Trio Maravilha escrita por Karina A de Souza


Capítulo 6
No Lado Errado de Dellto 2




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—O que você está aprontando com essa nave hoje?-Missy perguntou, surgindo na sala de controle. -Pousamos e decolamos mil vezes!

O Mestre não respondeu, nem mesmo reclamou do exagero dela.

—Não achei Calea em lugar nenhum. Você a viu?

—Ela teve que ir.

—Pra onde? Calea não tem pra onde ir, não tem ninguém além da gente. Ah. Não. Foi o Doutor? O Doutor a buscou?

—Não.

—Então o que aconteceu? Oh, eu conheço essa cara. Não a fazemos muito. Culpa. O que você fez? Aposto que disse algo estúpido e ela decidiu ir embora.

—Missy, pode calar a boca?

—Ela está bem? Calea está bem? Mestre...

Então ele contou a ela. Contou que o Doutor havia mandado uma mensagem, e que ele a atendeu. Contou sobre o lugar que viu, e sobre o local de execuções. Quando contou sobre Calea ser a prisioneira que foi executada, Missy parecia incrédula.

—Tem certeza de que era ela?

—É claro que tenho! Parecia só uns anos mais velha, mas ainda era a mesma Calea.

—Não consigo acreditar. -Se jogou numa poltrona. -Ela é péssima em ser vilã, precisamos admitir. Ainda está aprendendo. Semana passada estava surtando por que matou um homem. Calea não é uma vilã. Os crimes que você disse... Não pode ter sido ela.

—Mas foi. Ou vai ser. Depende da linha do tempo.

—E você acha que expulsar Calea daqui vai resolver alguma coisa?

—Você não entendeu? Nós causamos isso. É nossa culpa. É nossa culpa desde que a deixamos entrar nessa nave. Ela era só uma garota tendo um surto de impulsividade que ganhou cúmplices. O Doutor não devia tê-la deixado ir e nós não devíamos tê-la deixado ficar.

—Nós? Mestre, quando ela chegou, eu nem estava aqui. Você estava. Você a deixou ficar. E não acho que nenhum de nós sabe o por quê. Mas sabe o que mais eu acho? Que abandonar Calea num planeta qualquer não vai ajudá-la de maneira alguma. Você sequer a deixou em Kepler-22b ou na Terra ou com o Doutor. Você a largou sozinha em diabos sei lá onde. Calea não é uma vilã, e pode parecer uma garota durona, mas colocá-la, ou melhor, jogá-la numa situação perigosa e deixá-la se virar? O que espera que aconteça?

—Sabe o que eu espero que não aconteça? A execução de uma garota por 49 crimes diferentes por todo o Universo.

Missy suspirou, se levantando.

—Se acontecer alguma coisa com ela... A culpa é toda sua.

***

Um clima estranho ficou rondando a TARDIS. Era como se sem Calea a nave ficasse mais silenciosa. E saber do futuro da garota não ajudava em nada.

Missy estava de mau humor e isso era claro, por que ela atormentava ainda mais sua encarnação anterior, e brigou tão feio com a cozinha que até as salas próximas trancaram suas portas. A Senhora do Tempo não era o tipo de pessoa que escondia o que estava sentindo. Se estivesse com raiva, era possível perceber à uma galáxia de distância... Principalmente se houvesse algo pegando fogo.

Naquela manhã artificial, ela apareceu na sala de controle tão sorrateiramente, com sua nuvem habitual de humor instável, que assustou o Mestre, fazendo-o bater a cabeça no console, enquanto o consertava.

—Que foi agora?-Perguntou, esfregando a testa.

—Calea é Calea.

—Poético.

—É sério, Júnior. Eu não consigo aceitar que a fizemos ser aquilo. Como chegou nesse ponto? E por que não a salvamos? Somos bons em fugas de prisões.

—Ela estava sozinha, no final. -Mexeu num botão, testando-o. -Não acho que podíamos ter feito alguma coisa.

—É claro que podíamos.

—Eu pesquisei sobre ela. A ficha de Calea está por toda parte. Dizem que ela matou dois Senhores do Tempo.

—E você não acha que somos nós, acha?-Ele olhou pra ela. -Não. Não. Calea nunca faria isso. Não há nem uma mísera possibilidade. Se você realmente acredita nisso, então não a conhece como eu.

—Você está repetindo isso há uma semana e nada mudou. Calea ainda vai ser julgada e morta pelos crimes que cometeu, e não foram poucos. -Ficou de pé. -Eu não aguento mais ter essa conversa. Então chega.

—Precisamos falar disso por que Calea foi abandonada num planeta qualquer e sem ninguém. Tirando o fato de estarem, futuramente, a culpando por crimes bárbaros que acabarão resultando na morte dela. Eu não consigo não falar nisso, nem ignorar ou fingir que não tem nada acontecendo, por que tem! Pelos Deuses, é a Calea! Passou a vida toda em Kepler-22b sem ter noção de como o Universo é enorme até o Doutor chegar, e depois a gente aparecer com essa sua cara redonda e praticamente roubá-la dele. É a Calea! A nossa Calea! E você abandonou ela!

