino que antes estava em seu colo, praticamente sendo embalado pelos sussurros da bruxa, agora flutuava entre eles.

— Por que está me ajudando? — ele questionou, sentindo a voz fraca, o corpo endurecido pelo gelo da corrente. 

Os longos cabelos da senhora estavam soltos e pareciam ser parte da correnteza, movimentando-se em confluência com o fluxo do rio.

— Você me disse que nunca matou — ela falou sutilmente, a voz se embalando no vento frio que corria pelas veias da floresta. — Essa foi a sua mentira.  

O homem engoliu em seco, sentindo toda a vulnerabilidade em que se encontrava.

— Confesso que menti, mas não queria perder a sua ajuda — tentou persuadi-la. 

A senhora sorriu, e ele finalmente notou que havia sangue na boca dela. 

— Eu te disse que concedo desejos. — Ela balançava as mãos ritmicamente, o rosto endurecido. — A magia tem seu preço, eu tenho o meu. Até onde você iria para ser um bruxo? 

Ele arregalou os olhos e esticou as mãos.

— Eu faria o impossível, é o meu maior desejo. 

Com um sibilar, ela desacelerou o rio sob o impressionado olhar de Barba Ruiva.

— Mataria a criança? — questionou, indicando com a mão o menino que flutuava.

Ele pareceu hesitar um pouco, mas suspirou. 

— Sim. Se fosse necessário. 

O rosto da senhora pareceu aprofundar-se dentro da noite, e quando se deu conta, ele tinha uma afiada adaga nas mãos. Uma dúvida, entretanto, surgiu na sua mente dele, e segurando a arma com força, falou:

— Qual o seu preço, bruxa? 

Uma estranha risada saiu da garganta da mulher. 

— Não sou uma bruxa, garoto. Sou do povo Sidhe, e no mundo bruxo, pouco se fala sobre nós, pois carregamos as mortes e as magias que nunca cessam. Algumas de nossas filhas são Banshees, espíritos agourentos. Vivemos entre os dois lados do mundo, e você roubou o nosso prometido, cortando-o pelo pescoço em uma estrada anos atrás. Meu preço é tê-lo de volta para o meu povo.  

Com um vinco na testa, ele parecia desorientado. Ela continuou a falar, e sua pele pareceu ficar azulada à medida em que falava. A sua voz, também, transmutou-se cada vez mais em um sibilar, perdendo sua tonalidade humana e adquirindo um eco profundo, oco e quase etéreo. 

— Você terá a sua magia e nós teremos o nosso prometido, de um jeito ou de outro. Agora é a sua chance de ter a magia que tanto almeja. Enfie o punhal encantado no garoto, ele nem sentira, e sugue a sua magia para o seu corpo.  

Quando Barba Ruiva olhou ao seu redor, notou que a floresta havia clareado e surgiam, como se através de um véu, seres azulados como a mulher em sua frente. Alguns pareciam mais humanos, outros completamente disformes. 

— Serei o mais poderoso de todos os bruxos, Sidhe? — questionou, o sangue já seco em sua pele. 

Ela deu um sorriso de canto, e repousou o menino no colo do homem. 

— Sendo o nosso escolhido, terá a imortalidade — sussurrou —, não há maior poder do que esse, não é? Volte a repetir as palavras, faça um corte em seu pulso e atravesse a adaga pelo pescoço da criança, lateralmente, com a mão que foi aberta pelo punhal — indicou.

E assim ele o fez. O menino parecia dormir, e ao atravessar o punhal pelas suas várias camadas, o homem sentiu um profundo arrepio. Suas pupilas rapidamente sumiram, e ele começou a tremer. A criança em seu colo tremia no mesmo ritmo, e uma fumaça dourada pareceu sair do corte feito em seu pescoço, e ir em direção ao corte do pulso do homem, envolvendo-o, adentrando sua boca e se infiltrando pelos seus olhos. 

À medida em que Barba Ruiva recebia a fumaça, entretanto, o sangue em seu rosto começou a escorrer e borbulhar, como se estivesse em ebulição, e seus olhos começaram a revirar de maneira frenética. A barba ruiva, sua marca, logo também começou a queimar, e seu corpo pareceu perder a força. Com um tranco, ficou de joelhos, pendendo os braços que antes sustentavam a criança. O menino, contudo, ficou suspenso sobre as águas pela magia da Sidhe, enquanto o homem lentamente afundava. A mulher azulada encarou-o cair, sem nenhum pesar em seu rosto.  

— Este queimou com a magia que tanto desejou — declarou, erguendo o cadáver do rio. 

O Homem da Barba Ruiva parecia ter enfrentado uma severa fogueira entre as águas do rio. Um Sidhe flutuou até ela, que agora ostentava uma intrincada coroa de flores prateadas e roupas que pareciam ser feitas de pequenas estrelas. 

— Ele ainda não cruzou para o Outro Mundo… Podemos usar seu corpo— 

A Sidhe interrompeu-o, erguendo-se:

— Somos guardiões das mortes, não o violaremos — determinou. 

A senhora, agora transformada em sua forma mágica verdadeira, e não mais oculta no rosto de uma velha mulher, aproximou-se, repousando a mão sob o coração do garoto. Olhando para os seus iguais, murmurou em sua língua mágica:

— Ele vive. 

Murmúrios ininteligíveis, como zumbidos, encheram o ambiente frente ao veredito. O corte no pescoço do menino já sumia, reduzindo-se a uma marca azulada, que cintilava levemente. Com gestos delicados, ela levitou o garoto até o tronco mais próximo e saiu do rio, sendo recebida pelos outros Sidhe com reverências.  

— O menino ainda tem magia? — uma das criaturas perguntou. 

