Confia em mim? escrita por Gabi Mohannak


Capítulo 7
Capítulo 6


Notas iniciais do capítulo

Capítulo narrado por Eliza.
Ano: 2018



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Eliza

 

Há pouco mais de seis semanas eu cheguei nessa cidade.

Muita coisa aconteceu desde o primeiro dia até agora e, se no começo eu estava insegura, com medo do que essa aventura me reservaria, hoje sei que não poderia ter escolhido nada melhor. Eu me sinto segura para chamar esse lugar de lar, para dizer que gosto da cidade e do seu cheiro de maresia, do vento fresco que dá início aos dias e que retorna ao final deles, e do Sol – muito diferente da terra da garoa, de onde eu venho. Ah, como eu gosto desse Sol!

As férias foram boas, é claro. Praia e piscina são tudo o que eu poderia querer depois de dois anos em uma cidade que fica nublada a maior parte do tempo e, além disso, minha mãe estava aqui, o que nos deu uma oportunidade para nos despedirmos. Alguns dias mais tarde eu conheci os amigos de Julia que são praticamente as únicas pessoas que eu conheço por aqui – mas que, para minha sorte, são pessoas muito legais com quem eu tenho uma boa relação, embora ainda não possa chamá-los de amigos.

Há quatro semanas, as férias terminaram e começaram as aulas na escola nova e, minha nossa! Eu não pensei que em tão pouco tempo eu já estaria tão ansiosa para os finais de semana. Neste colégio o conteúdo é pesado e sem descanso. Às vezes tenho a impressão de que, se eu ousar me distrair, corro grande risco de perder uma parte da matéria e reprovar.

Para ser sincera, esperava que as aulas fossem mais tranquilas, mas como infelizmente nem tudo é como queremos, em um mês, parece que eu tive conteúdos e trabalhos para entregar suficientes para preencher um semestre inteiro. Tive lição de casa todos os dias e, além da simpática lista entregue pela coordenadora, os professores podem passar pequenos trabalhos sempre que bem entenderem – ou seja, todas as vezes em que eu pensei estar tranquila por ter conseguido adiantar alguma das tarefas, fui surpreendida por outra com um prazo ainda mais apertado.

Entre minhas tentativas de me organizar à essa nova rotina, tento me conectar com meus tios – que eu não via há muito tempo, mas que ainda assim me receberam aqui e me tratam como se eu fosse filha deles. E agora que eu disse isso em voz alta, me ocorreu que pode ser por isso que Julia passa grande parte do tempo com a cara fechada por motivos que eu não consigo identificar. Talvez seja porque tem que dividir a atenção dos pais pela primeira vez em 16 anos.

Outra coisa interessante: depois de muito observar cheguei à conclusão de que Julia é uma alienígena porque, se dedicando muito menos do que eu faço, ela consegue entregar tudo o que é pedido na escola. Por esse motivo, ela me provoca dizendo que não é possível que eu gaste tanto tempo com as lições, o que me fez desconfiar de que ela vem de outro planeta. Qual é? Esse é só meu primeiro mês nessa escola! Ela estudou durante sua vida inteira. Não acho que seja um absurdo minha dificuldade de acompanhar os passos dela.

À parte disso, converso com minha mãe por mensagem sempre que posso – ou que tenho algo interessante a dizer –, omitindo os pequenos problemas de conivência que tive com minha prima para que ela não pense que eu não quero estar aqui. Por que, ainda que tenha seus defeitos, Florianópolis me parece perfeita.

Dona Alice parece bem na casa nova, mas como ela quase nunca reclama, é difícil ter certeza. Se diz contente por minha rápida adaptação, pelos colegas que fiz, e me pergunta sempre se estou me comportando. Nos falamos pela última vez há dois dias e, na ocasião, ela me contou sobre seu trabalho e que Felipe tinha começado a esboçar seu novo livro cujo título será “Maria Borboleta”.  Apesar das suas regras sobre como nós devíamos nos comunicar todos os dias, sei que ela está orgulhosa pelo meu esforço extra com o colégio e isso me deixa feliz.

Pouco antes das três horas da tarde deste sábado entediante, quando uma Julia surpreendentemente animada invade o meu quarto e me flagra adiantando um trabalho de história cuja entrega será no próximo mês. Ela revira os olhos ao perceber o que estou fazendo, mas se joga em minha cama, me contando sobre o maravilhoso luau que seus amigos sugeriram que fizéssemos de noite.

