Confia em mim? escrita por Gabi Mohannak


Capítulo 2
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Capítulo narrado por Eliza.
Ano: 2018



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Eliza

 

 

Quando saímos de casa Felipe estava no volante. Em algum momento, quando acordei na estrada, percebi que minha mãe tinha assumido a direção, mas agora, é Felipe quem está de motorista. Não notei essa última troca.

Ainda está escuro do lado de fora do carro. Pego meu celular com cuidado e o visor marca 04h27. Sabendo que seriam umas dez horas de viagem, imagino que estejamos perto agora. Em mais ou menos uma hora estaremos estacionados à frente da casa em que eu viverei pelo próximo ano. Pensar nisso faz com que meu estômago se agite.

— Passou bem a noite? – Pelo retrovisor, Felipe olha para mim e eu assinto com a cabeça um tanto quanto desnorteada.

 Minha mãe vira o corpo na minha direção sorrindo, mas seu está rosto visivelmente cansado.

— Bom dia, Liz – ela me diz e eu tento sorrir de volta. – Estamos chegando – anuncia. – Você está com fome?

— Acho que não – digo me ajeitando no banco. Meu estomago ainda não parece ter acordado.

— Lara me disse que ia fazer aquele pãozinho doce, hmmmmm – continuou. – Só de pensar já fico com agua na boca.

— Agora eu também estou salivando – Felipe diz e eles riem.

Parece bom, mas não acho que a ansiedade me deixaria comer agora.

*

O tranco leve do carro e o barulho do freio de mão me despertam mais uma vez, mas eu não consigo me lembrar em que momento eu dormi. Felipe buzina duas vezes e eu o xingo mentalmente enquanto sento numa postura mais ereta.

Ainda me sinto um pouco desnorteada, mas sei que estamos em Florianópolis, a cidade em que minha mãe e tia nasceram e onde aos dezesseis anos, elas conheceram meu pai.

Segundo a história, todos estavam na praia durante o recesso de seu último ano escolar. Minha tia estava de olho em meu pai mas, apesar de elas serem quase iguais, ele só tinha olhos para minha mãe. Ele morava em São Paulo e estava passando as férias com outros garotos de sua classe aqui na cidade e, enquanto ele e minha mãe se empenhavam em conhecer um ao outro, os demais meninos do grupo disputavam a atenção da minha tia.

Meus pais trocaram telefones e quando o recesso acabou, eles passaram a se falar à distância quase todos os dias. No ano seguinte, minha mãe e tia se mudaram para São Paulo para fazer faculdade. Meu pai, que já morava na cidade – e estava no segundo ano da faculdade de nutrição – se ofereceu para mostrar a cidade e não soltou a mão da minha mãe nem por um segundo. Depois desse dia, ela e meu pai, finalmente na mesma cidade, começaram a namorar.

João, um dos garotos que foi a praia com meu pai no ano anterior, também parecia disposto a ter uma das gêmeas Andrade para si. Para seu desapontamento, tia Lara, ao contrário da minha mãe, tinha a intenção de voltar para a Ilha da Magia quando o curso acabasse e, portanto, não parecia disposta a dar uma chance o rapaz.

Quando as duas terminaram a faculdade, meus pais já estavam praticamente morando juntos e minha mãe teve de se despedir de sua irmã pela primeira vez. João ainda tentava que Lara namorasse com ele, mas só conseguiu o coração dela quando decidiu se mudar para Florianópolis para que eles finalmente pudessem ficar juntos. Se isso já foi uma surpresa, imagine pensar que eles estariam juntos até hoje.

— Alice – diz tia Lara e eu finalmente consigo fazer meus olhos focarem.

Minha mãe está do lado de fora do carro e minha tia abraça como se ela fosse desaparecer a qualquer segundo. Enquanto isso, tio João que está timidamente parado ao lado delas, é interceptado por Felipe, que deu a volta no carro para abrir a mala antes de se juntar aos outros.

Eles trocam um aperto de mãos um tanto quanto desajeitado. Pelas poucas vezes em que minha mãe se abriu sobre o assunto, entendi que, apesar de o ter visto pessoalmente uma única vez, tio João não vai muito com a cara do meu padrasto – provavelmente por conta da amizade que tinha com meu pai.

