A Fênix de Obsidiana escrita por HellFromHeaven


Capítulo 3
A taverna




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Tive que andar amparada por Ryan até a casa dos Torin, pois tinha me esforçado muito além do que minha condição permitia. Ao chegar, fui levada ao meu quarto, onde Orna trocou minhas ataduras e brigou comigo por ter sido tão irresponsável. A ideia de estar levando uma bronca de uma humana parecia engraçada para mim, mas mantive-me cabisbaixa e guardei todas as palavras da mulher em minha mente. Isso me garantiu o restante do dia na cama, para que meu corpo fosse capaz de cicatrizar os ferimentos. Fiquei o tempo todo encarando o teto, revisando minhas memórias.

No outro dia, estava me sentindo bem melhor. Entretanto, fui impedida de ajudar a carregar os troncos e de ir até a cidade. Segundo Orna, seria melhor estar recuperada antes de enfrentar meus fantasmas. Disse a ela que meus fantasmas ficaram com Irulia, a necromante do palácio e ela riu de mim. Confesso que não consigo entender os humanos, às vezes. No fim, apenas fiquei observando a mulher forjar algumas armas e escudos, lavar a roupa e cozinhar. Estranhamente, quando deitei em minha cama para repousar após a refeição noturna, estava com um sorriso no rosto com um calor agradável no peito. Dormi como uma rocha. 

Mais três dias se passaram sem que me permitissem fazer esforço. Parte de mim estava incomodada por ser um estorvo para todos, mas deitei todos os dias com um sorriso no rosto. Algo que ainda não sabia explicar naquele cotidiano simples acalentava meu coração e me fazia esquecer lentamente da vida no palácio. É claro que me peguei pensando em meu povo vez ou outra, porém busquei me distrair para manter-me sã. Assim que estava completamente recuperada, deixaram que eu voltasse a ajudá-los em seus afazeres, carregando os troncos cortados até a cidade e acompanhando Ryan até casa.

Após dois dias, decidi que queria ajudar mais. Tentei cortar as árvores, mas sempre acabava colocando força demais e despedaçando o tronco completamente. Depois de dez tentativas falhas, achei melhor buscar outra função. Ajudei Orna, carregando seus materiais para a cidade e a matéria bruta para sua forja, mas encontrei novamente o mesmo problema ao tentar forjar uma espada. Quebrei a bigorna da pobre mulher e tive que usar magia para consertar. Pelo menos nisso eu conseguia ser útil. Minha curiosidade focou na culinária humana, que utilizava vegetais e ervas ao invés de apenas carne. Fiquei tentada a aprender, mas sabia que ia acabar quebrando as panelas e até mesmo o fogão, então apenas me contentei em observar. 

Usar a força nunca havia sido um problema, uma vez que todas as portas do palácio eram esculpidas em rocha pura e era muito raro ter contato com madeira. Senti-me uma espécie de monstro desajeitado em meio a aquele mundo frágil. Entretanto, não me dei por vencida. Owen me levou até a Taverna do Suíno Saltitante, uma espécie de estabelecimento onde os humanos vão para ingerirem grandes quantidades de álcool. Este era um costume conhecido para meu povo, que era um grande apreciador de bebidas e ervas alucinógenas, amplamente consumidas em comemorações. Porém, nunca foram coisas que me atraíram. O dono do local precisava de uma nova funcionária para poder servir os clientes e após observar suas funções, decidi me candidatar.

O uniforme era um vestido longo e preto, com um avental branco e uma espécie de tiara. Para minha sorte, Owen conseguiu convencer o Sr. Jão de que eu não podia tirar minha touca por motivos pessoais e ele respeitou. Deixar meus chifres à mostra estava completamente fora de questão. Cheguei cedo ao local, tendo meu olfato acariciado pelo doce aroma da comida sendo preparada. Minha função era simples e o local não era muito movimentado durante o dia, apenas com dois ou três homens com feições tristes. À noite, muitos viajantes adentraram o local e um doce som chamou minha atenção. 

