Confia em mim? escrita por Gabi Mohannak


Capítulo 3
Capítulo 2


Notas iniciais do capítulo

Capítulo narrado por Luan.
Ano: 2018



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Luan

 

Abro os olhos, mas pela luz que atravessa a cortina não consigo decifrar que horas são.

Ontem de noite, Douglas, Flávio e eu saímos para assistir a uma batalha de rima que ficava cada vez melhor, mas perdemos noção da hora quando eu cheguei em casa já passavam das 4h30 da manhã. Para minha sorte eu havia deixado entreaberta a janela do meu quarto e pude entrar em casa sem passar pela porta da frente – que só não range mais alto porque já atingiu o limite possível.

Cubro o rosto com o travesseiro e tento voltar a dormir, mas meu celular vibra na cabeceira uma vez, e outra e mais uma e então de novo, fazendo com que eu me vire e agarre o celular na mesa de cabeceira, forçando os olhos para que enxerguem através do sono.

08:22 – Julia: Bom dia, pessoal!

08:22 – Julia: J J J

08:22 – Julia: Só qria saber se tá td certo p hj

08:23 – Ana: Bom dia, amg J

08:23 – Ana: Por mim td certo!

Ah, bufo irritado, mas tinha que ser!

Julia é definitivamente a pessoa que mais fala no nosso grupo de mensagens – do qual, a propósito, eu me pergunto todos os dias porque eu ainda faço parte. Não são nem 8h30 da manhã de um sábado e ela já está bombardeando o grupo com mensagens e bom humor. Meu Deus, como eu acho essa garota irritante!

O que está certo para hoje? Eu reviro os olhos apertando o travesseiro com mais força sobre o rosto, mas não consigo achar a resposta, e nesse caso, só há uma coisa que pode ser feita.

— RENAAAATA?! – Grito alto para que minha irmã me escute de seu quarto e minha voz ecoa pela casa silenciosa.

— Que foi?! – Ela grita de volta.

— O que é que tem hoje?!

— Churrasco de boas-vindas pra prima da Julia.

— Hmmm – murmuro e coloco o travesseiro novamente em baixo da cabeça, me virando nas cobertas para encarar a parede.

Em que momento eu comecei a andar com minha irmã e as amigas dela?

— Tu vais com a tua irmã, certo, Luan? – Ouço meu pai gritando da cozinha e me lembro exatamente em que momento eu passei a me sujeitar a isso. 

— Claro – eu respondo. Porque eu não iria, não é mesmo?

— Ótimo – ele diz simplesmente e a casa volta a ser silenciosa.

Quando Renata começou a sair para socializar com as amigas dela, eu fui promovido de irmão mais velho para guarda-costas particular; E sem direito a reclamação. Não me entendas mal, apesar dos conflitos fraternais tenho minha irmã como uma grande amiga, mas os encontros das meninas não podiam ser mais tediosos: do shopping para tomar sol na praia, de tomar sol na praia de volta para o shopping.

Dito isso, dá para imaginar que no início foi um saco, porém, algum tempo depois um dos meus colegas de classe, Douglas, começou a passar pela mesma amolação com a irmã dele, a Vanessa. Nossa sorte foi que ela e Renata são amigas, e por isso, nós acabávamos nos encontrando nos eventos delas. Hoje, Douglas e eu somos bem amigos, então acho que até que tem um lado bom em tudo isso.

As coisas melhoraram muito quando nós conseguimos trazer nosso parceiro Flávio para o esquema. Ele também é aluno da nossa sala e, à princípio não foi nada fácil convencê-lo porque, sejamos sinceros, era mesmo chato andar com as garotas, mas depois de um tempo nós convencemos elas a fazerem outras coisas. E o que no começo era uma amolação, hoje é até que tranquilo – na maior parte dos dias. Começamos a jogar um vôlei de praia, fazer uns luaus de noite, festinhas de piscina, rodadas de jogos. Já que nós éramos obrigados a ficar com elas, que pelo menos pudéssemos fazer coisas mais interessantes, certo?

Acho que dá até para dizer que somos um grupo bem sólido – embora as meninas façam mais questão de dizer isso do que nós – mas, se tu olhares o grupo de fora, vais achar que as peças não se encaixam.

Nossa turma é formada por quatro garotas do segundo ano com jeito de patricinha e três caras do terceiro ano com jeito de maconheiro – e sejamos francos, alguns de nós não tem só o jeito, se é que tu me entendes. Todos os nossos estilos são completamente diferentes entre si, mas ainda assim, de algum jeito nos damos muito bem uns com os outros.