Estranho como, apesar de conviver com essas pessoas pelo último mês, me sinto apreensiva ao pensar nesse encontro. À exceção do churrasco que fizemos em casa quando minha mãe foi embora, nós não nos encontramos fora da escola e, a parte mais assustadora? Luan e eu temos trocado olhares de flerte desde o dia em que ele me levou em sua bicicleta pela primeira vez e, muitas vezes, sozinha em meu quarto, me pego imaginando como seriam nossas conversas em uma ocasião diferente.

Não estou dizendo que estou interessada por esse garoto, é claro, mas é que nossas conversas sempre acontecem enquanto eu estou de costas para ele, montada em sua bicicleta enquanto ele me carrega de cima para baixo como se eu fosse uma madame, e isso faz com que eu me sinta mal. Apesar disso, posso dizer seguramente que Renata e Luan são as pessoas com quem mais conversei e me identifiquei – excluindo minha própria prima, é claro.

Apesar da tensão, como minha prima simplesmente ama esses eventos, sou contagia rapidamente por sua animação. Decido aproveitar essa oportunidade para tentar me aproximar dos meus colegas. Quem sabe assim nós possamos chamar de amigos, não é mesmo?

Quando Julia sai do quarto, escuto um celular que parece vibrar um milhão de vezes por minuto e vejo o aparelho que pertence à Julia foi esquecido em cima de minha cama. Antes de pensar, agarro o aparelho e caminho para fora do quarto para procurar por minha prima, mas sem intenção, acabo lendo as mensagens que estão na tela.

— O que tu estás fazendo com meu celular? – Me pergunta quando me flagra com seu telefone na mão parada diante do seu quarto.

— Você esqueceu no meu quarto – eu digo com os olhos baixos e ela toma o celular das minhas mãos.

— Tu não mexeste, né? – O tom da sua voz é alarmado.

— Não mexi, prima. Só trouxe pra você.

— Tudo bem, obrigada – diz secamente.

Julia dá um passo para trás e fecha sua porta, me deixado do lado de fora. Seguindo a deixa, me viro de costas e caminho de volta para o meu quarto, tentando sem sucesso esquecer o conteúdo das mensagens que acabei lendo.

15:23 – Ana: Tu n precisas esconder nd de mim              

15:23 – Ana: Teus segredos ficam salvos, tu sabes

15:23 – Ana: Eu tenho ctz de que tu gostas dele

15:23 – Ana: E faz tempo

15:24 – Ana: Tu só n qr admitir

Julia gosta de um garoto e não quer admitir. Parece que temos algo em comum afinal. Mas porque ela não conta nem para sua melhor amiga? E já que eu vi a mensagem sem ser convidada, não posso nem pensar em entrar nesse assunto com ela. Se não a confusão estará armada com toda a certeza. Só me resta fingir que não vi. Mas como?

De volta em minha escrivaninha, faço uma das coisas mais idiotas que já fiz até hoje: abro uma ferramenta de busca na internet e digito “como saber de quem é o crush da minha amiga”.  Meu Deus, como foi que eu me tornei essa pessoa? Aperto o botão de comando e fico esperando ansiosamente pela resposta enquanto a página carrega.

Dica nº1: Você suspeita que sua amiga tem um crush mas não tem certeza? Fique de olho na maneira como ela se comporta. Ela anda suspirando pelos cantos, olhando para o nada como se estivesse pensando em tudo? Grandes chances de estar pensando em um garoto!

Não posso deixar de revirar os olhos. Já sabia que essa uma má ideia, mas não imaginava o quão ruim poderiam ser as dicas da internet.

 

Dica nº2: Quando estiverem em um ambiente com os possíveis crushs, observe os olhares de sua amiga. Em quem ela está prestando atenção?

— Hmmm, essa dica não é de todo ruim.

Dica nº3: Sua amiga parece querer chamar a atenção de alguém na escola ou em reuniões com amigos? Fique atenta: o crush dela pode estar mais perto do que você pensa.

Dica nº4: Se você desconfia que sua amiga tem um crush em um garoto, preste atenção em sua linguagem corporal quando está com ele. Ela procura tocá-lo? Se inclina em direção a ele durante as conversas? Ri exageradamente de coisas que ele fala? Sinto cheiro de crush no ar!

— Meu Deus, isso é a coisa mais sexista e absurda que eu já li em toda a minha vida.

Dica nº5: Agora que você já tem uma pista de quem possa ser o crush, mencione o garoto casualmente durante uma conversa e perceba como ela se comporta e o que diz a respeito dele.

E terminando de ler todas as dicas eu concluo o óbvio.

