Confia em mim? escrita por Gabi Mohannak


Capítulo 1
Prólogo


Notas iniciais do capítulo

Capítulo narrado por Eliza.
Ano: 2018



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Eliza

 

 Eu não pensei que seria tão difícil dizer adeus agora.

Comecei a me preparar para esse momento há três semanas, mas já não me sinto pronta.

Minha vida pareceu ter virado de cabeça para baixo quando, na metade do ano passado, o chefe de minha mãe comunicou a ela sobre a transferência de sua equipe. Eles iriam para uma cidadezinha minúscula em algum lugar esquecido desse país, onde eles fariam pesquisas sobre tratamentos de solo e água.

Ao receber o comunicado, ela imaginou que me convencer a ir junto seria uma missão – e estava coberta de razão. Desde que eu sou bem novinha, minha mãe e eu mudamos de cidade a cada poucos meses, mas havia quase dois anos que estávamos em São Paulo e nossa vida era boa ali. Minha mãe estava realizando pesquisas em laboratório em vez de realizar trabalhos de campo, ela e meu padrasto pareciam mais felizes que nunca. Mas quando tudo parecia bem, ela anunciou que voltaríamos a loucura que é reorganizar nossas vidas.

Toda a cena de empacotar todos os nossos pertences e plastificar todos os móveis do nosso apartamento é cansativa, mas a pior parte é ter que começar do zero: nova cidade, nova casa, nova escola, novos amigos. Bom, na verdade, acho que essa última parte é a mais difícil porque, quando você chega pela primeira vez em uma cidade pequena, todas as pessoas de lá já se conhecem e tem seus grupinhos formados. Tentar se enturmar, nesses casos, pode ser realmente difícil, principalmente no meu caso, que tendo a me esconder e tentar passar despercebida.

Um dos meus argumentos contra mudança foi exatamente esse, porque eu já passei por mudanças o suficiente para saber que fazer novos amigos não é tão simples – em especial quando você não é mais uma criança e simplesmente aparece na escola no meio do ano letivo. Tentando me tranquilizar, minha mãe me garantiu que dessa vez nós nos mudaríamos no começo do ano, que é o período em que muitos novos alunos chegam nas escolas, mas não acho que essa regra se aplique a escolas minúsculas de cidades minúsculas. 

De qualquer forma, minha mãe deveria partir com sua equipe até a terceira semana de janeiro, e de antemão, já no mês de outubro, começou a organizar pequenas reuniões de despedidas em minha casa. Eu queria abrir discussões saudáveis, sobre como São Paulo era nossa casa e nós não podíamos nos mudar, mas mesmo que eu quisesse muito ficar, inventar um lugar para morar sem seus responsáveis, quando você só tem 16 anos e nenhuma renda, obviamente não é nada fácil.

Minha ficha finalmente caiu – eu teria que me conformar com a mudança, mesmo que isso fosse contra a minha vontade – e embora eu não quisesse fazer cena disso um evento, meu descontentamento com toda a situação era notável.

Felipe, meu padrasto insistia em provocar dizendo que sou uma adolescente rebelde, mas a verdade é que eu não queria ter que, mais uma vez, me mudar para um lugar onde eu só conheceria a minha mãe e ele. Nesse cenário minha mãe passaria a maior parte do dia trabalhando fora e em minha casa eu ficaria com ele que, por ser escritor de contos infantis, não vê problema em nos acompanhar em nossas mudanças – desde de haja um computador e internet à disposição.

Acho que essa é uma das coisas que minha mãe mais gosta sobre Felipe e fico feliz por ela, mas ele não é a companhia que eu gostaria de ter. Ele até é um cara legal, se esforça para ser agradável, mas sei que pensa que minha tristeza não passou de uma grande birra e que, de maneira geral, tudo o que eu faço é para chamar atenção.

Felipe não entendeu meu desejo de ficar em São Paulo, na escola em que eu já estudava, com os amigos que eu já tinha. Minha mãe, por outro lado, disse que me entendeu, mas que não havia nada que pudesse fazer – o que também não resolveu em nada minha situação e eu continuei bem triste.

Na tentativa de me animar, eles sugeriram que fizéssemos uma viagem à Florianópolis durante o recesso escolar, assim poderíamos visitar minha tia Lara, meu tio João e minha prima Julia. A tentativa foi certeira. Fiquei animada de cara porque ainda guardava lembranças muito boas daquele lugar. Quando eu era criança, nós íamos para lá pelo menos duas vezes por ano e isso só mudou quando meu pai faleceu.

