Confia em mim? escrita por Gabi Mohannak


Capítulo 6
Capítulo 5


Notas iniciais do capítulo

Capítulo narrado por Luan.
Ano: 2018



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Luan

 

Pedalar com Liz em cima da minha bicicleta é mais difícil do que eu tento fazer parecer, mas eu não acho que seria capaz de reclamar se alguém viesse me perguntar.

Essa é a terceira semana em que fazemos esse percurso todos os dias: da casa em que ela mora com Julia até a escola e depois de volta para casa e, em quase todas as manhãs Renata pedala ao meu lado, interagindo com a novata, enquanto os outros, num ritmo mais contínuo, seguem alguns metros à frente conversando entre si.

Mentalmente envio sinais de gratidão à minha irmã porque pedalar enquanto falo seria uma missão ainda mais complexa, mas ao mesmo tempo acho as coisas que Eliza tem a dizer muito interessantes. Descobri que seu pai morreu quando ela bem novinha, embora ela não tenha dito a causa da morte. Ela também contou que já morou em diversas cidades e estados do Brasil e muitas curiosidades sobre esses lugares.

Além do papo, eu meio que gosto de quando o vento sopra contra nós trazendo seu cheiro de flores para meus pulmões e até nosso uniforme ridículo – de calças azul-marinho com tiras vermelhas nas laterais e o logo do colégio e uma camiseta polo branca com os mesmos detalhes – fica surpreendentemente bom quando vestido por ela.

Hoje, como em todas as outras vezes em que eu a vi, ela está de tênis Vans preto e os cabelos preços em um rabo de cavalo. Vejo seu rosto de perfil e meus braços cercam seu tronco enquanto suas pernas pendem ao lado esquerdo da bicicleta. Enquanto fala e segura sua mochila que está pendurada na parte da frente do corpo, ela olha para o bairro à nossa volta e eu a observo. Essa cena se repete já há três semanas, mas de alguma forma, cada dia parece único.

Quando paramos em frente à escola, encaixando os pneus da frente nas vagas disponíveis, minhas panturrilhas agradecem pela folga. Ajudo Eliza a pular da bike para o chão e depois de colocar sua própria mochila no lugar certo, ela estica o braço para pegar a minha.

                Eu pego a corrente na minha mochila e me abaixo para prender a minha bicicleta. É nesses breves momentos que temos a sós que Liz e eu trocamos olhares de flerte sem que os outros percebam. Seus olhos são verdes e intensos enquanto consegue sustentar, mas não demora muito para que ela tente disfarçar e encare outro ponto qualquer e isso me desperta sorrisos todas as vezes.

Com minha visão periférica vejo minha irmã, que já terminou de prender a sua bike, vindo em nossa direção. A próxima a se aproximar é Julia, seguida por Ana, Vanessa e Douglas. Flávio é sempre o último – não me pergunte porque.

Tem muitos alunos aqui na área de entrada e, apesar de ainda termos alguns minutos antes do primeiro sinal tocar, as meninas insistem em entrar na escola. Liz as segue, mas não sem antes acenar um tchauzinho para mim e os outros meninos e eu não posso deixar de sorrir para ela. Ainda do lado de fora, Flávio, Douglas e eu encostamos as costas no muro e encaramos a rua.

— Tu trouxeste? – Flávio pergunta um segundo mais tarde.

— O quê? – Eu pergunto, mas sei do que ele está falando.

— Erva – Ele diz.

— Cara, são sete da manhã – eu digo.

— Mas não vai ser, no final do dia – ele argumenta.

— Justo – eu concordo. – É por isso que eu trouxe.

— Esse é meu garoto – seu sorriso de se alarga e ele estende o braço para mim, a mão fechada como que para dar um soco.

Imito seu gesto para que nós nos cumprimentemos e nós imitamos o som de uma explosão quando nossas mãos encostam uma na outra.

— Vocês são doentes – Douglas provoca e nós rimos

Douglas não fuma maconha e apesar de todas as suas provocações, não acredito que realmente se importe de nós fumarmos. Ele me disse uma vez que esse não é o tipo de exemplo que quer dar para Vanessa e isso foi quase um soco na minha cara porque, por minha causa, Renata compra sua própria cota e esconde em seu quarto.

Eu sou a pessoa responsável por ela na ausência dos meus pais – o que significa que eu sou responsável por ela o tempo todo – e por mais que eu provavelmente devesse, eu não acho certo tentar censurar ela de algo que eu faço. Por esse motivo, quando ela me viu com um baseado na mão e quis experimentar, eu simplesmente não pude negar. Nesse aspecto, eu desejo ter podido ser mais como Douglas, mas agora é um pouco tarde.

