Confia em mim? escrita por Gabi Mohannak


Capítulo 9
Capítulo 8


Notas iniciais do capítulo

Capítulo narrado por Eliza.
Ano: 2018



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Eliza

 

Provavelmente eu deveria me sentir culpada por ter passado a última semana atenta a cada movimento de Julia – e mais ainda se eu parar para pensar que ela é minha prima e minha colega de casa –,  mas não me sinto nenhum pouco. E melhor: acho que consegui algumas informações.

 Desde que eu cheguei aqui, Julia me fala sobre como Flávio é o pior e mais insuportável dos garotos que fazem parte do nosso grupo, mas desde que li todas aquelas bobagens na internet me ocorreu que já que a linha entre o amor é o ódio é bem fininha, pode ser que os sentimentos delas estejam sendo mal interpretados.

   Durante a maior parte do luau da semana passada, os meninos ficaram sentados em um canto mais afastado enquanto que as meninas e eu estávamos em volta da pequena fogueira. Enquanto conversava com Renata e trocava olhares com Luan, eu vi que Julia não parava de olhar na direção de Flávio e depois de algum tempo, até levantou e foi se sentar ao lado dele – tão perto que eu poderia assumir que parte da sua cocha acabou ficando em cima da perna dele.

    Além disso, ontem ouvi Luan dizendo para Douglas que já não aguenta mais ouvir Flávio comentando sobre uma tal de Gisele, e embora Julia não estivesse com a gente na hora, tenho certeza de que essa informação chegou até minha prima, porque acabo de ouvir Julia dizendo para Ana algo como “eu tenho quase certeza de que ele gosta de outra pessoa”.

Com certeza ela está falando sobre o garoto das mensagens, o garoto de quem Ana disse que ela gosta e não quer admitir. E eu tenho razões para acreditar que esse garoto seja Flávio.

Volto minha atenção para a lousa, a cada segundo que eu perco devaneando uma nova linha de palavrar de giz aparece no quadro, então eu me apresso para copiar. Ao final, olhando para as coisas que escrevi, imagino que não vou entender minha própria letra quando precisar estudar.

Finalmente, depois do que parecem páginas e mais páginas de explicações relacionadas à química, a professora nos dá alguns minutos para completar os exercícios da apostila.

— O que tu vais fazer hoje depois da aula? – Renata sussurra de sua mesa e a professora de química se vira em nossa direção abruptamente.

— Nada de conversa paralela – ela adverte e volta seus olhos para o livro que examina.

— Lição de casa – eu sussurro de volta um minuto mais tarde.

Ela faz um som de reprovação para minha resposta, ouço o barulho do caderno dela sendo virado e o som de uma folha sendo arrancada com o máximo de delicadeza possível. Estou olhando para a professora durante todo o processo para garantir que ela não nos pegue no flagra e então Renata me passa uma folha com as seguintes palavras escritas à caneta: “Hoje é sexta, Liz! Tu sabes que pode fazer depois. Vamos andar de bike?”.

Me viro para trás tomando bastante cuidado para não fazer barulho e olho para ela como quem diz “você está louca?”. Antes que eu possa abrir minha boca para responder em voz baixa, ela arregala os olhos e aponta para o papel que me entregou segundos antes como se estivesse dando um comando.

“Você sabe que eu não sei andar de bike” escrevo e dobro a folha antes de me virar de novo e entrega-la para ela. Assisti enquanto ela lê o que eu escrevi e revira os olhos exageradamente, mas ela faz um sinal para me eu me vire de volta para frente.

Encaro a professora enquanto ela escreve, e alguns instantes mais tarde, sua mão passa sob meu ombro e o bilhete cai no meu colo. “Por isso mesmo. Topa ter tua primeira aula hoje?”.

Só eu sei como seria importante para mim aprender a andar de bicicleta e, assim, libertar Luan da missão de me carregar para cima e para baixo como tem feito por quase dois meses agora. Ele é gentil o bastante para dizer que não se importa, mas eu não quero que essa situação se prolongue por muito mais tempo, então respondo à caneta e passo a folha para ela. “Fechado.”.

Um instante mais tarde ouço a folha sendo amassada e sorrio satisfeita em minha carteira.

O sarau apesar de não ter atendido as minhas expectativas foi bastante divertido e me deu ainda mais certeza de que Renata é a pessoa com que mais me identifico – as vezes até mais do que com minha prima. Ela e eu gostamos das mesmas músicas, das mesmas séries, das mesmas matérias na escola e, a cada conversa, parece que a gente se conecta mais.