Tia Lara olha para mim através da janela e vejo seu sorriso se alargando. Quando abro a minha porta e desço do carro, ela estica um braço me convidando para o abraço das irmãs. As duas tem fisionomias realmente muito parecidas, cabelos castanhos exatamente do mesmo tom e a mesma altura, mas hoje em dia não seria possível confundi-las porque, entre outros detalhes, tia Lara tem a pele bem bronzeada enquanto que minha mãe é branquíssima.

Soltamos o abraço apenas para que minha mãe e eu cumprimentemos tio João, e para que Felipe e tia Lara se abracem, mas pelo canto do olho vejo Julia, que agora aparece na soleira da porta. Minha prima é alguns meses mais velha que eu, tem olhos castanhos como os do seu pai, enquanto que os meus são verdes como das nossas mães e tirando o bronzeado da pele, acho que essas são as principais diferenças entre nós. Meus cabelos são bem lisos e os de Julia são ondulados, mas está na cara que herdamos o tom castanho da família Andrade.

Quando nos vemos é impossível evitar os sorrisos cumplices. Acho que nenhuma de nós acredita que essa ideia maluca deu certo e que nós realmente vamos morar juntas. Ela corre para me abraçar e é só então que percebo que ela é quase dez centímetros mais alto que eu e como seu corpo é atlético. Muito diferente do que eu lembrava, mas ainda muito linda, num abraço que me lembra que tudo vai ficar bem e que me dá certeza de que morar aqui vai ser incrível.

Eu nem sabia como sentia falta desse lugar e dessas pessoas até estar aqui, mas agora não consigo entender porque passamos tanto tempo sem nos ver. Sussurro “obrigada” em seu ouvido.

— Estou feliz que tu estejas aqui – ela me aperta mais forte.

Já tinha me esquecido o quão gostoso é esse sotaque. Suspiro sentindo meu coração aquecido antes me virar em direção a Felipe que já está tirando nossos pertences do porta-malas. Meus tios e minha mãe passam por nós com as malas que trouxemos e entram na casa. Felipe entrega para mim uma caixa relativamente leve e faz o mesmo com Julia e nós seguimos para dentro.

A mudança acaba algumas caixas mais depois.

Meu avô foi arquiteto e um homem importante nessa cidade.  A casa em que estamos é uma das casas que ele deixou para suas filhas quando faleceu – a maior delas. Como minha mãe já estava com a vida estabelecida em São Paulo, minha tia escolheu morar aqui e ficou responsável por coordenar o aluguel dos demais imóveis, dividindo a renda em partes iguais para as duas. Apesar disso, sei que minha tia nunca desistiu de convencer minha mãe a voltar, tocando no assunto durante todos esses anos. Ela nunca voltou.

Ao entrar aqui na pela porta da frente, você dá de cara com a sala de TV e a sala de jantar, que são distribuídas muito organizadamente em só ambiente. Ao lado esquerdo, uma escada em L leva ao andar de cima onde há quatro suítes: o quarto do casal, o de Julia, o de hospedes e o último, em que foi feito um escritório.

De volta ao andar de baixo, há um pequeno lavabo entre as salas e a cozinha que é ligada a uma pequena lavanderia. O ambiente é espaçoso e arejado e foi revestido de azulejos brancos e pastilhas num tom de azul bem claro e comporta uma geladeira e um fogão de última geração, além dos armários e uma mesinha de canto com duas cadeiras. Há ali uma porta que leva ao quintal, onde você vai encontrar uma piscina que está sempre limpa e uma parede toda coberta de trepadeiras, num verde exuberante.

No fundo, um rancho em tijolos é usado para os churrascos e outras comemorações. Ali, além da churrasqueira, há um fogão e um refrigerador e, ao lado, um pequeno galpão que abriga um pequeno banheiro e um quartinho onde eles guardam os artigos de piscina, mesas e cadeiras dobráveis e ouros artigos para festa.

Na garagem, além do SUV reluzente, você vai encontrar duas pranchas de surf cobertas por suas capas pretas e três bicicletas. A azul-claro-metalizado que pertence à Julia e, embora eu mal tenha pisado nessa casa, ela já está tentando me convencer de que preciso comprar uma para mim – porque é esse o meio de transporte usado por ela e os amigos para irem à escola. Não quero desaponta-la mas sei que fazer essa compra seria jogar dinheiro fora, porque morando em São Paulo, num condomínio de prédios eu nunca realmente aprendi a pedalar.