O primeiro sinal soa e nós passamos pelo portão. Outros alunos passam por nós e nos cumprimentam enquanto nós caminhamos em direção a sala de aula. Ainda lamento pelo fim de nossas férias, esse é o nosso último ano de colégio e à essa altura é um saco estar aqui. Eu mal posso conter a ansiedade para o próximo recesso escolar.

*

As aulas do primeiro período terminam finalmente e nós saímos para o intervalo ladeados por três colegas de sala que estão determinados a roubar a bola dos alunos do ginásio e invadir a quadra para jogar uma partida expressa de futebol. Meu cérebro está doendo porque acabamos de ter aula de literatura e eu simplesmente odeio essa disciplina – o que faz com que eu não esteja exatamente disposto a jogar nesse momento.

Flávio decide ir com os outros garotos enquanto que eu e Douglas decidimos comprar algo para comer. Como de costume, antes de tomar nosso rumo, passamos em frente a sala do segundo ano e espiamos pela janela tentando encontrar nossas irmãs, mas dessa vez é uma outra garota que chama a minha atenção. Ela está em pé de costas para nós, e tem os cabelos castanhos soltos de modo que cobrem suas costas até abaixo da cintura.

Me aproximo da janela e Douglas me imita. Eu finjo estar procurando por Renata, mas só consigo prestar atenção em como a calça do uniforme abraça o traseiro da menina desconhecida.  Sob minha análise, ela troca o peso do corpo de uma perna pra outra, se movendo pouco menos de cinco centímetros para a direita. É o suficiente para revelar a garota que está de frente pra ela – ninguém menos do que a irmã que eu fingia procurar.

Os olhos de Renata encontram os meus e, na esperança de que ela não perceba para onde eu estava olhando um segundo antes, eu sorrio e aceno para ela. Quando ela acena de volta, a garota do bumbum se vira na minha direção abruptamente e meu queixo cai quando eu me dou conta de que é Eliza. Primeiro porque eu nunca a vi de cabelo solto até agora e segundo porque, não consigo entender como eu não reparei no traseiro dela antes.

Estou preparado para perguntar para Douglas se ele viu o mesmo que eu, mas isso não é necessário, porque quando olho para ele, sua expressão é tão alarmada quanto a minha. Antes que possamos nos lembrar de como formular frases com nossas bocas, Vanessa se aproxima por trás e nos dá um susto.

— Por que vocês estão com essas caras de palhaço? – Quer saber.

— Sono – eu digo ao mesmo tempo que Douglas tenta se justificar.

— Fome – é a resposta dele.

Trocamos um olhar cumplice e isso quer dizer que o assunto está encerrado. Por enquanto.

— E aí, partiu pra cantina então? – Ela diz dando um tapinha no braço do irmão.

— Tu trouxeste grana? – Ele pergunta para a irmã, sua expressão é desconfiada.

— Estava pensando que tu podias fazer essa – ela diz e força um sorriso.

— Sempre sobra pra mim – ele retruca, e coloca a mão no bolso para pegar sua carteira.

— O que estamos fazendo? – Renata pergunta para mim e só então que eu percebo que ela e as outras garotas saíram da sala e já estão ao nosso lado.

Sinto um frio na barriga quando eu vejo Eliza de perto e não ouço a resposta que Douglas dá. O cabelo dela é volumoso e está repartido ao meio, e ela está mordendo a parte interna da bochecha, mas para quando percebe que eu estou olhando para ela. Liz sorri discretamente para mim e eu retribuo enquanto nós sustentamos o olhar um do outro por um breve momento. Em seguida ela desvia olhos e encara o espaço entre seus tênis. Eu acho isso uma graça, não posso negar.

 Sinto que meu sorriso está se expandindo, mas sou surpreendido por um soco que recebo no braço. Franzo o cenho ao descer os olhos alguns centímetros e perceber que o soco veio de Julia.

— Estamos esperando o que? – Ela diz me fazendo perceber que perdi uma parte da conversa.

Antes que eu possa dizer qualquer coisa, todos começam a caminhar em direção ao refeitório, e eu não tenho alternativa a não ser segui-los, mas estou incomodado com o soco que Julia me deu. Obviamente não foi forte o bastante para me machucar, mas também não foi só um toquinho, como um soco de brincadeira.

Não é segredo que, para mim, Julia é a mais chata das meninas – e sei que ela também não é a amiga favorita de Renata – mas o fato é: desde o churrasco na casa dela, estou achando a garota quase insuportável.  Ela distribui respostas atravessadas, fecha a cara do nada, sem contar que segue sendo a péssima perdedora de sempre. Ainda está inconformada que fui eu quem ficou responsável por trazer Liz na bicicleta. Mas eu tenho culpa por ela não conseguir suportar o peso das duas?