Em um dos cantos da taverna havia um homem de estatura mediana, com cabelos longos e cacheados, pele bronzeada, olhos castanhos e umas espécie de junção de bigode com barba. Ele usava roupas de couro e uma capa verde, me lembrando vagamente dos demônios ladrões. Em suas mãos, uma espécie de haste de madeira com furos, de onde vinha a bela melodia quando o homem a soprava. Todos ficaram animados com sua presença e pareciam adorar as músicas, completamente diferentes do som grave e agressivo dos tambores utilizados por meu povo. Sempre que podia, parava para admirar sua habilidade e era envolta pela tranquilidade que o som proporcionava. Ao final do dia, finalmente pude saciar minha curiosidade e me aproximei do músico. Nossos olhos se encontraram e houve um momento mútuo de surpresa. Seu instrumento emanava uma forte aura mágica, assim como o homem em si. Por sua expressão, acredito que deve ter notado a minha aura, o que me deixou preocupada e impediu que minha voz saísse. Para minha sorte, ele apenas sorriu e pegou minha mão, beijando-a em seguida. Fiquei confusa com o gesto, mas tentei disfarçar.

— Vejo que é nova por aqui. - disse o homem. - Jão realmente tem sorte por estar cercado de mulheres tão belas. 

Olhei ao meu redor, procurando instintivamente minhas colegas de trabalho. Analisei muito bem seus rostos, cabelos e proporções corporais. Seria útil saber qual o padrão de beleza para os humanos, entretanto, elas não eram parecidas comigo o que me deixou confusa.

— Bem… Creio que sim. - disse, tentando parecer natural.

— Olha só, bom saber que sua autoestima está em dia. Meu nome é Amadeus, Amadeus Iori. Como devo chamar a senhorita?

— Mae, apenas Mae.

— Três letras? Isso deixa minha memória muito feliz. A que devo sua ilustre presença?

— Fiquei muito interessada na sua música! De onde eu venho, não temos esse tipo de melodia.

— De onde você vem, é? - disse ele, se aproximando do meu rosto.

Novamente, ficamos nos encarando por alguns segundos. Depois, seus olhos percorreram meu rosto, cabelo e pararam na touca. Ele parecia intrigado, alisando sua pequena barba durante todo o processo. Com um sorriso, ele deu de ombros e me estendeu a haste de madeira.

— Isso é uma flauta, eu mesmo que fiz. - disse ele, orgulhoso. - Eu sou um bardo, uma pessoa que vive de música e essa cidade é uma das minhas favoritas em Meltrilis. 

Arregalei meus olhos e perdi a compostura por um instante, cambaleando um pouco antes de me firmar novamente. Minha última batalha foi em uma cidade fronteiriça de Alterus, o segundo reino humano no caminho do império carmesim. Isso significava que fui arremessada até o país vizinho com a magia dos heróis. Por mais que seja uma informação simples de se entender, fiquei chocada com a distância que percorri em pleno voo. Confuso com minha reação, Amadeus estalou os dedos perto de minha face, me tirando de meus pensamentos.

— Está tudo bem? Quer uma água ou coisa do tipo?

— Não, eu estou bem. Só estou um pouco cansada do meu primeiro dia. Então… - Voltei novamente minha atenção para o instrumento. - Você só precisa soprar em um destes buracos?

— Sim e não. Se fosse tão simples eu estaria perdido. Em termos de técnica, basta assoprar este furo maior e posicionar os dedos sobre os outros furinhos para fazer as notas. Mas a música não é apenas um conjunto de movimentos, ela vem da sua alma.

— Tipo magia?

— Bem… Alguns diriam que sim. O que importa de verdade é externar para o mundo o que você sente em seu interior.

— Parece bem complicado.

— É por isso que me pagam. 

Usar dinheiro para comprar música era estranho para mim. Os demônios carmesim sempre foram muito mais práticos em relação a seus gastos. Entretanto, depois de passar a noite ouvindo aquele doce som, pude compreender o motivo dos humanos recompensarem Amadeus. Mais uma vez fui lembrada de que meus antigos costumes e valores pouco importavam neste novo cenário onde o destino me colocou. O músico tentou me explicar a teoria sobre a melodia, notas e coisas do tipo, mas fui incapaz de reproduzir no instrumento. Derrotada, apenas me despedi de meus colegas de trabalho e parti para casa, sob a luz do luar. Lembrei-me de Gleipnir, minha querida espada e de como eu amava o brilho avermelhado que ela emitia em noites assim. Sempre me senti mais segura quando vestia a armadura e brandia Gleipnir, mesmo sabendo que não passava de uma marionete. Era um alívio não ter mais que lutar, mas por algum motivo senti um grande vazio em meu peito, que me acompanhou até que avistei a residência dos Torin.

