Rainha de Vidro escrita por William de Assis


Capítulo 5
5




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/784362/chapter/5

EM MEU SONHO, eu estava suspensa no ar, com as mãos presas por correntes grossas que deixariam marcas por todo o corpo. Sentia meu corpo doer e uma leve sensação de ardência em minhas pernas; um liquido vermelho escorria sobre meu rosto e demorei mais do que esperava para reconhecer que era sangue.

Sangue quente, cobrindo um lado da minha visão, impedindo que eu conseguisse enxergar todos que estavam abaixo de mim. Eram cinco ou seis, não sabia ao certo. Usavam jalecos negros e máscaras no rosto.

O lugar parecia ser no subsolo. Algumas gotas de água pingavam pelo teto e o barulho de uma cachoeira era constante. Eu estava presa numa montanha, com frio, fome e quase morta.

Foi então que a porta do meu quarto abriu rápido. A luz da lua invadiu minha cama e as três damas de companhia da rainha entraram sorrindo com suas malas e fazendo barulho. Lembro que acordei assustada naquela noite. Ofegante e suada com a mão no peito. Elas me olharam ainda mais assustadas, como se tivessem feito alguma coisa errada, mas não era bem assim, eu sabia que elas viriam horas antes de irmos embora e por ordem da rainha, eu deveria me parecer com uma verdadeira rainha antes de chegarmos a marinha do reino.

— Está tudo bem! — respondi ofegante. — Podem entrar e ficar à vontade.

Uma delas sorriu dando os primeiros passos até minha cama. As outras duas estranharam o tamanho do quarto e só se moveram quando a primeira dama acenou para que elas começassem a mexer no meu cabelo.

— Será que eu posso saber o nome de vocês? — perguntei para a dama que estava ajoelhada escolhendo quais roupas eu manteria e quais jogaria fora. — Não estou acostumada a ter outras garotas fazendo meu trabalho.

As damas atrás de mim pareceram rir enquanto arrumavam os longos cabelos ruivos. Elas provavelmente não diriam nada e isso me deixava muito irritada.

— Ao menos posso saber o que vão fazer com meu cabelo? — perguntei.

Elas se entreolharam e então riram outra vez, mas ao menos responderam:

— Vamos tirar o vermelho sangue dele e deixar num tom mais claro, quase loiro. — A dama atrás de mim respondeu. — Mirah, vai trazer as novas roupas que a rainha mandou que comprassem para você na capital, Calisto vai se certificar de que você pareça uma verdadeira princesa eu vou arrumar seu cabelo depois do banho.

Olhei de canto para Mirah. Os cabelos negros ondulados e rosto macio, separando todas as roupas que eu deveria ou não usar, com todo aquele olhar arrogante sobre mim, meu quarto e minhas coisas. Atrás de mim, Calisto escolhia joias e brincos sem dizer uma única palavra, mas com certeza julgando todas as poucas joias que tinha, os cabelos meio alaranjados chamavam muita atenção, mas a rainha não parecia gostar, já que ficava parecido com o meu.

Essas duas me irritam e provavelmente vão contar tudo que eu disser a rainha.

Não posso confiar nelas, nunca.

— Saiam — sussurrei calma e ousada. — Mirah e Calisto, quero vocês fora do meu quarto.

O tom ousado na voz, fez com que elas me olhassem assustadas mais uma vez e só depois que encontrei meu olhar com o de Mirah que ela finalmente percebeu que eu realmente quis dizer aquilo.

Ambas saíram do meu quarto, as roupas que Mirah mexia ficaram jogadas pelo chão, as poucas joias estavam reviradas em cima da cama e a outra dama parou de mexer em meu cabelo. O olhar de pavor repousa em seu rosto, mas então eu me sentei no chão, escolhendo peça por peça que eu gostaria de levar para a capital e sinalizei para que ela voltasse a mexer em meu cabelo.

— Ingrith quer sair o mais rápido possível do Éden, então temos muito o que arrumar. — disse. — O que devo usar? Como devo me comportar? Pode me ensinar?

— Claro princesa — disse ela calma. — Farei o que ordenar.

Sorri um pouco e me aconcheguei no chão para voltar a dobrar minhas roupas.

— Pode me chamar de Catherine, não estou acostumada a ser chamada de princesa — disse. — E qual seu nome mesmo?

Ela sorriu, voltou a arrumar meus cabelos e respondeu:

— Hope, meu nome é Hope.

Quando a madrugada cedeu sua escuridão para a claridade do dia já estava pronta para sair do Éden. As roupas que ficariam para a igreja estavam arrumadas em cima da cama, as poucas roupas que Hope recomendou que eu levasse estavam na única mala que conseguimos com Lee. Meu cabelo já não estava mais vermelho, estava prateado, quase como os da rainha. Quase não parecia mais eu.