Além de tudo, parece se achar no direito de dar ordens em mim e nos outros. A última dela? Nós temos que ensinar Eliza a andar de bicicleta o mais rápido possível. E eu até concordo que é um pouco absurdo uma guria de dezesseis anos não saber andar de bicicleta, mas é óbvio que eu não me oporia a ajudar a garota. Será que eu sou o único a enxergar que não cabe a Julia decidir? E chame de birra, ou do que quiser, mas quando ela tenta impor as coisas, me dá vontade de fazer o oposto.

Douglas me cutuca nas costelas e, de volta a realidade, eu escolho meu salgado e pago a funcionária da cantina, que antes mesmo de me entregar o troco já chama o próximo da fila. Enquanto ele faz seu pedido, a mulher me entrega as moedas e eu me retiro, me juntando a Renata, – que já está comendo o pão de queijo que escolheu – Eliza e Julia, que não vão comprar nada porque trouxeram lanche de casa.

O estresse-pós-literatura já passou e eu me sinto pronto para a aula de matemática que haverá no próximo período. Em contrapartida, não me sinto pronto para conversar com Julia como se não estivesse puto com ela, portanto, quando Douglas se junta a nós, invento uma desculpa e o arrasto comigo de volta para a sala de aula, deixando as meninas para trás.

Antes que eu possa me acomodar em minha cadeira, Douglas dá início ao assunto que evitamos alguns minutos atrás.

— Sou só eu, ou a Eliza estava uma gata na sala de aula?

— Não é só tu – eu digo.

Parece que as minhas preces foram atendidas pelo menos uma vez na vida. Antes do churrasco na casa de Julia, tudo o que eu queria era que essa garota fosse ao menos bonitinha, mas surpreendentemente, ela é realmente gata.

— Foi o que eu pensei – ele diz e se senta em seu lugar. – Tu estavas totalmente checando a bunda dela. E tua irmã te pegou no flagra – ele solta uma gargalhada.

— Em primeiro lugar – eu começo sinalizando com o dedo indicador – é óbvio que Renata não percebeu.  Tu já viste a língua afiada daquela garota? Ela teria me entregado na mesma hora.

— Justo – ele concorda e nós dois estamos rindo.

— E em segundo lugar – sinalizo o segundo argumento, dessa vez mostrando o dedo médio – era tu quem estava totalmente checando a bunda dela.

Mordo meu salgado e ele ri e dá de ombros.

— Não vou dizer que sim e nem dizer que não – e morde seu salgado também.

— Filho da puta – eu digo rindo.

Espero que Douglas não queira investir nessa garota ou pelo menos não o faça antes que eu possa tentar. Eliza e eu passamos as últimas três semanas trocando olhares e conversando sobre coisas que, à exceção da minha irmã, não vi ela falando com mais ninguém, então acredito que, se houvesse uma lista de prioridades, eu estaria no topo. 

Mordo outro pedaço do salgado imaginando o que posso fazer para me aproximar de Eliza e descobrir se ela sente a mesma agitação que eu quando me ocorre que eu não posso fazer movimento nenhum. Flávio, Douglas e eu temos um combinado que nos proíbe de investir em qualquer uma das garotas do grupo e por esse motivo, o máximo que posso fazer é ser amigo dela. Engulo como se estivesse comendo cacos de vidro.

Flávio retorna à sala, pingando de suor, dois segundos antes de o sinal soar novamente. Eu coloco o último pedaço do meu salgado na boca.

— Cara, vou precisar muito daquele beck— diz entre sua respiração ofegante.

— Cara, quando é que tu vais começar a comprar a tua própria maconha? – Quero saber enquanto mastigo.

Ao invés de me responder, ele pega sua mochila do chão e começa a revirar as coisas freneticamente. Pouco depois ele me entrega uma nota de vinte reais que está tão amassada que me pergunto como ainda está inteira. Fui vencido porque, embora ele nunca compre a parada, ele sempre me dá algum dinheiro pela minha.

— Tudo bem – eu digo suspirando. – Depois da aula eu tenho que deixar a prima da Julia na casa dela, mas depois disso a gente pode ir pra praia e fumar um. Fechado?

— Esse é meu garoto – é a sua resposta.

— Queres ir também? – Convido Douglas, mas sei que ele vai recusar.

O professor entra pela porta e todos ficamos em silêncio.

— Tô de boa – Douglas responde em voz baixa.

Eu assinto uma vez e é fim de papo.


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