Um mês se passou e eu rapidamente peguei o jeito de minha mais nova função. Jão pareceu gostar de mim, pois foi muito compreensivo quando quebrei algumas canecas ao tentar lavar a louça ou quando parti o cabo da vassoura em dois tentando varrer o salão. Expliquei que tinha problemas em controlar minha força e, mesmo sem entender muito bem, ele me colocou única e exclusivamente para servir os clientes, deixando a limpeza e afins para as outras duas garotas. E aliás, elas também pareciam gostar de mim. 

Samara era alta e magra, com cabelos ruivos e cacheados até metade das costas, sua pele era alva e seus olhos verdes. Não era de falar muito e tinha uma paciência invejável, sempre me mostrando como deveria fazer minhas tarefas. Leona era mais baixa, de pele bronzeada e cabelos negros curtos, com seios fartos, sempre com um sorriso caloroso em seu rosto. Por algum motivo, era a preferida dos clientes. Jão, por sua vez, era um homem gordo, com braços fortes, pele alva, careca e com olhos negros. Sua barba era grisalha e sempre mantinha uma expressão serena. Passei a gostar muito de compartilhar meus dias com este pelotão.

Amadeus não tocava lá todos os dias, para minha infelicidade. Porém, sempre que aparecia, o local se enchia de alegria e os bêbados ficavam mais animados, dando mais trabalho para minhas duas colegas. Jão me instruiu a proteger minhas colegas dos clientes alterados, já que era a mais forte. Era muito comum, lidarmos agressivamente com demônios bêbados durante nossas comemorações, uma vez que os carmesins perdiam a noção muito fácil. Na maioria das vezes, um simples olhar era o suficiente para que os homens se acalmassem, mas tive que me colocar à frente de Leona algumas vezes para me fazer entendida. Creio que meu olhar vigilante tenha sido um dos motivos para que as garotas se aproximaram de mim. Entretanto, um dia as coisas saíram do controle.

Era mais um dia normal de trabalho, apenas mais agitado do que estávamos acostumadas devido à chegada de uma caravana de comerciantes. Isso acabou atraindo moradores de vilas próximas e todos resolveram festejar na taverna. O fluxo de serviço estava intenso, o que resultou na demora de alguns pedidos. Amadeus estava tocando sua flauta, mas creio que era impossível para um humano ouvir em meio a tantos gritos e risadas. Dentro de todo o caos, ouvi o som de várias canecas se quebrando. Um dos homens estava com o braço sobre o ombro de Leona, apertando-a contra si. Ela tentava se soltar, mas ele e seus companheiros riam enquanto balançavam suas canecas e derramavam hidromel por todo o salão. Cruzei a taverna rapidamente, desviando de todos os outros clientes e cutuquei seu ombro.

— Que foi, caralho?

O homem se virou, ainda segurando Leona, cujo olhar implorava por socorro. Ele me olhou de cima a baixo, fedendo a álcool. 

— Solte a minha colega. - disse, encarando-o com firmeza.

— Olha só gente, temos mais uma belezinha aqui!

Seus companheiros gritaram com alegria e começaram a me chamar de vários termos estranhos, muitos adjetivos que só vi serem usados com comida. Sem paciência para arruaceiros, apenas apertei o braço do bêbado, que soltou Leona depois de um som de estalo. Quebrei seu pulso acidentalmente e logo a taverna foi tomada por urros de dor. Seus companheiros se levantaram, enfurecidos. Leona correu para longe do grupo e um dos homens tentou segurar seu vestido, mas foi impedido por um tapa meu, resultando em mais ossos quebrados. 

Com dois homens no chão, seus companheiros sacaram punhais e partiram para cima de mim. Meus instintos inflamaram e senti o calor da batalha percorrer meu sangue novamente. Cerrei meus dentes com força e me deixei levar pela emoção. Dois homens altos e barrigudos me atacaram juntos, cada um com um punhal. Inclinei meu corpo para a frente, girando em um chute que arremessou os dois contra a parede. Um terceiro veio logo em seguida e meus punhos logo encontraram sua face, estilhaçando seus dentes e fazendo sua mandíbula pender assim que seu corpo quicou contra o chão. O quarto empunhava uma garrafa de hidromel, levantei meu braço e ela se partiu em milhares de fragmentos, incapaz de ferir minha pele. Um golpe em seu peito o deixou fora de combate em uma das cadeiras, apenas com costelas quebradas. Os dois últimos apenas correram do bar, em pânico. 