Ela meneou a cabeça.

— Sua magia foi forte o suficiente para reencontrar a sua origem, raridade bem-vinda. Encontramos um sucessor digno. 

Murmúrios de comemoração circularam entre os Sidhes. A senhora, rainha daquele povo antigo, místico e pouco conhecido por nós, bruxos, continuou a falar:

— Que os bruxos e trouxas lembrem sempre que a morte dos filhos da magia é do nosso encargo. O menino será retornado para a sua família não-mágica, e quando chegar a hora, o buscaremos para ser iniciado nos mundos. 

Uma Sidhe de aparência mais jovem — é difícil determinar idade dessa gente —, levantou a voz:

— E quanto ao homem? 

Virando-se, a senhora sorriu docemente, e com um gesto, o corpo afundou-se lentamente na terra. 

— Ele pediu-me ajuda para se tornar um bruxo, e cumpri minha promessa. A Magia fez as suas próprias escolhas. 

Sons de concordância inundaram o ambiente. Uma outra Sidhe, com asas cintilantes abraçando a sua etérea figura, e uma coroa similar na cabeça, aproximou-se de onde a Rainha dos Sidhe pairava. 

— O mundo bruxo aproxima-se de uma nova era de guerra e ocultação, Minha Rainha, eu vi pelos vislumbres dos futuros que se anunciam — colocou com sua melódica voz —, esse menino precisa ser a ponte entre o nosso mundo, já há muito esquecido pela maioria dos feiticeiros... Precisaremos intervir quando bruxos se levantarem contra as suas próprias irmãs, que o garoto seja o nosso filho entre os bruxos — apelou, e gradativamente o seu falar começou a se fundir com o próprio vento. 

Logo, tanto sua voz, como sua imagem e a das outras criaturas passaram a tremeluzir, e o brilho naquela região da floresta decaiu; quando chega a aurora, os Sidhe não podem aparecer em suas verdadeiras formas. O diálogo, porém, aprofundou-se em outras terras, inacessíveis para ouvintes como nós. As contadoras relatam que o resto dessa conversa perdeu-se entre os sussurros da história, e que muitas bruxas esperaram o auxílio do povo mágico, que distanciou-se cada vez mais do mundo tangível. 

O Homem da Barba Ruiva, já perdido entre raízes, terras e seres das profundezas, nunca foi achado, e a comunidade chegou a conclusão de que ele havia se jogado na parte mais funda do rio, poucos quilômetros acima de onde ele realmente descansava, infeliz por não encontrar a magia desejada. Suas riquezas e terras foram compartilhadas igualmente entre os camponeses, agora livres do tirano homem. 

Quanto à feiticeira do início de nossa história, dizem que quando ela retornou para o vilarejo muitas aventuras depois, encontrou, na mesma estrada onde deixara o corpo do rapaz, a própria Rainha Sidhe. As bocas dizem que a misteriosa criatura apenas curvou a cabeça para a moça, em reconhecimento. Ao retornar para o vilarejo, foi recebida pelas crianças já crescidas, que ainda lembravam-se dela, e agora eram moças e rapazes. Havia um feiticeiro no vilarejo, diziam, um que falava com as fadas e com as estrelas. 

Algumas contadoras dizem, já ébrias pelo sono, que quando a bruxa encontrou-o e notou a marca no seu pescoço, deteve seu passo. Muito buscara sobre aquele símbolo, e suas desventuras poderiam dar mil histórias e contos, pois ela também agora carregava a mesma marca em sua nuca. Contam que eles partiram de lá juntos, como arautos da vida, da morte e da magia, e que viveram por muito tempo no mundo terreno, e no véu dos Sidhe pela eternidade. Os seus irmãos e irmãs, também jovens marcados por esse povo, descansam num sono profundo, esperando o momento de serem convocados para fundir os véus entre os mundos e trazer a magia para todos os planos. 

 

FIM

         

 

Ainda reza a lenda de que os Sidhe podem ser convocados em lagos e fontes de água por bruxas e bruxos, e que, entre os milênios sombrios eles abrem os véus entre os mundos e marcam escolhidos. Segundo contam os poucos relatos de suas presenças com feiticeiros, os Sidhe seguram os pêndulos da vida, da morte e da magia, e guardam segredos sombrios sobre o universo. O ritual introduzido no conto pela Rainha Sidhe na história teria dado possivelmente origem às investigações das artes das trevas sobre o teor da magia e da repartição da alma bruxa.

Nota-se que no Reino Unido, embora o Ministério Bruxo Inglês, em alinhamento com as instâncias bruxas internacionais, proíba estudos não-supervisionados e regulados sobre esses temas, o Departamento dos Mistérios, anterior à própria fundação do Ministério, possivelmente conduz experimentos e estudos quanto aos mistérios relativos aos Sidhe. Nada, porém, é confirmado, e podemos concordar que alguns mistérios, por ora, ainda precisam permanecer como mistérios. 

Para os supersticiosos que desejam invocar essas criaturas, existem apenas três indicações que convergem entre todas as coletadas: encontre um rio ou lago, desenhe com magia e com seu sangue o símbolo mágico, e chame pela Rainha Sidhe e pela sua intervenção no plano terreno. 

 

 


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Notas finais do capítulo

to nervosa, confesso, sobre a opinião desse conto!
BEM, ALGUNS ADENDOS:
Sídhe, sìth ou sidh é uma palavra irlandesa e escocesa que se referia inicialmente a colinotas ou montes de terra, os quais se imaginava como o lar de um povo sobrenatural vinculado às fadas e elfos de outras tradições, e posteriormente, a estes próprios habitantes. Tomei a minha liberdade de criar mitos e características próprias a eles!
E agora, só nos resta o último capítulo...



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