Me viro novamente nas cobertas e faço careta, descontente em admitir que o cenário com minha irmã e as amigas dela poderia ser bem pior, mas ao mesmo tempo me sinto grato que Douglas e Flávio estejam sempre presentes, porque estou certo de que sem eles, eu já teria surtado há um ano atrás.

Entre um bocejo e outro, penso que não seria nada mal que Julia trouxesse um primo menino para equilibrar o jogo de vez. Mais caras corresponde a menos programas em que somos obrigados a assistir comédias românticas que não fazem o menor sentido. Em vez disso, o que ela arruma é um churrasquinho de boas-vindas para mais uma garota, que por ser prima de quem é provavelmente seguirá a mesma linha de ouvir músicas sertanejas que ninguém aguenta mais e tentará se exibir durante as festas com bebidas e baseados de que nem gosta de verdade.

Bufo em desaprovação, mas não há nada que eu possa fazer, então me dou por vencido. Me pego desejando ao menos que ela seja gata – esquecendo-me por quase um minuto do acordo que tenho com os outros garotos: nenhum de nós pode dar em cima das garotas do grupo.

Levanto da cama contra minha vontade e abro a porta do meu quarto para ir ao banheiro que divido com Renata, mas obviamente ela já está trancada lá dentro. Confiro a casa rapidamente e constato que meu pai já saiu para o trabalho, portanto, para não perder o costume, esmurro a porta com força. Isso faz com ela grite e me xingue, e eu rio sozinho do lado de fora.

— Anda logo, preciso mijar – eu a advirto.

— Nem vem – ela diz e eu sinto uma nota de provocação. – Eu vou entrar no banho.

— Vai ser rapidinho – eu digo em um tom de quase súplica.

— Devia ter pensado nisso antes de socar a porta, idiota.

Merda. Nossas intriguinhas as vezes causam efeitos colaterais indesejáveis.

Olhando o lado positivo, só estamos nós dois em casa e ela está ocupada demais sendo irritante para notar caso eu use o banheiro do meu pai, então é isso que eu faço.

Meu pai é o fã número um de impor limites, e a suíte dele está fora dos meus. Em especial quando nem ele e nem minha mãe estão em casa. Em troca ele também não entra no meu quarto sem ser convidado – e ele nunca é convidado.

De volta ao meu quarto, ligo a televisão. Abro meu guarda-roupas e tiro as caixas de sapato da prateleira de baixo até chegar na que eu preciso. Levo ela até a cama e a abro para encontrar uma antiga latinha de balas da qual eu tiro o bloco de erva e corto um pedaço, que coloco no dichavador também tirado de dentro da caixa. Distraidamente eu giro as peças de um lado para o outro enquanto olho para a TV sem realmente assistir.

Quando acho que está moída o bastante, coloco o recipiente ao meu lado no edredom e pego na caixa uma tira fina de papel que enrolo para que forme uma piteira. Sobre um retângulo maior de papel de fumo, despejo o conteúdo do dichavador e o ajeito, posicionando em seguida a piteira que acabo de fazer. Ainda consigo ouvir Renata cantando no chuveiro quando termino de bolar. Reviro os olhos. Ainda bem que eu não esperei ela sair para poder mijar.

Abro a gaveta da mesinha-de-cabeceira para pegar o isqueiro e coloco os dois no bolso da bermuda que vou usar mais tarde. Julia não permite que nós fumemos na casa dela e eu certamente não posso fumar aqui, mas se resolvermos dar uma volta na orla depois do churrasco, eu quero estar preparado. Depois encosto a cabeça no travesseiro e me concentro pela primeira vez no seriado que está passando. É aquele sobre seis amigos que moram em Nova York e vivem se encontrando em uma cafeteria. É engraçado, mas não o bastante para prender minha atenção por muito tempo, então eu acabo cochilando.

Tomo um susto quando abro os olhos e encontro Renata no meu quarto.

— Caraca, – ela reclama – tô te chamando tem meia hora.

— Beleza, tô acordado já – eu digo.

— Tá na hora de sair – ela retruca.

— Vou só tomar um banho então – eu levanto trôpego.

— Rápido – ela diz e sua voz é um comando. Mas ela não manda em mim.

Para provocar, ando em câmera lenta até a porta e, irritada, ela joga o travesseiro na minha direção, mas erra, é claro. Renata não tem nenhuma habilidade em me acertar com objetos. Meu reflexo é muito melhor do que sua mira jamais será, e eu entro no banheiro rindo.

*

                Chegamos à casa de Julia e a música sertaneja está ensurdecedora mesmo do lado de fora.