—Chega!-Missy recuou. -Só cala a boca. Se você se importasse tanto com ela, iria querer que continuasse a mesma, e que não morresse por seus crimes.

—E eu quero...

—Então a deixe ir pra longe da gente! Nós fizemos isso, e estamos consertando!

—Se isso é verdade, por que a linha do tempo dela ainda é a mesma?-E saiu sem deixá-lo pensar numa resposta.

***

Outra mensagem havia chegado. Na verdade, várias mensagens, todas da mesma pessoa e todas iguais. Devia ser urgente.

Se perguntando o que o Doutor queria agora, o Mestre seguiu as coordenadas para encontrá-lo.

—É outra execução?-Perguntou, se aproximando. -Por que eu vi uma recentemente e não preciso ver outra.

—Parece que não foi o suficiente. Você não entendeu nada do que eu disse? Do que eu mostrei? Do que ouviu?

—Eu pareço estúpido?

—Honestamente?

—Deixei Calea em Dellto 2. Sem influência de Missy e eu a linha do tempo dela vai voltar ao normal e nada daquelas coisas vão acontecer.

—Sabe a pergunta de antes? Sim. Você parece estúpido por que é. Calea não se tornou má por sua causa. Ela se tornou má por que foi abandonada.

—Espera, o que? Isso é idiota.

—Você por acaso conhece Dellto 2? Sabe o que está acontecendo com Calea nesse exato momento? Eu não a vejo há anos. Missy e você eram tudo o que ela tinha, até ser largada longe de casa.

—Eu achei que estava a salvando. -Encarou o nada, confuso.

—E fez exatamente o contrário. -Olhou para o Doutor e começou a se afastar rapidamente. -Aonde você vai?

—Encontrá-la antes de você!

***

Calea se sentou na beirada da fonte, exausta. Tinha andado muito até chegar ali, e a temperatura alta não ajudava em nada. Os delltonianos estavam com calor, mas Calea, Kepleriana, sentia sua pele ferver.

Tirou uma fruta do bolso. Estava um pouco seca, mas ainda era comestível. Antes que a colocasse na boca uma criança surgiu ao seu lado.

—Está com fome?-Calea perguntou. O menino assentiu. -Tudo bem.

Se preparou para dividir a fruta ao meio, mas o menino a agarrou e saiu correndo, levando a única coisa que a híbrida tinha pra comer.

Podia correr atrás do menino, mas se sentia exausta e ele já estava longe, sumindo de vista.

Suspirou e se inclinou, fazendo uma concha com as mãos para beber água.

Se conseguisse atravessar a fronteira, podia entrar na parte rica de Dellto 2. Do outro lado não existia fome ou seca, nem pobreza ou calor. Havia muita comida, e a cúpula de cristal era climatizada de maneira que as pessoas de fora sequer podiam imaginar. Mas era impossível passar para o lado de lá. Ninguém jamais havia conseguido, e muitos tentaram. Calea tentou imaginar como vilões invadiriam aquele paraíso da elite, mas não havia ideias ou recursos. Ela estava presa no lado pobre do planeta, e isso não mudaria.

—Calea?

A garota hesitou, então se virou, encarando o Senhor do Tempo na frente dela.

—O que você quer?-Perguntou. -Se vai me acusar de roubar algo da sua TARDIS, está errado, e não, eu não posso provar. Roubaram minhas as coisas.

—Eu não ia...

—Ótimo. -Voltou a prestar atenção na água, mas desviou o olhar, sabendo que se a encarasse muito não a beberia, não com aquela aparência duvidosa.

—O que aconteceu com você?-Se moveu para o lado. Calea virou o rosto, deixando o machucado à mostra.

—Eu disse que me roubaram. -Fez uma pausa. -Devia ter visto o outro cara. -Ambos sabiam que as pessoas que diziam isso eram as que saíam piores de uma briga, nunca ao contrário.

—Eu não sabia que Dellto 2 era tão...

—Ruim? As pessoas costumam pensar na cidade de cristal e no quanto ela parece perfeita e paradisíaca. Nunca pensam no lado pobre, nem nas pessoas que estão nele.

—Não teria te deixado aqui se soubesse.

—Eu não teria feito muitas coisas, mas isso não muda nada, muda? Um mês nesse maldito lugar. -Suspirou. -Ainda não disse o que quer.

—Quero que volte pra TARDIS. Não devia ter te expulsado.

—Simples assim? Você me largou aqui, sem explicações, e agora quer que eu volte, de novo, sem explicações. É isso?

—Basicamente. Mas eu posso explicar. Na TARDIS, quando sairmos daqui.

—Hum. -Olhou em volta, pensando. Do outro lado da rua um rapaz acenou, um sorriso debochado no rosto. Calea desviou o olhar. -Tá legal. -Ficou de pé. -E a TARDIS está...?

—Na rua de trás.

—Okay. -Deu alguns passos, então parou, pegando uma pedra. Virou, jogando-a com toda força que tinha, diretamente na cabeça do rapaz que tinha acenado antes.