Não me entenda mal, OK? Julia é uma das minhas pessoas preferidas, mas ela também é um pouco difícil de lidar e eu tenho a impressão de que a minha chegada à cidade e ao grupo me coloca sob um holofote em que ela queria estar. Acho que isso faz parte do motivo que fazem ela me lançar as caras emburradas.

Vanessa é certamente uma garota muito legal, mas nem tanto comigo quanto com as outras. Pelo que Renata me contou, me parece que é ela a cola que mantém o grupo unido. A princípio ela era amiga de Renata, enquanto que Julia era amiga de Ana, mas nenhuma das duplas interagia com a outra até que Vanessa entrou para um curso de inglês.

Chegando para a primeira aula, encontrou minha prima e já que elas sempre se viam na escola e não conheciam mais ninguém ali, as duas começaram a sentar juntas e descobriram que podiam ser grandes amigas, trazendo Ana e Renata consigo e formando um quarteto de meninas. Mas não demorou muito para que o grupo crescesse quando as meninas passaram a marcar encontros fora da escola.

Foi assim que Douglas e Luan – que já estavam na mesma sala, mas nem se falavam – começaram a ser amigos. Eles eram obrigados pelos pais a acompanharem suas irmãs em cada reunião de elas decidissem participar, e por esse motivo passaram a conversar bastante. Um ano mais tarde, quando Flávio entrou na escola, os três acabaram se aproximando, e Douglas e Luan com o tempo o convenceram a participar das reuniões.

Sobre os outros? Com Ana tive pouco contato porque apesar de sua simpatia, ela só conversa comigo o necessário e o mesmo vale para Douglas e Flávio. Deles eu fico ainda mais distante já que nem temos aula na mesma sala. E a parte disso resta Luan, o cavaleiro numa bicicleta preta e reluzente – que, a propósito, está mexendo com a minha cabeça.

Apesar de não termos feito nada além de conversar, trocar olhares e segurar as mãos, vê-lo começa a mexer seriamente com as borboletas que habitam meu estômago. Tu és linda, ele disse. E mesmo que eu não tenha sido capaz de responder, eu certamente não consegui esquecer. Nossa amizade tem seguido caminhos suspeitos e aquele sotaque, aquele timbre de voz cantado... mexem comigo.

O sinal soa, mas eu ainda não terminei o exercício, então permaneço sentada em minha carteira. Renata arremessa em mim a bolinha feita com o papel em que escrevíamos e cai na gargalhada enquanto guarda seu material de volta na mochila. Depois me espera mexendo no celular e, quando saímos, todos os outros já esperam por nós.

Vanessa está com as costas apoiadas na parede externa da sala, conversando com outra garota cujo nome eu ainda não aprendi, enquanto Luan, Douglas e Flávio estão arremessando no ar uma mochila que Julia e Ana tentam pegar dando pulinhos e risadinhas um tanto quanto histéricas.

Renata e eu reviramos os olhos simultaneamente e rimos ao perceber esse fato, mas nosso riso atrai o olhar de Flávio que deixa a mochila cair no chão ao que minha prima aproveita para agarrar sua alça e puxá-la para si. E eu novamente penso em como Julia deve estar apaixonada por Flávio e em como essas provocações entre eles parecem cenas de filmes em que os personagens que se odeiam acabam se tornando um casal.

Terminadas as lamentações dos meninos sobre o deslize, e os gritos de Julia, todos nós começamos a andar em direção à saída da escola conversando sobre planos para o final de semana. Ana sugere que façamos mais um churrasco, mas é interrompida por Flávio que quer muito ir à praia para surfar. Os amigos discutem, mas ainda não chegaram a um consenso quando alcançamos nossas bicicletas e resolvem combinar os detalhes por mensagem.

Renata aproveita a deixa para incluir o meu número no grupo de mensagens através do qual eles se falam, para que, quando decidirmos, eu saiba sem ter que perguntar pra Julia e eu pisco para ela em agradecimento. 

— Até que enfim – Luan diz para mim quando me entrega a sua mochila. – Você já está com a gente a quase dois meses. O pessoal demorou demais pra te adicionar.

— Não tem problema – respondo enquanto ele desprende sua bike do bicicletário.

Renata está a uma bicicleta de distância, explicando para as outras meninas que pretende me ensinar a andar de bicicleta hoje, e conta onde pretende fazê-lo. Ainda abaixado, Luan ergue sua cabeça para olhar para mim, mas não diz nada e eu não consigo ler seus olhos.