Foi depois disso que minha mãe e eu começamos a nos mudar, mas ainda assim sempre mantivemos contato. Minha mãe e tia Lara são gêmeas e, em espécie de tradição, se ligavam ao menos uma vez por semana para contar sobre a vida. Nessas ocasiões, sempre deixavam que Julia e eu falássemos um pouco.

Com o tempo, as ligações foram substituídas por mensagens de texto e voz através do celular e isso fez com que todas nós conseguíssemos nos manter próximas mesmo apesar da distância. Quando decidíssemos passar as férias por lá, era como se não pudéssemos parar de nos falar nem mesmo por um minuto.

Foi durante uma dessas conversas que, meio de brincadeira, Julia sugeriu que eu morasse em sua casa pelo menos até minha mãe ser transferida de novo ou voltar para São Paulo. Além de primas nós somos amigas e é claro que nos conhecemos desde sempre apesar de termos nos visto pouco depois de grandes, mas morar juntas? Nossas mães nunca permitiriam.

Mesmo sabendo que convencê-las não seria nada fácil, já estávamos muito empolgadas para deixar essa ideia de lado. Julia e eu temos a mesma idade e nossas ideias são muito compatíveis, tínhamos certeza de que conseguiríamos persuadir nossas mães. Além do mais, morar com uma amiga é um sonho para uma adolescente. Nós sabíamos que, se desse certo, essa seria uma experiência incrível!

Em casa, nós discutimos a questão por mais de um mês e o principal argumento de minha mãe foi: “Se for para se mudar para tão longe, porque não vai morar comigo?”. Entendo a pergunta, mas a resposta era simples: entre passar o dia numa escola em que eu não conheço ninguém e a tarde com meu padrasto vs. passar o dia e a tarde com minha prima, óbvio que prefiria ir estudar e morar com a minha prima.

Julia e eu não estávamos dispostas desistir tão fácil e para completar nossa animação, meus tios disseram que ficariam mais do que felizes em me hospedar no quarto extra de sua casa. Nas palavras de tia Lara “seria uma excelente forma de eu me conectar mais com a minha sobrinha já que sempre estivemos a tantos quilômetros de distância”. Loucura total!

Por mais que minha mãe estivesse relutando em admitir, ela sabia que eu me adaptaria muito mais facilmente se fosse estudar com minha prima ao invés de ir para um lugar em que eu estaria completamente sozinha. Julia é alguém de quem eu gosto e já estaria inserida em um grupo de pessoas em sua escola, facilitando meu entrosamento. 

Aproveitei a centelha de esperança que seus olhos me passavam para lembra-la de que Florianópolis não é conhecida como Ilha da Magia atoa. Minha mãe nasceu lá e eu sei que esta questão é, para ela, quase um ponto fraco. Ela sempre disse que era impossível não se apaixonar por esse lugar é deslumbrante e ensolarado no verão e frio e aconchegante durante o inverno.

Como se tudo isso não bastasse, em nossas conversas ela sempre elogiou o colégio em que Julia estudava, dizendo que a formação dela seria excelente. Usando um argumento que ela mesma havia me fornecido em outra conversa, eu disse a ela que por mais que estivesse matriculada em uma boa escola em São Paulo, o nível de ensino era inferior ao da escola de Floripa e abusando do lado emocional, perguntei: O que você pode querer para sua sobrinha e não para mim?

Há três semanas, com muito custo,  todos se convenceram de que Florianópolis seria a melhor opção para mim e, quando isso aconteceu, eu estava feliz. Estava de verdade.

Depois dezenas de ligações interurbanas daqui pra lá, de lá pra cá, eu venci uma batalha que parecia não ter solução e isso era tudo o que eu conseguia pensar enquanto empacotava as coisas que eu queria levar para a praia. Eu me sentia cheia de energia, o corpo tomado pela de vontade de viver o novo, mas agora, me sinto estranha.

Estou colocando as últimas coisas no porta-malas do carro do meu padrasto e embora eu devesse estar super-empolgada já que isso é exatamente o que eu queria, começo a sentir um vazio se formando acima do meu estômago, no centro do meu peito. Respirando fundo, jogo a coberta e o travesseiro que separei para a longa viagem no banco traseiro através da janela e volto ao hall do prédio para esperar o elevador. Acho que a empolgação e energia se transformaram em medo.

No apartamento a maioria dos móveis já está coberto por um plástico grosso, à exceção dos da cozinha, onde minha mãe prepara nosso jantar. Este é o apartamento em que morei desde quando nasci até o ano em que meu pai faleceu. Depois disso minha mãe e eu começamos a nos mudar de lugar para lugar, ano após ano.