Minha tia me disse que o quarto de hospedes agora será “o quarto de Eliza” – ou seja, meu quarto. Nossas coisas espalhadas ao redor do cômodo fazem com quem ele pareça pequeno, mas é, na verdade, maior que o meu em São Paulo. Aqui há cama de casal e colchão no chão, ambos estão arrumados com edredons rosa-claros, sendo que o colchão, por enquanto, é para mim, e pelas próximas duas semanas em que estiverem aqui, Felipe e minha mãe dormirão na cama.

Próximo à janela repousa uma escrivaninha com três prateleiras sobre ela e na parede ao lado da porta um guarda-roupas branco com espelho na porta já está com as portas abertas, esperando para receber minhas roupas. Estou achando tudo o máximo! Eu já tive banheiros só para mim nas casas em que morei com minha mãe, já que ela usava o de sua suíte, mas essa é a primeira vez que tenho banheiro em meu quarto. Além disso, só dormi em camas de casal quando estive em hotéis, então Florianópolis acaba de ganhar mais um ponto!

O cheiro do pão doce invade a casa e todos nos dirigimos até a cozinha para tomar café da manhã. É bom ver a família Andrade reunida depois de tanto tempo. Minha mãe conversa com os outros sobre a longa viagem, e todos concordamos que será melhor que ela e Felipe descansem um pouco antes de começarmos qualquer atividade.

Ainda precisamos acertar os últimos detalhes da minha estadia aqui e, por isso, sei que enquanto estiver aqui, minha mãe estará cheia de coisas para fazer, como ir à escola assinar a minha matrícula e informar que minha tia será a responsável por mim. Ela faz questão de ir comigo experimentar os uniformes da escola, comprar o material e abrir uma conta num banco daqui para possa me mandar algum dinheiro caso eu precise de alguma coisa.

Julia parece alheia a toda essa conversa, tudo o que ela quer é me falar sobre as coisas que poderemos fazer depois que minha mãe se for e seu tom é quase malicioso. É óbvio que vamos para a praia, mas ela tem muitas outras ideias e eu não posso dizer que não estou apreensiva com a ideia de conhecer seus amigos. A verdade é, que mesmo que esteja nervosa com essa ideia, estou grata por estar aqui e feliz pela recepção animada que ela me oferece.  

*

                Durante a manhã, enquanto os adultos descansavam, minha prima e eu tomamos Sol na piscina, sem desconfiar do que se passava no meu quarto àquela altura – e só descobri depois do almoço. Um desastre natural!

Estou certa de que minha mãe teve a melhor das intenções quando começou a tirar as coisas das minhas malas e caixas e espalha-las na cama de casal. Antes do Furacão-Alice passar, eu sabia onde cada um dos meus pertences estava, mas quando eu entrei aqui hpa meia hora atrás, fiquei completamente angustiada. Tudo parece uma bagunça só, mas eu não disse nada e me juntei a ela no que parecia uma tentativa de arrumação.

— Meu Deus, quanta coisa! – Julia exclama parada à porta.

— Nem me fale – minha mãe concorda.  

— Parece que tu vieste passar um ano – ela diz enquanto espia a volta e nós rimos. – Vocês precisam de uma ajudinha?

— Acho que está tudo sobre controle – eu digo, preferindo fazer isso com minha mãe.

— Tudo bem então – ela me lança uma piscadela. – Se as coisas tentarem engolir vocês, gritem meu nome que eu volto correndo – ela sai do cômodo rindo e fecha a porta atrás de si.

Programo meu celular para tocar músicas e minha mãe e eu voltamos ao trabalho. Ela acomoda as roupas dobradas nas gavetas do armário e eu uso os cabides que trouxe e que meus tios me deixaram para pendurar outras peças. Em duas das prateleiras do guarda-roupa arrumo meus perfumes, cremes e distribuo minhas maquiagens e esmaltes. Na parte de baixo organizo meus sapatos, enquanto minha mãe coloca meus produtos de higiene no banheiro.

Eu trouxe alguns dos meus livros e também almofadas de pelúcia que ganhei dos meus pais quando eu era criança. Subo na cadeira para poder distribui-los nas prateleiras acima da escrivaninha. Minha mãe está me passando as coisas, mas demora segurando algumas delas e entendo que elas despertam sua memória de um outro tempo da nossa vida. Um tempo que ainda tínhamos meu pai.

Eu gostaria de lembrar mais dele.

— Meninas – Julia diz abrindo uma fresta da porta de maneira hesitante.

— Pode entrar – dizemos minha mãe e eu.

— Uau! Vocês praticamente terminaram – ela parece surpresa e impressionada.