—O que você...?

—Corre!-Gritou.

Os dois giraram, começando a correr, enquanto o rapaz gritava e vários outros surgiam nas ruas, perseguindo o Senhor do Tempo e a híbrida.

Entraram na TARDIS, Calea por último. Trancou as portas e se apoiou nelas, tentando recuperar o fôlego.

—O que foi aquilo?-O Mestre perguntou.

—Foi ele quem me roubou. Eu não podia perder a oportunidade. Preciso de um banho. -Deu alguns passos pela sala. -E de comida. Depois, respostas. -O encarou. -É bom começar a pensar nelas, por que você vai dá-las, querendo ou não.

***

Mais tarde, limpa, descansada e alimentada, Calea surgiu na sala de controle e se sentou numa poltrona. Parecia pronta para ter suas respostas.

O Mestre, por outro lado, não sabia nem por onde começar.

—Tudo bem... Vamos lá. -Calea disse. -Por que me expulsou da TARDIS? Eu passei um mês inteiro me perguntando o que podia ter acontecido, o que eu podia ter feito de errado. Não sou a melhor aprendiz que você poderia ter, mas eu me esforço. E todo o tempo fiquei tentando entender o que tinha acontecido, além de torcer pra viver mais um dia para ter as respostas que precisava. Passei um mês achando que você, ou Missy, iria aparecer e dizer que tinha cometido um erro. Mas os dias passaram e eu continuei presa naquela droga de planeta. Você faz ideia de como é viver em Dellto 2? Foi criado e cresceu em Gallifrey, com tudo o que podia querer. Não acho que saiba o que é pobreza ou dificuldade. Não havia comida pra todo mundo, nem água, ou casas, ou qualquer tipo de ajuda. Eu passei cada dia tentando pensar em como sair dali ou sobreviver. Você simplesmente me largou lá. Imaginei explodir a droga daquela fronteira e invadir a cidade de cristal, mas nem sabia como. Então me perguntei se era esse o motivo de ter me abandonado... Eu ser uma negação.

—Calea...

—Eu nem conseguia achar comida todos os dias. Roubaram minhas coisas na primeira semana. Uma criança me roubou pouco antes de você aparecer. Talvez eu devesse ter sido mais egoísta, mais vilã. Talvez devesse ter roubado ou matado, coisa que você e Missy teriam feito sem nem piscar. -Parou, balançando a cabeça para espantar o pensamento.

—Não acho que teria feito essas coisas.

—Então por quê? Por que me mandou embora?-O Mestre suspirou.

—Por que o Doutor apareceu e me mostrou uma coisa. Me mostrou um futuro onde você é presa e condenada por diversos crimes.

—O que?

—Você se tornou... Má. E isso vindo de mim significa que era realmente má. Fez coisas que nem Missy e eu fizemos. E morreu por isso. Era a única pena que podia ter recebido.

—Eu... Não entendo. Pensei que estava me ensinando pra isso. Eu não... Não sou boa nessa coisa de ser vilã, e nem posso dizer que quero chegar num ponto tão... Extremo, mas... Achei que era seu objetivo.

—Claro que não é. Não quando isso faz você ser praticamente outra pessoa. Não é essa Calea que eu deixei ficar. Você... Grita demais quando está irritada, e hesita sempre que precisa fazer alguma coisa que Missy e eu mandamos, além de sempre questionar nossas ordens, e está toda hora me dando puxões de orelha, ameaçando fazer motins ou me matar, mas essa é você. Kepleriana, humana, irritantemente curiosa e muito, muito boa. Eu ainda não entendo por que decidiu deixar o Doutor e aprender coisas ruins comigo, mas não quero que seja um robô do mal que no fim vai morrer sozinha.

—Acho que foi a coisa mais legal que já disse sobre mim. -Murmurou.

—Hã... Não foi nada demais. -Ajeitou a roupa, parecendo, pela primeira vez em muito tempo, embaraçado.

—Foi, sim. Eu acabei de descobrir que um futuro cheio de crimes e morte me espera, mas talvez com as pessoas certas do meu lado, nada disso aconteça.

—Na verdade abandonar você faria isso acontecer, e eu consertei isso, então você não precisa se preocupar com...

Calea levantou num pulo, abraçando-o.

—Ainda tô zangada por ter me abandonado, mas entendo.

—Ah, abraço em grupo!-Missy gritou, aparecendo de repente e abraçando a dupla.

—Na verdade não era um...

—Shh, agora é. Estou feliz por ter voltado. É bom estar em maior número de novo. As garotas que mandam. -O Mestre revirou os olhos, se afastando. -Você está bem?

—Vou ficar, agora que voltei pra casa.

—Ótimo. Mas antes precisa fazer uma coisinha.

—O que?

—O Doutor quer falar com você. Ele disse que é importante.


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Notas finais do capítulo

Antes que alguém pergunte, o lance da guerrinha de Missy com a cozinha é tipo uma piada, mas realmente acontece. A nave está viva. A cozinha tem vida própria. Pronto.
Até mais.



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