— Isso não me ajudou em absolutamente nada.

— O que não te ajudou em nada?

E quando olho para traz, Julia está parada à porta do quarto. Fecho a aba do navegador mais rápido do que uma piscada de olhos e, torcendo para que ela não tivesse conseguido ver nada eu respondi sua pergunta.

— Um site sobre o trabalho de história. Não consegui pegar informação nenhuma – digo numa tentativa de disfarçar.

Não acredito que fui pega fazendo uma coisa tão estúpida.

— Eu nem sei porque é que tu estás fazendo esse trabalho. Tem ainda umas três semanas pra entregar – e de novo ela se joga em minha cama. – Eu nem comecei o meu.

Sim, Julia, eu penso, todo mundo sabe que você não começou o seu ainda. Mas pelo menos ela não parece ter percebido o conteúdo real de minha pesquisa na internet.

— Você precisa de alguma coisa? – Quero saber.

— Estou indo no mercado, tu não queres vir comigo?

— Claro, me dê uns minutinhos pra eu trocar de roupas.

— Te espero lá embaixo então – e some corredor a fora.

*

Julia fica responsável pela organização geral da maioria dos eventos que seu grupo decida fazer e por isso, geralmente é ela quem vai ao mercado fazer as compras. É também por esse motivo que ela anda com uma bolsinha cheia de moedas e notas dobradas de dois e de cinco – que consistem em dinheiro troco ou mesmo achado perdido pelas mochilas do pessoal. Eles entregam tudo para Julia e quando eles precisam comprar algo para suas reuniões, é assim que eles dividem os custos. Isso é o que eu chamo de uma bagunça organizada.

Em nosso carrinho, Julia colocou pacotes de salgadinhos diversos, amendoim e algumas latas de refrigerante. Agora caminha de um lado para o outro em frente as balas de gelatina.

— Uma azeda para o Luan e outra para Douglas, a de morango para Renata, a em forma de urso para Ana e a em forma de minhoca para Vanessa – ela diz como se contabilizasse os pacotes que tem nas mãos e depois os coloca no carrinho. – Os chicletes para Flávio, – diz quando agarra outro pacote na prateleira – e para mim as em forma de dentadura.

Sorrio para ela quando ela despeja as duas últimas embalagens no carrinho e ela sorri de volta. Julia parece orgulhosa por se lembrar de tudo o que seus amigos e eu a admiro pelo cuidado que tem com eles.

Minha prima pode ser implicante e, às vezes, difícil de compreender, mas ninguém pode dizer negar o quanto ela se importa com as pessoas com quem convive e, quando fala sobre eles, parece estar falando das melhores pessoas do mundo.

— Tu gostas de qual? – Me pergunta se aproximando mais uma vez da imensidão de opções.

— Acho que as compridas – eu digo e ela assente, trazendo consigo o pacote.

— Tudo certo – ela diz e empurra o carrinho. – O álcool é responsabilidade dos meninos.

Não respondo nada porque eu não bebo, mas assinto com a cabeça e a sigo até o caixa.

*

Quando retornamos à casa, sugiro que assistamos um filme, mas Julia está inquieta e ansiosa para o luau, então anda de um lado para o outro pela casa separando os artigos de que precisaremos, como cumbucas de plástico e cangas estampadas. Mais tarde, notar que estou desocupada, ordena que eu suba e tome um banho. Obedeço porque, quando está nesse estado de espírito, Julia chega a me dar medo.

Aproveito que estou sozinha em meu quarto para mandar uma longa mensagem de áudio para minha mãe. Conto sobre a escola, os trabalhos que terei que executar, sobre a minha semana e faço mais alguns comentários sobre as pessoas que conheci aqui. Conto sobre minha amizade com Renata, mas não digo muito sobre Luan para que ela não pense que eu estou interessada por ele e digo que daqui a pouco iremos para a praia para uma reuniãozinha com os amigos de Julia – deixando de fora a parte do álcool que os meninos trarão.

Abro o guarda-roupas para escolher o que vestir. É noite e embora seja verão, o ar está gelado, então separo uma calça de lycra preta, uma camiseta azul clara e as deixo em cima da cama junto de uma calcinha limpa e um sutiã branco. Pego meu par de tênis Vans Old Skool preto na sapateira e o deixo perto dos outros itens e vou até o banheiro onde abro o chuveiro e testo a temperatura da agua.

Fecho a porta atrás de mim e, de frente para o espelho, tiro a roupa. Prendo meus cabelos em um coque alto – está desajeitado, mas é bom o suficiente para que ele não se molhe – e entro no box, deixando que a agua desça pelo meu corpo e lave toda a tensão.