Eu a xingo mentalmente e desço da bike. Ergo a portão garagem que nos dias de reunião fica destrancada e Renata passa com nossas bicicletas. Quando ela sai, eu o fecho de volta e ela diz que podemos entrar para o churrasco sem tocar a campainha. Eu consigo entender, afinal, ninguém nos ouviria tocar sobre esse volume absurdo.  

Minha irmã abre a porta da frente da casa para que nós entremos e, ao passar, cubro meus ouvidos de maneira teatral e faço uma careta de reprovação esperando que Julia veja e caia na provocação. Renata fecha a porta atrás de nós e responde à minha implicância revirando os olhos e me dando as costas. Ela caminha em direção aos fundos da casa, onde o churrasco acontecerá e eu a sigo com passos preguiçosos para deixar claro que a escolha de música me desanima.

Entramos na cozinha e nos deparamos com uma garota que não reconheço e por isso assumo ser a prima de Julia. Me recomponho automaticamente já que a provocação não é para ela e tento apresentar um sorriso para ela, que olha para a panela em que está mexendo como se tentasse esconder seu rosto, fingindo estar alheia a nossa presença.

Não me lembro seu nome, mas acho ela é até que bem parecida com Julia, mesma cor de cabelo, embora seja bem mais baixa – tanto que, perto dela, Renata parece alta – e cada uma das suas peças de roupa que e eu consigo ver é preta. Até mesmo o biquíni, que tem as tiras escapando pela parte de trás da gola da camiseta.

Minha primeira impressão? Gata! Seus cabelos estão presos em um rabo de cavalo alto e ela mistura o conteúdo da panela com a concentração de um neurocirurgião. Minha irmã e eu nos aproximamos para falar com ela ao mesmo tempo em que Julia entra no cômodo gritando um longo “ooooooiiiiii geeeeeenteeeee” provavelmente afim de se fazer ouvida sobre a música.

Ela pega na cintura da guria que está no fogão, que ergue a cabeça e nos olha pela primeira vez, por uma fração de segundo, seus olhos ficam levemente cerrados como que se essa situação a deixasse desconfortável. Um instante mais tarde, com seus olhos completamente abertos, percebo o incrível tom de verde-azul de suas írises e agora, já não acho que ela e Julia são parecidas. Estou um pouco impressionado e, de novo: gata!

— Renata, Luan, essa é a minha prima Eliza – diz aos berros.

— Liz – a garota corrige em voz alta embora aparente timidez.

Ela estende mão para minha irmã que dispensa o gesto e a abraça gritando em sua orelha.

— Que bom te conhecer, ouvi bastante sobre ti.

— Só coisas boas – Julia completa, falando ainda mais alto.

— O prazer é meu – leio as palavras que saem de seus lábios gordinhos.

Quando Renata solta a garota, ela olha para mim e percebe que eu a estou examinando, então eu dou um passo à frente. Ela me estende o braço de maneira hesitante e eu seguro a mão que ela me oferece, mas antes que ela possa se mover, eu a puxo para perto e beijo sua bochecha.

— Prazer – eu digo em seu ouvido controlando o volume para que ele pertença só a nós.

— Igualmente – ela diz quando eu volto a olhar seus olhos.  

Nós nos separamos e ela volta sua atenção para o arroz, mexendo uma última vez antes de tampar a panela e abaixar o fogo. Agora que não tem a mais a desculpa de cuidar da comida, ela parece ainda mais desconfortável e morde a parte interna da bochecha quando encosta o quadril no armário ao seu lado.

— Tu acendes a churrasqueira para mim? – Julia grita para mim e já começa a se dirigir aos fundos da casa.

— Só se tu abaixar essa merda de música – berro em resposta, mas estou sorrindo.

Peço licença para Liz antes de sair do cômodo e ela sorri para mim mais uma vez. Um sorriso breve de dentes brancos, que forma uma covinha em sua bochecha esquerda. Depois, seus olhos se concentram em seus tênis Vans pretos ou algum outro espaço entre eles.

Sigo para fora da casa para me encontrar com Julia, mas antes mesmo que eu possa chegar ao quintal o volume diminui consideravelmente. Meus ouvidos agradecem pela trégua e eu tento me concentrar no que ela está dizendo.

— ... guardado no quartinho – ouço.

— O que tem no quartinho? – Pergunto confuso.

— O carvão, Luan – ela coloca as duas mãos na cintura. – Estás dormindo?

— Meu cérebro não funciona com essas músicas de cowboy chifrudo – digo com um sorriso presunçoso. A que ela responde me mostrando a língua. – Posso pegar?

— Já devias ter pego – ela retruca.

 O que deu nessas gurias hoje para suporem que mandam em mim?


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