Respirei profundamente, como dizia meu treinamento e as chamas em meu sangue se extinguiram. Voltei a mim e olhei ao meu redor, analisando o estrago feito por minha imprudência. Com olhos arregalados, levei as mãos até minha touca, puxando-a com força para baixo, quase tampando minha visão. Estava envergonhada e queria desaparecer dali, entretanto ouvi o som de palmas. Os humanos sempre faziam este tipo de som para parabenizar as performances de Amadeus, então ergui lentamente o tecido, ainda trêmula. Os clientes pareciam animados e Leona correu até mim, me abraçando com força. Por incrível que pareça, todos estavam gratos e pela primeira vez em anos, não me sentia um monstro.

Ajudei as meninas a limpar todo o salão e Jão agradeceu minha atitude agressiva, apenas com algumas ressalvas em relação à intensidade dos ferimentos dos arruaceiros. Todos tiveram que ser levados à pressa para o curandeiros dos humanos, todos com várias fraturas. Porém, no fim deu tudo certo e o restante da noite foi agradável. Quando estava indo embora, encontrei Amadeus na estrada que levava à casa dos Torin. Ele parecia sério, o que era extremamente incomum. 

— Boa noite, senhorita.

— Boa noite, Amadeus. O que faz por aqui?

— Queria falar com privacidade. Na verdade, só queria lhe dar um aviso.

Meu sangue se inflamou, frente a uma possível ameaça. Jamais permitiria que tirassem aquela vida de mim ou que causassem qualquer mal aos Torin. Em um instante, estava segurando o homem pela gola de sua camisa. 

— Escolha sabiamente suas próximas palavras, pois podem ser as últimas. - disse.

Ele sorriu sem jeito e ergueu as duas mãos, sacudindo-as de um lado para o outro.

— Calma, menina! Eu escolhi mal as palavras! Era só um conselho, uma dica, sabe?

Amadeus começou a suar e seu tom de voz e olhar pareciam confirmar o que ele dizia. Coloquei seu corpo no chão e recuei alguns passos. Ele ajeitou sua camisa e suspirou profundamente. Ainda tinha fagulhas em meu sangue, para o caso de ainda precisar tirar sua vida. 

— Você precisa de um pouco mais de delicadeza, mulher! - disse Amadeus. - Bem que meus mentores diziam que ainda morreria por causa da minha boca…

— E então, o que tem a dizer?

— Olha, eu não sei quem ou o que você é. Mas sei que está muito longe de ser humana. Sei também que deve estar ciente de minha aptidão para a magia. Então, como um especialista em esconder meus poderes, queria te dizer que… Você é péssima nisso.

Todas as minhas chamas cessaram e me vi incapaz de argumentar. Voltei meus olhos para baixo, tentando aceitar o peso de meu fracasso.

— Mas calma, não precisa ficar deprimida! Eu confesso que nunca vi um demônio como você antes, e olha que eu já andei muito por esse mundão. Porém, sei que tem seus motivos para esconder isso, assim como tenho os meus para ser apenas um simples bardo.

— Não te incomoda eu não ser humana?

— Desde que não queira me matar, você poderia ser uma batata falante. Só que você tem que aprender a controlar essa sua energia e força absurdas ou vai acabar atraindo atenção indesejada. Isso pode cair nos ouvidos dos “heróis” e daí já viu né.

— Isso… Seria bem problemático. Eu agradeço a preocupação. Essa vida ainda é estranha para mim e confesso que não tenho ideia de como me controlar. Nunca me ensinaram isso.

— Desculpa, acho que acabei pisando num território frágil. Olha, eu infelizmente não sei como te ajudar com isso, mas posso te ensinar alguns truques para esconder essa massa gigantesca de energia que você emana, por exemplo.

— Eu agradeço a sua bondade.

Ele sorriu e apenas deu dois tapinhas em meus ombros, se despedindo e caminhando de volta para a vila. Observei-o até que sua silhueta desaparecesse por completo. Ainda tinha muito para aprender caso quisesse manter essa nova identidade, mas um calor aconchegante nasceu em meu coração. Uma sensação que me envolveu de forma agradável e fez brotar um sorriso em meu rosto, enquanto voltava para casa.


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