Eu usei minhas próprias roupas para sair do Éden, calça jeans, blusão de manga e botas. Claro, que Hope sugeriu que eu usasse uma de suas roupas, mas eu não conseguia me sentir à vontade com aquela ideia.

— Agora podemos ir — disse calma.

Voltei meu olhar para as coisas que ficariam no quarto para que outra pessoa usasse. A cama estava arrumada com uma quantidade grande de roupas para doação. Minha caixa de jogos estava em cima da cômoda. Talvez o padre deixe as crianças agora que finalmente vou embora.

Acho que queria chorar naquele momento, mas não poderia fazer isso, não com a Hope logo ali, parada, carregando minha mala e observando os órfãos saindo de seus quartos. Caleb era o primeiro deles. As manhas de queimado no braço escuro me diziam claramente que ele estava tentando ocupar o lugar de Jeon.

Provavelmente ele não estava dormindo direito desde a morte do Jeon e mesmo que quisesse estar de volta na cama, estava parado com algumas fores nas mãos.

— Essas flores são caras — disse — espero que padre Phillipe não se incomode.

Ele sorriu um pouco e então andou até mim.

— Os órfãos tiraram dinheiro das nossas economias — começou irmã Lily. Atravessando o corredor com todos os órfãos, ela veio até mim e me abraçou. — Vou sentir saudades de você garotinha — sussurrou.

Algumas lagrimas finalmente caíram, era óbvio que sentiria saudades de todos eles.

— Eu vou voltar para visitar vocês — disse antes de me soltar.

— Sei disso! — respondeu sorrindo. — Só não esqueça das suas origens quando estiver rodeada de todos os nobres. E não se preocupe, seu segredo está bem guardado com os órfãos da igreja.

Meu segredo. Uma vermelha que se tornou azul do dia para noite, uma azul ainda sem poderes, a próxima rainha nesse tabuleiro de xadrez dos nobres.

— Nunca vou me esquecer disso irmã — disse calma. — Esperem notícias minhas.

— Claro, minha rainha!

E então, ela e todas as crianças fizeram uma reverencia. Caleb andou pelo corredor de crianças e órfãos e entregou as flores para mim. Precisei me esforçar para andar entre eles sem derrubar uma única lagrima, mas parecia quase impossível. Acho que vou sentir saudades deles.

Lee me aguardava na escada usando o mesmo terno do dia anterior, Velaryon estava alguns degraus abaixo dele. O príncipe herdeiro usava um terno preto e claro, espadas presas nas costas. A coroa de príncipe repousava em sua cabeça tranquilamente, ele não esboçava emoções, porém, parecia estar procurando alguém enquanto não desviava a olhar de mim.

Tentei desviar meu rosto para ver Hope atrás de mim, mas como um imã, meu rosto virou imediatamente na direção dele e me senti obrigada a andar em sua direção, ignorando Lee e qualquer um outro que estivesse atrás do príncipe. Desci cada degrau calmamente, parecia existir vibrações ao meu redor me empurrando até finalmente chegar à frente dele; nossos olhares se encontraram outra vez,

Naquele momento senti como se uma pequena onda de choque nos envolvesse e somente nós dois conseguíamos ver as faíscas saltando de um lado para o outro. Ele piscou forte como se tentasse expulsar lembranças de sua cabeça e eu toquei meu rosto mais uma vez, tirando algumas lagrimas que insistiam em cair a cada nova lembrança que surgia em minha cabeça.

Dois jovens se beijando a beira de um lago quase congelado, logo em seguida mudando para um dia comum de caça, a arqueira montada em seu cavalo indo atrás de um veado enquanto o guerreiro vinha logo atrás montado em um gigantesco dragão, rugindo na selva e espantando todas aas criaturas que tinha por perto e então o jovem estava morto, banhada por sangue vermelho, a arqueira tomou a espada do guerreiro para si e então enfiou bem fundo no coração deixando esse mundo com uma última frase:

— Almas entrelaçadas estão destinadas a ficarem juntas.

As poucas lágrimas se transformaram num fluxo constante de água fria e salgada descendo de meu rosto. Velaryon ameaçou tocar meu rosto, mas não deixei, apenas segui adiante com Hope logo atrás.

— Lady Catherine, o que aconteceu? — perguntou a menina. — Vocês estavam se dando tão bem.

Passei as mãos sobre o rosto tirando as lágrimas que ainda escorriam e fingi um sorriso enquanto pensava na melhor resposta que poderia dar.

— Preciso me despedir do padre e você pode por favor levar minhas malas para o carro que vai me levar? — pedi.

Lee vinha correndo os poucos degraus da igreja rapidamente, Velaryon ainda estava parado em frente as escadas e eu precisa sair dali o quanto antes.

— Por favor! — pedi novamente.

Hope acenou, mas não rápido o bastante para que eu conseguisse de fugir de Lee.