Quando ele se levanta, eu devolvo a ele sua bolsa e ele guarda a corrente dentro dela. Depois de colocar a mochila em suas costas, ele se senta no banco e, com os pés ainda apoiados no chão, e me ajuda a subir pela estrutura da bicicleta – e eu posso, orgulhosamente, dizer que faço isso sem a menor dificuldade. Vendo que me acomodei, ele passa seus braços ao redor do meu corpo, segura o guidão e, sem esperar os outros, começa a pedalar para fora da calçada, seguindo nosso caminho.

Estou confusa. Geralmente nós saímos todos juntos, mas nenhum de nós fala nada e assim continuamos o percurso. Somos eu e ele, numa bicicleta, cercado pelo barulho dos carros e só. Ele pedala e eu olho a paisagem de casas passando por nós, e então ele muda o caminho. Me pergunto se devo dizer alguma coisa, até porque o silêncio está começando a ficar constrangedor, mas não quero falar sobre o desvio que fizemos, então tento inventar outra coisa para dizer... Nada me ocorre.

— Então quer dizer que a minha irmã vai te ensinar a andar de bicicleta hoje? – A voz de Luan quebra o silêncio.

Seu tom é especulativo e seu hálito quente sopra as palavras em meu pescoço, fazendo os pelos do meu braço se eriçarem. Tenho certeza de que ele se aproximou muito mais do que o necessário antes de falar porque nós já conversamos enquanto montados na bicicleta um milhão de vezes e, à exceção da primeira vez que demos voltas no asfalto para testar a viabilidade da carona, eu nunca senti isso.

— É, acho que sim – digo constrangida pelo arrepio, esperando que ele não tenha percebido.   – Pelo menos foi isso que ela me disse. Será que ela consegue realizar esse milagre?

— Não pode ser tão difícil assim – diz. Sua boca está há poucos centímetros da minha nuca. – Mas que eu quero saber é: eu sou um ciclista tão ruim assim?

— Não entendi – eu digo genuinamente confusa.

— Tu preferiste pedir ajuda para minha irmã do que pra mim – ele diz e sua voz soa chateada, mas acho que ele está fazendo charme.

— Não é bem assim – eu digo e não consigo conter um sorriso antes de responder. – Foi ela quem me ofereceu ajuda.

— Ah, que bom – ele diz e parece estar rindo também. – Pensei que tinha esquecido de mim.

— Não acho que isso é possível – digo e fico feliz que ele não possa olhar para mim a agora.

— Bom, sendo assim... – ele começa a dizer.

A velocidade da bicicleta reduz consideravelmente e eu viro o rosto somente o bastante para perceber, com minha visão periférica, que Luan está aproximando seu rosto. Por um momento, a proximidade é tanta, que eu penso que ele vai beijar meu pescoço, e eu inspiro profundamente e fecho meus olhos. Um segundo mais tarde, a bicicleta volta a se mover normalmente e ele termina a frase que começou.

— ...eu quero te ajudar também – suspira ao final da sentença.

Meus olhos se abrem e eu não entendo. Nada aconteceu.

Uma surpreendente onda de decepção atinge meu corpo me fazendo perceber que eu esperava que algo acontecesse. Talvez não em um beijo não consentido em meu pescoço, mas sim, eu queria algo. Afinal, se eu não estiver imaginando coisas, há pouco menos de uma semana, no dia do luau, o clima que pintou entre nós tão palpável que eu quase estendi a mão para tocar.

E eu sei que o conheço há apenas dois meses, mas Luan parece ser um cara realmente legal – bom, isso se você desconsiderar que só tem 17 anos, mas já bebe e fuma maconha escondido dos pais. Nós temos trocado olhares e, exatamente como eu li naquele site idiota, Luan parece procurar desculpas para me tocar, como no dia da praia em que pegou em minha mão diversas vezes.

Quando eu o vi desviando do caminho, não imaginei que fossemos nos beijar ou algo assim, mas confesso que eu pensei que ele fosse ao menos dizer alguma coisa. Eu me sinto atraída por Luan – e gostaria de uma confirmação de que ele se sente atraído por mim também. Fecho os olhos mais uma vez tentando expulsar a decepção.

Nada aconteceu e nós provavelmente nunca mais tocaremos no assunto.

— Tu vais mesmo me ignorar? – Ele pergunta e eu volto para o presente.

Percebo que agora estamos em uma rua que eu conheço. Nós voltamos ao caminho de sempre e já estamos nos aproximando de casa.

— Me desculpa, eu não ouvi o que você disse – eu digo sem saber como minha voz conseguiu passar pelo nó em minha garganta.

— Te perguntei se eu posso tentar te ensinar a andar de bicicleta.

— Ah, – eu digo – claro.


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