Quero muito conseguir conversar com Vanessa e Ana hoje. As duas são, para mim, mais distantes do que Renata e Julia. Pedi que Julia não me desse muitos detalhes sobre o luau para que eu possa me surpreender ao chegar lá. Será que fazemos jogos? Verdade e Desafio é um ótimo jogo para quebrar o gelo. Com certeza tem música. Um luau não pode existir sem música. E também as comidas que compramos hoje e as bebidas que os garotos vão trazer.

Suspiro e desligo o chuveiro. Puxo a toalha do suporte e me enrolo nela antes de voltar para meu quarto mas tomo um susto quando, ao abrir a porta, me deparo com uma Julia que está mexendo em minhas gavetas.

Ela está de shorts jeans claro curto, mas eu só percebo isso porque a barra de seu moletom branco enorme se move junto com ela, revelando o que há por baixo. Pigarreio para que ela perceba minha presença e estou com os braços cruzados sobre o peito quando ela se vira para me olhar.

— Ah, oi, prima – ela diz e volta a fuçar em minhas coisas.

— Posso te ajudar com alguma coisa? – Quero saber.

— Bom, eu notei que tu já separaste uma roupa pra ir no luau – ela começa, ainda concentrada nas gavetas. – Estou procurando outra.

— Não entendi – eu digo me aproximando da cama para examinar as peças que eu escolhi. – Não há nada de errado com minhas roupas.

— Tu sabes que o luau vai ser na praia, né? – Ela se vira pra mim e eu assinto com a cabeça. – E tu sabes também praias são lugares cheios de areia e agua, né?

— Onde você quer chegar? – Reviro os olhos exageradamente.

— Tu não podes ir de calça e tênis, Eliza – sua voz é um comando. Ela se volta para as gavetas, abrindo outra sem fechar a primeira. – Mas ainda não descobri onde tu guardas teus shorts.

— Com licença – eu digo e isso me parece absurdo já que estou no meu quarto.

Me aproximo dela e fecho a gaveta de roupas intimas e em seguida minha gaveta de blusas – que agora está um caos. Abro a gaveta logo abaixo onde guardo as calças e os shorts, escolhendo uma bermudinha preta de sarja. Mostro para minha prima que ergue os polegares em aprovação e eu reprimo a vontade de revirar os olhos de novo.

— Você é muito mandona – eu digo.

— Tu vais ficar uma gata – ela me assegura, ignorando meu comentário anterior.

Agarro a calcinha que separei e me abaixo para passa-la por meus tornozelos antes de vesti-la por baixo da toalha. Já que Julia não parece estar nenhum pouco disposta a deixar o quarto, visto o sutiã por cima e também a camiseta antes de finalmente puxar a toalha para baixo e leva-la de volta ao banheiro.

Todos os shorts que eu tenho me parecem um pouco curtos e está ventando bastante na rua, por isso eu preferia usar calças essa noite, mas para evitar essa discussão, passo minhas pernas pela peça que escolhi e coloco as barras da camiseta por dentro antes de fechar o botão e subir o zíper. Puxo então, gentilmente, a parte da blusa que fica sobre a barriga para deixa-la mais folgada nessa área e escolho um blusão de moletom preto no armário.

Julia recebe uma mensagem de texto e sem se despedir, sai do quarto. De volta a minha privacidade recém adquirida eu escovo meus cabelos e resolvo deixar os fios soltos – coisa que eu não faço com muita frequência. Depois corro para o banheiro onde aplico um pouco de máscara nos cílios de frente para o espelho e brilho labial de cereja.

Ouço minha prima gritando meu nome no andar de baixo, então calço meus chinelos e saio do quarto apressadamente, correndo para a sala diante da porta de entrada onde me deparo com Flávio, Ana, Douglas e Vanessa. Julia ajuda os garotos a colocarem as coisas que nós compramos em suas mochilas e as garotas dão risada de algo que eu não cheguei a tempo de entender.

Sorrio para todos e faço um maneio de cabeça. Eles sorriem de volta e retribuem meu gesto antes de voltarem para suas atividades. É assim que nós temos nos cumprimentado e acho que será sempre assim. Não me incomodo, mas isso me faz pensar em como Renata e Luan me tratam com beijos e abraços, como se nós já nos conhecêssemos há muito tempo.

Um segundo mais tarde, como se estivessem esperando uma deixa ou chamado, a porta se abre e revela os irmãos do lado de fora.  


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