— Somos boas em arrumar e desfazer malas – eu digo, percebendo um segundo depois que o motivo por trás disso não é tão agradável.

— Estou vendo mesmo – ela diz ainda admirando o cômodo, alheia ao teor do meu comentário anterior. – Eu só vim avisar que o jantar está pronto.

— Está bem – minha mãe diz me entregando um livro – já vamos descer.

— Fiquem à vontade – ela diz com um sorriso.

— Obrigada, nós estamos – nós rimos e eu desço da cadeira.

— Gosto assim – Julia garante. – Me avisem se precisarem de alguma coisa – ela sai do nosso campo de visão e nós ouvimos seus passos na escada.

Minha mãe e eu paramos por um momento para admirar nosso trabalho, ela envolve meus ombros com um dos braços e eu deito a cabeça para o lado. Eu suspiro. Ela suspira e beija o topo do minha cabeça.

Nenhuma de nós vai dizer nada. Por enquanto esse momento basta para nós.

*****

As duas últimas semanas passaram voando.

Os dias mágicos que vivi aqui quase me fizeram esquecer de que despedidas são sempre cruéis, mas enquanto minha mãe fechava suas malas para voltar para São Paulo, eu logo me lembrei.

Sim, eu estou morando num sobrado a duas quadras da praia, em plena Florianópolis: a Ilha da Magia. E, não, nem nos meus melhores sonhos eu imaginei que passaria um ano inteiro aqui. Mas nada disso ameniza o fato de que, pela primeira vez em meus 16 anos de idade, minha mãe e eu passaremos tanto tempo longe um da outra. Muito, muito longe à propósito.

É claro que nós já sabíamos que o que aconteceria quando as semanas que eles tiraram de férias acabassem, mas um nó se forma em minha garganta quando nós duas nos abraçamos em frente à casa. Minha mãe ainda tem que preparar algumas coisas antes de se mudar definitivamente com Felipe, e por mais que nós ainda não estejamos prontas para nos despedir, é isso que fazemos.

Ela beija o topo da minha cabeça e me diz pela centésima vez para me comportar, e eu não posso conter o riso e revirar os olhos.

— Eu sou uma garota comportada, OK?

— Claro – Felipe diz ao passar por nós. Sua voz tem tom debochado e ele carrega uma mala em direção ao carro. Nós o ignoramos.

Segurando meus ombros, minha mãe repassa as regras que criou: (1) mensagens pelo celular todos os dias, (2) ligações ao menos uma vez por semana, (3) não fazer nenhuma besteira – seja lá o que ela considera nessa categoria –, (4) não torrar o dinheiro que ela depositar e (5) sob hipótese nenhuma tirar notas baixas. Eu sempre fui uma aluna boa – ainda que nunca a melhor – mas a escola em que Julia estuda é aparentemente meio cara, então eu preciso redobrar os esforços.

— Eu sei, eu sei – eu digo. – Vou sentir saudades.

— Você nem imagina como eu vou sentir sua falta – nós nos apertamos em outro abraço.

— Se cuida, baixinha – Felipe diz e minha mãe abre espaço para que ele me abrace, sem soltar uma de minhas mãos.

 O abraço com Felipe é desajeitado porque para nós dois a coisa toda é meio constrangedora, mas eu retribuo o abraço e ele me solta logo que eu respondo.

— Você também.

— Eu vou ficar bem – minha mãe me promete e por um instante, sinto que invertemos os papéis. Os olhos dela estão marejados. – Você vai?

— Vou – garanto com sorriso fraco.

Todos ficamos do lado de fora por mais um tempo enquanto as despedidas ocorrem. Felipe está com o celular de João na mão e salva seu número na agenda de contatos. Minha mãe larga minha mão e abraça tia Lara, pedindo mais uma vez que ela cuide de mim. Eu fito o grama aparada da frente da casa enquanto ela abraça Julia pedindo para que ela me ajude no colégio. Contenho um sorriso.

— Me liguem se tiverem algum problema – Felipe pede.

— Mas vocês não terão, Liz é ótima – minha mãe assegura e abraça meu tio. – Obrigada mais uma vez, vocês são incríveis.

— Muito obrigado – completa Felipe. Acho que ele está feliz por se livrar de mim.

Nós os observamos enquanto entram no carro e se afastam rua a fora.

— Agora que a sua mãe foi embora a festa vai começar. – Julia sussurra em meu ouvido.


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