Ele agarrou meu braço e parou em minha frente. Tirou o restante das lágrimas dos meus olhos e olhou assustado enquanto elas viravam gelo antes de tocar o chão.

— O que aconteceu com você? — perguntou ele. — O príncipe disse alguma coisa? O que ele fez?

— Não aconteceu nada.

Mentiras e mais mentiras, minha vida seria assim agora.

— Você está chorando!

— Se você visse como os órfãos se despediram de mim também estaria chorando. — Menti outra vez.

Parecia tão fácil que eu poderia me acostumar a isso, mas será que eu realmente queria me acostumar? Decida-se Catherine.

— Estou indo me despedir do padre, vem comigo? — perguntei.

— Eu preciso acertar os detalhes da viagem com o príncipe herdeiro e os outros dois — respondeu ele. — Te pego aqui em quinze minutos.

— Tudo bem! — o abracei. — Cuidado com os príncipes, não pode ser pego outra vez.

Ele riu, mas percebi que era mentira. Um sorriso falso para que eu não percebesse que ele está tentando esconder algo. O quê?

— Sempre me cuido irmãzinha.

Sorri para disfarçar e relutei sobre ir atrás do padre ou simplesmente seguir Lee... O padre venceu!

Andei calmamente ignorando os olhares de ódio de algumas mães sobre mim. Atravessei toda a igreja observando o céu nublado da manhã. A primeira neve do ano começava a cair, o chão finalmente estava marcado pelo branco das neves e claramente, o sopão da igreja estava sendo preparado pelos colegas de Jeon.

Andei calma até o cemitério atrás da igreja. O padre estava rezando mais uma vez pelos mortos. Eu nem se quer conhecia metade daqueles nomes, mas conhecia alguns muito específicos, incluindo a lápide com o nome de Jeon. Uma cova com um corpo qualquer estava ali enquanto as cinzas de Jeon repolsavam na urna funerária em alguma parte da montanha congelada.

— Achei que nunca viesse aqui para se despedir! — disse o padre. — Quando parte, minha rainha?

Sorri para ele.

— Em alguns minutos. Lee vem me buscar quando tudo estiver pronto — respondi. — Então vou para capital dar sorrisos falsos, enfrentar nobres e me consagrar como a rainha de toda Avalon.

Então posso finalmente ter Jeon de volta para mim. E papai e mamãe também.

— Espero que como rainha, nunca se esqueça de sua verdadeira origem — disse o padre se colocando de pé. — Espero que possa se lembrar de todos que estiveram aqui durante sua passagem.

Dei mais alguns passos em sua direção para ajuda-lo.

A barba grisalha estava crescendo depois de tanto tempo, o rosto dele estava envelhecido e cansado e os olhos pareciam tão vivos como de qualquer soldado que voltou para casa.

— Eu nunca vou conseguir esquecer do senhor — respondi. — Nem dá irmã Lily e dos órfãos. Estão juntos comigo desde que nasci e sou incapaz de esquecer qualquer um de vocês ou seus ensinamentos.

Padre Phillipe forçou para me abraçar e me senti na obrigação de ceder a ele. Seu coração estava tão acelerado que fiquei preocupada com a saúde desse velho e de quem cuidaria dessas crianças depois que ele fosse embora para o mundo dos mortos.

— Obrigada padre, por tudo — sussurrei. — Eu nunca vou me esquecer de tudo que me ensinou.

Tentei me soltar para olhar em seus olhos outra vez, mas ele não deixou. Me manteve aquecida naquele forte abraço impedindo que eu conseguisse sair para olhar em seus olhos.

— Antes que vá embora, preciso pedir desculpas por tudo que te fiz — disse ele, sussurrando tão baixo que quase não ouvi. — Não foi certo, mas pelos resultados de hoje, tenho certeza que valeu a pena.

— O que está dizendo padre? O que o senhor fez de tão grave? — sussurrei de volta.

Ele me apertou ainda mais contra si.

— Você vai descobrir logo — disse ele. — Quando estiver na capital, cuidado com todos aqueles que te cercam, cuidado com aqueles que só querem seu mal e nunca...eu repito, nunca aceite o convite da igreja de Sun para visita-los sem Lee ou seu noivo. Pode fazer isso por mim?

— Claro que sim, padre!

Ele tremeu um pouco e então me soltou. Sorriu de leve e me empurrou para que eu fosse embora sempre acenando a cada passo que eu dava. Queria dizer muito mais, mas ele parecia não querer ouvir, estava chorando e dizendo adeus sem dizer uma única palavra.

Padre Phillipe cuidou de mim desde que eu era criança desde que meus pais morreram e eu devo muito a ele, mas estava sendo incapaz de dizer obrigada por tudo, então, obrigada padre Phillipe, espero poder devolver esse favor em breve.

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Rainha de Vidro" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.