Sempre senti como se nós nos mudássemos toda vez que eu começava a me enturmar e gostar do lugar, mas não me sentia assim há quase dois anos quando nós finalmente retornamos a São Paulo. Aqui, achava engraçado conhecer pessoas para depois descobrir que muitos anos antes nós já tínhamos sido apresentados. Agora, outra vez quando me sinto parte de um grupo, nós temos que ir embora.

Acho que é por isso que, apesar das vitórias, me sinto um pouco triste. É fim de tarde e pela janela da sala eu posso vejo que começou a chover. Meus olhos, como as nuvens, também parecem dispostos transbordar, como se São Paulo e eu compartilhássemos do mesmo estado de espírito. Estou me mudando hoje, mas ter tido parte nessa decisão não torna esse momento mais fácil.

 Sento-me no plástico que cobre o sofá e fecho meus olhos me permitindo pensar em tudo que vivi aqui uma última vez. Depois disso, como de costume, vou guardar esses momentos na minha estante imaginária e não mexer mais. Através das minhas pálpebras fechadas, vejo os rostos dos meus recém adquiridos amigos da escola e do prédio. Tento memorizar o cheiro da sala da minha casa, o som da rua que passa lá embaixo, da textura do tapete sobre meus pés.

*

Depois do jantar, lavo a louça enquanto Felipe e minha mãe cobrem com plástico o balcão da cozinha. Antes de atravessar o corredor que dá para os quartos, minha mãe me pergunta se eu estou pronta para ir e eu digo que sim. Não sei se é mentira ou se é verdade, mas sei que está quase na hora.

— Você já fez xixi? A gente não vai parar tão cedo, heim? O tanque tá bem cheio – Felipe me pergunta com a cabeça dentro da geladeira que está praticamente vazia. Antes que eu possa responder ele acrescenta – Não tem nem um docinho?

— Deve ter chocolate no armário – digo pendurando o pano de prato.

Tiro meu telefone do bolso e vou ao meu quarto, encostando a porta atrás de mim ao passar. Me sento no plástico que cobre a minha cama, plugando meus fones de ouvido. Enquanto os coloco nas orelhas, reflito mais uma vez sobre a pergunta que minha mãe me fez. Eu estou pronta? Estou certamente bastante ansiosa, mas proporcionalmente apreensiva.

Aperto o play e a melodia invade meus tímpanos e me traz certo conforto. Amo o poder tranquilizador que a música tem sobre mim.

Ela só quer viajar, ela só quer viajar” diz a cantora e me jogando na cama eu fecho meus olhos. “Ela só quer viajar daqui pra qualquer lugar[1].

Momentos mais tarde, uma batida na porta interrompe a terceira música que rola no celular. Ouço a voz de Felipe ao lado de fora “Vamos, Eliza”. E enfim chegou a hora.

Descemos pelo elevador até a garagem em silêncio. Embora estejamos partindo para Florianópolis para duas semanas de férias juntos, sabemos que ao final desse período teremos que nos despedir e isso gera um clima meio estranho. Ainda assim, tanto minha mãe quanto eu evitamos esse assunto porque nenhuma de nós é boa com isso. Quase como uma tradição, sempre que nós nos mudamos de algum lugar, nunca falamos sobre as coisas que estamos deixando para trás.

Nossos olhos estão dispersos quando a porta do elevador se abre. Minha mãe e Felipe dormiram boa parte da tarde e sei que pretendem revezar a direção. Eu, por outro lado, não durmo há quase três semanas porque a ansiedade tende a atrapalhar meu sono. Estou exausta, mas sei que carros tem o poder mágico de me fazerem dormir e com isso que estou contando. O balanço do veículo causado pelas imperfeições da estrada é ideal para minhas sonecas.

Meu coração pulsa em meus ouvidos. Só agora esse sonho parece real.

Caminhamos para a garagem, minhas pernas estão pesadas de medo. Lembro-me da fala de uma personagem de que gosto. “Tudo o que você precisa são cinco segundos de coragem”. Tento tomá-los: Um. Respiro fundo. Dois. Pego na maçaneta e abro a porta Três. Empurro meus sentimentos mais para o fundo na estante. Quatro. Entro no carro e passo o cinto por minha cintura. Cinco. Bato a porta atrás de mim.

Seguro a coberta que deixei em meu banco hoje mais cedo. Será uma longa viagem.

Do bolso frontal do meu agasalho de moletom eu tiro meu celular e um emaranhado de fios que mal se parecem com meu fone. Enquanto tento tirar os nós, me concentro em não me concentrar em nada. Não quero pensar no portão da garagem que abre, não quero prestar atenção na vista noturna da rua...

Por enquanto, São Paulo, adeus.

 

[1] Música “Linda, louca e mimada” – Oriente (2014)


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